- Author, Lina Zeldovich
- Role, BBC Travel
“Sabia que você está infringindo a lei bebendo isso?”
Enquanto me provocava com a questão, minha guia de viagem Andrea Izquierdo colocava uma jarra cheia de uma bebida espumante, cor de pêssego claro, na mesa de degustação à nossa frente.
Estamos na Casa Galeria, um restaurante no distrito da Candelária, em Bogotá – o centro histórico e colorido da capital colombiana. E a substância ilegal que ela estava pronta para me servir chama-se chicha, uma bebida indígena feita de milho fermentado, popular em boa parte da América Latina.
Eu havia ouvido falar que a chicha era uma bebida non grata na Colômbia, mas achei que fosse brincadeira. “Metade dos lugares por aqui vende chicha, incluindo os vendedores nas ruas em todo canto”, argumentei. “Como pode ser ilegal?”
Izquierdo trouxe a jarra mais para perto, para que eu pudesse examinar a bebida com mais cuidado. Cheirei o líquido – o aroma lembra cerveja, kombucha e suco misturados, o mais inocente dos brindes.
“Acredite ou não, a chicha foi proibida no final dos anos 1940 e, desde então, é ilegal na Colômbia”, afirma Izquierdo.
É claro que ela tinha razão. Parte das tradições indígenas, a bebida foi considerada vilã por mais de um século e oficialmente proibida em 1949.
A alegação é que ela tornaria as pessoas violentas e ignorantes, devido a toxinas perigosas criadas durante a fermentação. Afirmava-se que ela causaria uma doença chamada chichismo, uma lenta deterioração do corpo e da mente.
Por quase toda a segunda metade do século 20, sempre que as autoridades encontravam pessoas produzindo chicha, o equipamento era confiscado, os líquidos eram descartados e os produtores eram presos. Pessoas que fossem encontradas bebendo chicha também corriam risco de prisão.
“As pessoas não passavam anos presas por essas infrações, mas eles podiam manter você na cadeia por seis meses a um ano”, segundo Izquierdo.
O que aconteceu?
Para entender como a bebida se tornou sinônimo de doença, é preciso conhecer, em primeiro lugar, como estava se desenvolvendo a sociedade colombiana, em diversos aspectos.
Séculos antes da chegada dos europeus, o povo originário muisca habitava o alto planalto montanhoso onde hoje fica a cidade de Bogotá. Os muiscas produziam chicha usando seu processo tradicional.
As mulheres mascavam o milho e cuspiam a mistura em uma tigela de argila para fermentar. O processo de fermentação era iniciado pela saliva.
Elas então enterravam a tigela coberta no solo para que permanecesse fresca. E, depois de cerca de duas semanas, a tigela era desenterrada, já com a mistura amarelada espessa e levemente alcoólica.
“É importante observar que nem todas as mulheres podiam mascar milho para produzir chicha”, explica Izquierdo. “Somente as mulheres sábias da comunidade podiam fazê-lo, para passar para a chicha sua sabedoria, que seria ingerida por outras pessoas.”
Mascar grandes quantidades de milho exigia tempo e esforço. Por isso, a chicha era originariamente produzida em quantidades relativamente pequenas e reservada apenas para certas cerimônias ou celebrações especiais.
“As mulheres se sentavam e simplesmente mascavam, mascavam e mascavam, muito conscientes do que estavam fazendo”, explica Izquierdo. “Elas começavam pelo menos 15 dias antes da ocasião, para que pudessem mascar em quantidade suficiente.”
Quando a bebida estava pronta, a tigela de chicha comunitária era passada pelas pessoas e cada um tomava o seu gole.
Posteriormente, as pessoas aprenderam a moer o milho em vez de mascar e começaram a produzir chicha em quantidades maiores. Ela acabou se tornando uma bebida comum, que as pessoas carregavam em cabaças para beber.
Izquierdo explica que, depois de secas, as cabaças endurecem e podem ser usadas para guardar líquidos. Ela dispôs alguns copos pequenos feitos com cabaças e cordões sobre a mesa, oferecendo-me um deles.
