Crédito, Raquel Cintra Pryzant

Legenda da foto,

O pão crocante tradicional maltês entrou para a lista de patrimônios culturais da UNESCO

  • Author, Raquel Cintra Pryzant
  • Role, De São Paulo para a BBC News Brasil
  • Twitter, @solanomundo

O Ftira é uma tradição maltesa que entrou para a lista de patrimônios culturais da Unesco. O motivo? Este pão crocante é assado nos mesmos fornos a lenha de alta temperatura da ilha desde o século 16.

“Foi meu avô que me ensinou a fazer o Ftira, é uma parte da nossa cultura que não existe em nenhum outro lugar do mundo”, conta Nicholas Sammut.

Nicholas Sammut (23) assumiu uma das padarias mais tradicionais de Malta, a Carmelo Micallef, fundada por seu avô em 1967.

Apenas uma faixa com fotos da família indicam que, naquela casa, igual a tantas outras da cidade de Tas-Sliema, ao lado da capital Valetta, saem Ftiras quentinhos desde as primeiras horas da manhã.

A padaria não tem website, muito menos redes sociais. Assim mesmo, clientes fiéis guiados pelo aroma das fornadas não param de chegar.

O ambiente da padaria é quente e dominado por homens experientes com mais idade que Nicholas. O calor vem do fogo que nunca se apaga dentro dos fornos a lenha que já eram utilizados em Malta há 500 anos.

“Neste trabalho temos muita dedicação, faz muito calor no verão e trabalhamos todos os dias, de segunda a domingo”, conta o jovem padeiro.

Crédito, Raquel Cintra Pryzant

Legenda da foto,

O tempo de cozimento é o que difere o ftira de outros pães da região

A massa do Ftira não tem muito segredo: farinha, fermento, água e sal. Mas a diferença principal está em seu tempo de cozimento, apenas 20 minutos no forno de alta temperatura. O que resulta ser três vezes mais rápido que o cozimento de um pão maltês comum.

Paul Vella, dono da padaria Paul Ta Kalc, localizada em Al-Qormi, cidade no sul da ilha de Malta, explica que o Ftira é feito a partir da mesma receita de massa do pão maltês, mas a diferença principal está no formato em que o pão é moldado.

Essa foi uma tecnologia desenvolvida no começo do século 16, quando a ilha de Malta era dominada pela ordem militar cristã dos Cavaleiros Hospitalários.

Nesse período, os padeiros precisavam de uma solução para assar mais com menos lenha. E assim nasceu este pão achatado, crocante e com um furo no meio.

“Sei quando a massa está pronta para assar com um toque, e se o pão está macio pela cor da casca”, conta Paul, que faz esse trabalho há 25 anos.

A posição estratégica de Malta, rodeada pelo mar Mediterrâneo, fez com que a ilha fosse conquistada por diferentes povos. Árabes, romanos, franceses e ingleses deixaram sua cultura gastronômica nestas terras.

O país se tornou independente em 1964, mas ficou órfão de pratos com assinatura própria. O Ftira é uma das únicas receitas que conseguem unir opiniões ao redor do país: é autêntico de Malta.

Crédito, Juan Jabares

Legenda da foto,

O Ftira é um pão de massa fermentada tradicional maltês cozido em forno a lenha do mesmo modo há séculos

O pão que é Patrimônio Cultural Intangível pela Unesco

A receita original para rechear o pão maltês leva ingredientes mediterrâneos como alcaparras, cebolas, conservas de tomate e azeite. Mas caminhando pelas ruas da capital Valeta, é possível encontrar salmão defumado e até nutella entre as fatias dos pães.

“Embora as combinações de sabores do Ftira tenham se modernizado, a tradição se manteve intacta por séculos”, conta Noel Buttigieg, membro do Instituto de Turismo e Cultura de Malta.

A história do pão maltês é passada de pai para filho nos bairros de Malta, mas também é estudada na maior universidade do país.

Buttigieg é referência nacional no campo da antropologia da alimentação, mas concentrou suas pesquisas em panificação mediterrânea, especialmente no Ftira.

