- Author, Mariana Sanches
- Role, Da BBC News Brasil em Washington (EUA)
Depois de anos de relações mornas resultantes de ruídos causados pelo governo Bolsonaro tanto com americanos quanto com chineses, o Brasil vai se consolidando como a nova trincheira da disputa de influência e poder entre Estados Unidos e China.
As duas superpotências vivem um momento tenso em sua competição econômica e política, com troca de acusações de espionagem e difamação que ameaçam descambar para um conflito militar em Taiwan — que a China vê como seu território e que os EUA encaram como independente.
Nesse contexto, chineses e americanos competem pela lealdade do Brasil. Para os americanos, a boa relação com os brasileiros é fundamental para ter um aliado de peso na América Latina (já que as relações com México e Colômbia estão instáveis) e avançar o combate às mudanças climáticas e a promoção da democracia, duas pautas centrais na agenda do governo Biden.
Para os chineses, o Brasil é um importante mercado consumidor, um grande exportador de alimentos, e, se não um completo aliado em assuntos internacionais, ao menos um país relevante e não alinhado – em um momento em que Europa Ocidental, Austrália, Japão e Coréia do Sul fecharam questão com os americanos e a China se encontra em um incômodo polo nesta bipolaridade global.
Com o mote de que o “Brasil voltou”, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva tenta reconstruir uma relação robusta e privilegiada com as duas nações (primeiro e segundo maiores parceiros comerciais do Brasil) – e se esquivar das pressões e constrangimentos que surgem nessa aproximação simultânea.
Com apenas 40 dias de governo, o presidente Lula foi a Washington se encontrar com o presidente americano Joe Biden. E, 40 dias mais tarde, será recebido em jantar em Pequim pelo presidente chinês, Xi Jinping, no próximo dia 28.
“Se os dois gigantes quiserem brigar para saber quem será o melhor parceiro para o Brasil, só temos a ganhar”, afirmou reservadamente à BBC News Brasil uma das integrantes da comitiva presidencial brasileira.
Mal estar entre os americanos
Às vésperas do embarque de Lula para a China, a comissão de relações exteriores do Senado dos EUA convidou autoridades do governo Biden para uma discussão sobre o “futuro das relações entre EUA e Brasil”. É a primeira vez em anos que o Legislativo americano toma tal iniciativa, o que diplomatas brasileiros viram como um sinal do novo patamar de importância que Washington dá a Brasília.
Na audiência, porém, tanto congressistas (dos dois partidos) quanto membros do Executivo expressaram mal-estar com a aproximação entre Brasil e China.
“O governo Biden está fazendo o suficiente para desencorajar países como o Brasil de buscarem investimentos e comércio com a China?’, questionou o senador republicano Pete Ricketts (Nebraska), que chegou a citar a Doutrina Monroe, de 1823, que preconizava ser dos EUA o papel de liderança política nas Américas, “alertando potências contra a interferência no Hemisfério Ocidental”, nas palavras de Ricketts.
Na mesma linha, a senadora Jeanne Shaheen, democrata de New Hampshire, notou que o Brasil é um dos únicos países na região a não ter aderido à iniciativa chinesa “Cinturão e Rota”, de empréstimos para desenvolvimento de infraestrutura. Argentina e Chile, por exemplo, já estão no programa, também conhecido como “nova rota da seda”. Segundo ela, esta seria uma “oportunidade para os EUA se destacarem”.
O senador Benjamin Cardin, Democrata de Maryland, reforçou a questão: “O Brasil tem hoje uma quantidade incrível de parcerias com a China. Qual é a nossa estratégia para tentar minimizar a influência da China no Brasil e em nosso hemisfério? Em que estamos trabalhando – não apenas em ações governamentais, mas em atividades do setor privado – para contrapor o que a China está fazendo?”, questionou.
“Você está preocupado com o que a China tem feito em relação à América Latina e o Brasil?”, resumiu Ricketts.
“Com certeza”, respondeu o Secretário-Assistente de Estado para o Hemisfério Ocidental, Brian Nichols, para depois completar: “Estamos focados em demonstrar que os EUA são o melhor parceiro para os países de toda a região, principalmente o Brasil. Os EUA são a maior fonte de investimento estrangeiro direto no Brasil, gerando oportunidades de trabalho de alta qualidade e crescimento para o benefício de nossos dois povos”.
Já Richard Duke, vice-enviado especial para o Clima, reconheceu o tamanho do desafio para a política externa americana de Biden.
“A China é hoje o maior parceiro comercial do Brasil e o maior mercado para muitas das commodities brasileiras. Também é o maior investidor em projetos de infraestrutura. A China investiu em construir fortes relações com legisladores e outros líderes brasileiros. Há uma forte base pró-China no país”.
Correria x Coreografia
Para Ryan Berg, diretor do programa de Américas do Center for Strategic and International Studies, em Washington D.C., os EUA veem o Brasil na “linha de frente” de sua rivalidade com a China.
“O governo americano vai acompanhar esta viagem muito de perto, talvez mais de perto do que qualquer outra que Lula faça”, afirmou Berg à BBC News Brasil.
E o que Washington viu até agora certamente inspirou preocupação. Enquanto Lula passou menos de 48 horas em território americano, em fevereiro, na China ele ficará ao menos 5 dias.
Se aos EUA Lula veio acompanhado de uma comitiva enxuta de ministros, à China ele irá com boa parte da equipe ministerial, os presidentes da Câmara (Deputado Arthur Lira) e do Senado (Senador Rodrigo Pacheco), além de mais 30 parlamentares e centenas de empresários (incluindo mais de cem do agronegócio).