“Os viajantes colocavam esses copos em volta do pescoço e, quando chegavam a uma aldeia ou faziam uma parada para descanso, as pessoas podiam despejar um pouco de chicha para eles”, conta.
‘Vinho colombiano’ e ‘pão líquido’
No século 19, a bebida era parte integrante da alimentação das pessoas na Colômbia.
Os produtores a fabricavam comercialmente. Eles mergulhavam e moíam o milho, misturando caldo de cana – um ingrediente que, historicamente, não fazia parte do processo, mas intensificava a fermentação e a produção.
Naquela época, a chicha era considerada uma bebida saudável, segundo o historiador Stefan Pohl-Valero, da Faculdade de Medicina e Ciências da Saúde da Universidade Del Rosario, em Bogotá. As pessoas acreditavam que ela fortalecia as pessoas.
No final dos anos 1820, o professor de medicina José María Merizalde estudou as propriedades científicas da chicha e escreveu que o “vinho colombiano” definitivamente tinha um valor “nutritivo”.
“O vigor que os indígenas [andinos] adquirem com a chicha não é inferior ao que os europeus adquirem com o vinho e a cerveja”, segundo Merizalde, citado por Pohl-Valero no seu estudo intitulado The Scientific Lives of Chicha (“As vidas científicas da chicha”, em tradução livre), de 2020.
Além de vitaminas, a bebida contém alto teor de açúcares e carboidratos fornecedores de energia. “Pode não ser muito bom para nós hoje em dia, mas os trabalhadores que realizavam trabalho físico o dia inteiro precisavam dela”, afirmou Pohl-Valero.
A chicha, às vezes, era descrita como “pão líquido”.
Seguindo as instruções de Izquierdo, peguei uma das cabaças marrons arredondadas e a pendurei no pescoço como um pingente. Segurei o copo, que ela encheu, e tomei um gole.
Levemente azeda e espumosa, a chicha poderia ser mais bem descrita como um gosto adquirido. E também é mais espessa – eu quase conseguia mastigá-la.
De fato, é um pão líquido.
A chegada da concorrência
“Mas por que ela foi transformada em vilã?”, perguntei.
Em 1889, o imigrante alemão Leo S. Kopp abriu em Bogotá a Cervejaria Bavaria, o primeiro grande fabricante de cerveja da Colômbia. E, coincidência ou não, no mesmo ano, o médico Liborio Zerda, que trabalhava no laboratório de química da faculdade de medicina de Bogotá, afirmou que a chicha era tóxica.
Zerda havia sido aluno de Merizalde, mas sua visão sobre a chicha era diferente. Ele a considerava prejudicial devido aos “princípios tóxicos, alcaloides ou ácidos, que são produzidos durante a terrível fermentação do milho para a preparação da chicha”, segundo Pohl-Valero, citando Zerda no seu estudo.
Josué Gómez, colega de Zerda do Hospital da Caridade de Bogotá, uniu-se às críticas, cunhando o termo chichismo – uma doença causada pela chicha, caracterizada por “pigmentação da pele”, “olhar triste, lânguido e estúpido” e cheiro “pútrido” do corpo.
Os dois médicos anunciaram que os dependentes de chicha – os enchichados – perdiam sua energia e a vontade de trabalhar, desintegrando-se lentamente – um problema de proporções nacionais, segundo eles, levando à “degeneração racial” do povo colombiano.
“Assim, a chicha foi patologizada”, segundo Pohl-Valero.
Não se sabe ao certo se a patologia foi sancionada pelo governo ou não, mas muitos colombianos acreditam que a Cervejaria Bavaria mantinha políticos no bolso.
De qualquer forma, o apoio dos médicos certamente ajudou as campanhas publicitárias da Bavaria, incluindo cartazes que anunciavam “Chega de chincha, tome cerveja!”.
As imagens mostravam adultos sadios e até crianças sorvendo a bebida dourada, fermentada sem saliva, nem toxinas, e de forma higiênica – em canecas ou garrafas individuais, no lugar das tigelas compartilhadas.
A chicha, no entanto, sobreviveu ao assédio. Ela se manteve até o século 20, quando o candidato liberal à presidência da Colômbia Jorge Eliécer Gaitán foi assassinado em 1948, o que levou o país a um longo período de instabilidade civil.