O pesquisador foi o responsável pela indicação da tradição do Ftira à Unesco, que foi finalmente considerado como Patrimônio Cultural Intangível em 2020.

Mas, para garantir uma vaga no hall da fama para o pão secular, o professor criou relacionamentos com padeiros ao redor da ilha por anos e precisou recolher centenas de assinaturas que apoiassem a ideia.

A possibilidade de absorver novidades foi um dos motivos principais para a ratificação do Ftira na Unesco, outro foi o acréscimo de mulheres padeiras.

Isso porque os homens seguem sendo os principais padeiros artesanais, e muitos afirmam que o ambiente quente é o que afasta a presença feminina dos fornos a lenha. Porém, é possível encontrar mulheres com mãos experientes abrindo quilos de massa no emblemático formato de rosca do Ftira.

Crédito, Juan Jabares

Legenda da foto,

Padeiros trabalham na padaria Paul Ta Kalc, localizada em Al-Qormi

O presente e o futuro

“De 116, hoje temos 60 padarias artesanais na ilha. Em quase uma geração perdemos metade delas”, conta Noel Buttigieg à BBC News Brasil.

Uma das possíveis explicações para a diminuição da panificação artesanal é o crescente número de padarias industriais que começaram a chegar à ilha.

Nos últimos 20 anos, Malta viu o aparecimento de pelo menos cinco delas, conta Buttigieg. Segundo ele, esses novos empreendimentos mecanizados levam o mercado para longe das padarias tradicionais.

“É difícil, porque, além da dificuldade do trabalho, quase não existem trabalhadores que queiram exercer essa profissão”, conta o padeiro Nicholas Sammut.

Crédito, Raquel Cintra Pryzant

A falta de mão de obra também é um dos fatores que prejudicam a manutenção da tradição do Ftira.

É raro encontrar jovens como Nicholas comandando todo o ritual da reposição de lenha, beneficiamento da farinha e entrega dos Ftiras.

Segundo ele, muitos jovens vão estudar fora da ilha de Malta e voltam desesperados para comer um sanduíche de Ftira, mas não se interessam em trabalhar nas padarias.

“Não perderemos o Ftira, mas possivelmente o Ftira feito de maneira artesanal”, afirma o padeiro.

O Ftira em Malta é como o pão francês, ou pão de sal, no Brasil. Faz parte da rotina e acompanha os malteses em diferentes refeições ao longo do dia.

Na ilha de Gozo, que faz parte de Malta, o Ftira é consumido como uma pizza. Já nas regiões mais centrais, ele pode ser servido puro, com manteiga, azeite ou em formato de sanduíche.

“Aqui na rua principal de Valeta servimos muitos sanduíches de Ftira embalados para viagem. Assim, os clientes conseguem levar para a praia ou piscinas naturais da ilha”, conta a empresária Luana Gaudeano.

Luana é italiana e é sócia da lanchonete The Submarine. Junto com seu esposo, decidiu empreender em Malta. Segundo ela, é bastante comum esse intercâmbio entre a gastronomia italiana e a maltesa, pela proximidade geográfica.

Mas, mesmo tentando servir outras receitas, o carro-chefe da lanchonete segue sendo o sanduíche de Ftira.

Crédito, Raquel Cintra Pryzant

“O Ftira é interessante também desde um ponto de vista turístico, é o pão mais popular entre os estrangeiros”, conta Luana.

Em meio ao pessimismo da perda desse saber tradicional, a recente nomeação do Ftira como patrimônio da Unesco parece trazer alguma esperança.

Os padeiros-artesãos acreditam que, mesmo com a industrialização da produção do Ftira, ainda haverá espaço para aqueles que chegam até a ilha em busca do sabor autêntico de um pão feito da mesma forma há mais de 500 anos.

Onde encontrar o Ftira em Malta

CARMELO MICALLEF BAKERY

2, Triq San Trofimu, Tas-Sliema, Malta

35621340628

TA KALC PAUL’S BAKERY

56, Triq L-Isqof Scicluna, Ħal Qormi, Malta

356 7747 5502

THE SUBMARINE SANDWICHS

42, Triq il-merkanti, Il-Belt Valletta VLT 1173, Malta

356 7706 4944