“Essa disparidade é uma prova do peso que a China assumiu nas últimas décadas e das oportunidades potenciais que o país representa em um contexto em que os EUA têm dificuldade de fazer aportes e propostas viáveis e alternativas para o desenvolvimento na América Latina”, afirma Fernanda Magnotta, especialista na relação EUA – Brasil – China e coordenadora de Relações Internacionais da FAAP.
E se a visita de Lula a Biden teve um clima de “correria”, sem anúncio de acordos e sem visita ao Capitólio, a agenda em Pequim deve ser cuidadosamente “coreografada”, com Lula sendo recebido na Assembleia Nacional Popular e em jantar pelo líder Xi Jinping. Na mesa, há ao menos 30 acordos em negociação, cujos temas variam de desenvolvimento de satélites à preservação ambiental – embora ainda não se saiba quantos e quais serão assinados por Xi e Lula.
“O mais importante não são as assinaturas, mas o enorme simbolismo político da viagem, a primeira de um líder estrangeiro após a recondução do Xi para um terceiro mandato. Não é por acaso, há um peso grande dado ao Brasil. Cada detalhe da visita de Estado tem sido preparada para ser vista como uma refundação das relações Brasil-China”, afirma um alto diplomata brasileiro com conhecimento das negociações.
Para os americanos, dois temas são especialmente sensíveis. O primeiro é a possibilidade de que o Brasil aceite fazer parte da Iniciativa Cinturão e Rota. Embora espere o convite, é improvável que o governo Lula aceite, até porque mesmo sem o instrumento o Brasil já foi, em 2021, o maior destino de investimentos da China no exterior (com aporte de quase US$6 bilhões).
O segundo, sobretudo pelo simbolismo, seria uma doação mais robusta do que os US$50 milhões que os americanos ofereceram ao Fundo Amazônia em fevereiro. Embora defenda ser prioridade para seu governo, Biden depende do Congresso americano para fazer esse tipo de aporte, em uma negociação que não tem se mostrado fácil. O valor foi considerado tão inexpressivo pelos brasileiros que foi excluído da declaração conjunta dos dois países após o encontro presidencial de fevereiro.
“Acho bem possível que os chineses façam um gesto à Amazônia para fustigar os americanos em uma prioridade que é nossa”, disse reservadamente à BBC News Brasil um alto representante da diplomacia americana.
Por iniciativa brasileira, Brasil e China estudam a implantação de um mecanismo ambiental formal nos moldes daqueles que os brasileiros já possuem com os EUA e a Europa. Mas uma doação direta dos chineses ao Fundo Amazônia é vista como improvável pelos negociadores brasileiros até agora.
Por outro lado, ao menos dois projetos com a China que possivelmente serão anunciados na viagem devem tocar o tema da sustentabilidade. Um deles é a possível compra da planta da montadora americana Ford, em Camaçari (Bahia), pela fabricante chinesa de carros elétricos BYD.
“Simbolicamente, a saída de uma empresa deles para a chegada de uma chinesa é algo que pega para os americanos”, diz Magnotta.
Embora seja um negócio privado, o empresariado chinês se orienta fortemente com vistas às relações internacionais valorizadas por Pequim e é comum que os presidentes estejam presentes em reuniões com empresários dos dois países, para facilitar os negócios.
O outro projeto é a construção do satélite sino-brasileiro Cbers-6, capaz de produzir boas imagens da Terra mesmo em dias chuvosos, o que representaria um ganho no monitoramento do desmatamento da Amazônia, além de uma possibilidade de transferência tecnológica da China ao Brasil.
“O dilema dos americanos é como se fazer competitivo em termos de influência econômica e política se tudo o que oferecem é um apoio de capacitação, com recursos do Banco Interamericano de Desenvolvimento e do DFC (U.S. International Development Finance Corporation), mas sem aportes significativos de dinheiro e tendo do outro lado os chineses despejando dinheiro. Fica muito difícil pros EUA sustentarem a posição de competidor estratégico, tanto que os programas recentes de desenvolvimento na região, como o ‘América Cresce’, lançado pelo Trump, nunca deram em nada”, explica Magnotta, citando o programa americano criado para rivalizar com a Iniciativa Cinturão e Rota.
Na ausência de recursos, os americanos têm oferecido visitas e simpatia. Em fevereiro, o Enviado Climático de Biden, John Kerry, esteve em Brasília para se encontrar com a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, e o vice-presidente Geraldo Alckmin.
Em março, foi a vez da Representante Comercial dos Estados Unidos, Katherine Tai, que também esteve com Alckmin, e com o chanceler Mauro Vieira. Em abril, uma delegação de senadores, comandada por Bob Menendez, irá ao país. E até o meio do ano, espera-se a inédita visita do Secretário de Estado Antony Blinken, acompanhado de Nichols.
O próprio Biden cogita ir ao Brasil, possivelmente no início do próximo ano, quando as relações entre Brasil e EUA completarão 200 anos.
O Brasil responde aos americanos reafirmando valores caros aos dois países (como democracia, direitos humanos e meio ambiente) e sendo o único país do bloco dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) a condenar a invasão russa à Ucrânia nas Nações Unidas, posição patrocinada pelos EUA.
Enquanto isso, aprofunda os laços econômicos com a China, visto pelo governo Lula como a possível financiadora para a reindustrialização do país, operada a partir de uma lógica sustentável.
“A missão do Lula é se equilibrar nessa linha tênue: mobilizar os símbolos das nossas semelhanças históricas e culturais com os EUA para garantir esse apoio ao mesmo tempo em que lança mão da ‘carta China’ que oferece oportunidades melhores de desenvolvimento, mas na dose certa para não ser visto como pária pelos americanos”, resume Magnotta.
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