Alguns políticos culparam a “condição patológica dos pobres, resultante do consumo de chicha”, pelo levante, segundo Pohl-Valero.
O Escritório de Assuntos Interamericanos (agência norte-americana que promoveu o comércio pan-americano nos anos 1940) também participou da luta contra a chicha. “Eles produziram alguns cartazes muito famosos”, afirma Pohl-Valero. “E, assim, a chicha foi criminalizada.”
Um cartaz dizia que “a chicha deixa você burro”. “A chicha causa o crime!”, dizia outro, mostrando uma faca coberta de sangue. “As prisões estão cheias de pessoas que tomam chicha!”, dizia ainda um terceiro, mostrando um prisioneiro e uma mulher chorando.
Um ano depois, o ministro da Higiene, Jorge Bejarano, sancionou uma lei proibindo a produção e a venda de chicha na Colômbia. Todas as chicherías – lugares que produziam ou serviam a bebida – desapareceram da noite para o dia.
A clandestinidade e o retorno
Estendi a mão com minha cabaça vazia e Izquierdo a encheu novamente.
Enquanto eu tomava a bebida azeda, mantendo-a sob o meu palato, não conseguia imaginar como a tradição sobreviveu. “Como as pessoas conseguiram preservar a bebida?”, perguntei.
“Os produtores de chicha viraram clandestinos”, explicou Izquierdo, da mesma forma que fizeram os contrabandistas durante a Lei Seca, nos Estados Unidos.
As pessoas não podiam visitar as chicherías, mas iam às casas dos amigos e vizinhos. “E, é claro, todos conheciam os melhores produtores de chicha, de forma que as pessoas batiam à porta e perguntavam ‘você tem chicha?’, ela conta.
Se os produtores conhecessem você, eles vendiam a bebida. Eles colocavam as garrafas em sacos de papel, como se fossem pães, para camuflá-las.
“As grandes fábricas fecharam porque eram facilmente controladas, mas as famílias continuaram a produzir a bebida”, acrescenta Pohl-Valero. “Paradoxalmente, o bairro de trabalhadores construído pela Cervejaria Bavaria [em volta dela] era onde acontecia a produção e consumo da chicha.”
E foi também nas vizinhanças da cervejaria que a chicha fez seu primeiro retorno oficial, cerca de 40 anos depois.
“Em algum momento nos anos 1980, o bairro organizou um festival que servia chicha por um dia, em uma ocasião especial”, conta Pohl-Valero.
Ele destaca que nem todos ficaram felizes. Muitas pessoas acharam aquilo um retrocesso, após décadas de combate à substância perigosa.
Mas a chicha retornou nos anos que se seguiram, estabelecendo lentamente seu retorno, gota a gota, à lista de bebidas aceitas na Colômbia.
“Era preciso que acontecesse um dia”, afirma Izquierdo. “Porque você não pode proibir as pessoas de comer o que quiserem, ou beber o que quiserem. Você simplesmente não pode proibir algo que é tão natural para as pessoas.”
A proibição segue em vigor, mas ela explica que é possível vender e consumir chicha no centro da capital hoje em dia. “Mas, como ainda é proibida, não podemos regulamentar sua produção.”
Por isso, não existem regulamentos oficiais para controlar o processo.
As receitas são preservadas por gerações de famílias de produtores de chicha e podem variar de um parente para outro. Alguns produtores acrescentam maracujá, outros misturam mirtilos e ainda outros, abacaxi. E muitas chicherías ostentam uma série de garrafas variadas, com suas cores formando um arco-íris.
“Se não há regulamentação, como saber se um lugar está servindo chicha adequadamente produzida?”, perguntei. “Você precisa saber quem a produziu”, responde Andrea Izquierdo.
As diversas gerações de produtores que preservaram as receitas em décadas de opressão orgulham-se das suas tradições.
Eles conduziram o processo em tempos sombrios. Eles protegeram a receita, apesar do risco de prisão se a usassem. As receitas passaram da avó para a mãe e, dela, para a filha.
Depois de terem passado por tudo isso, podemos ter certeza de que hoje estão produzindo sua melhor chicha, segundo Izquierdo.
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