- Author, Dalia Ventura
- Role, BBC News Mundo
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A 50 km das águas do Caribe colombiano, na praça de um povoado isolado entre as montanhas, uma expressiva escultura homenageia a memória de um herói excepcional.
Benkos Biohó é descrito como um homem “animado, valente e ousado” que, no final de 1599, comandou “uma revolta e retirada de certos negros fugitivos”, segundo o cronista espanhol Fray Pedro Simón.
A palavra “cimarrón” (fugitivo, em espanhol) usada pelo frade franciscano ao descrever Biohó já conta parte desta história.
Segundo o Dicionário da Real Academia Espanhola: “Cimarrón: Diz-se do escravo ou do animal doméstico que foge para o campo e se torna selvagem.”
A palavra evoca séculos de exploração cruel de milhões de africanos que foram arrancados de seus lares e levados para o outro lado do mundo para serem vendidos e tratados como objetos a serviço de seus senhores.
Mas também fala de rebeliões ousadas.
Benkos Biohó – junto com sua esposa Wiwa, seus filhos e cerca de trinta homens e mulheres – liderou um desses levantes. Seu grupo fugiu de Cartagena das Índias, cidade portuária na costa caribenha da Colômbia, e derrotou guardas enviados para capturá-los.
Na fuga, eles não pararam até chegar a esse lugar entre os Montes de María, que em 1714, após mais de um século de luta, foi legalizado, por decreto real, com o nome de San Basilio de Palenque – palenque é o termo em espanhol equivalente a “quilombo” em português.
É aqui, na praça central, que se ergue atualmente o monumento em homenagem ao herói.
“O palenque de San Basilio não foi o primeiro nem o único, mas é o mais conhecido por sua estratégia libertária e porque foi comandado pelo rei Biohó e, finalmente, porque se tornou a primeira cidade livre da América”, explica Emilia Eneyda Valencia Murrain, fundadora da Associação de Mulheres Afro-Colombianas (Amafrocol), à BBC Mundo, serviço da BBC em espanhol.
Enquanto outros palenques desapareceram com o tempo, San Basilio conservou uma parte importante do seu legado ancestral. Muito desse legado foi transmitido entre gerações através da tradição oral, que mantém viva a memória de que Benkos Biohó não esteve sozinho na sua façanha.
E que sem a ajuda de sua esposa e outras mulheres teria sido muito mais difícil encontrar o caminho para a vitória.
Foi a astúcia dessas mulheres que criou um sistema de codificação para mostrar aos escravizados os caminhos para a liberdade sem que seus subjugadores percebessem.
Memorizando a paisagem
Sequestrados e transportados, os africanos vieram para a América para deixar de ser e apenas servir.
Mas, por mais que tentassem despojá-los de qualquer traço de humanidade, essa é uma qualidade obstinada que permanecia tanto na nostalgia do que lhes fora arrancado, quanto no desejo de escapar do inferno.
Quando a única alternativa era fugir, em um lugar que lhes era tão alheio, como saber para onde ir?
Na costa caribenha do chamado Novo Reino de Granada, mulheres escravizadas inventaram uma maneira discreta e genial de criar e esconder – ainda que à vista de todos – mapas de orientação para espaços de liberdade.
As mulheres não despertavam tanta suspeita.
Além disso, tendiam a sair mais de seus ambientes do que os homens devido às tarefas que lhes eram atribuídas.
“Normalmente, o potencial, a sabedoria e a astúcia das mulheres são subestimados e é por isso que, no caso da Colômbia, elas conseguiram guardar muitos segredos, para depois usá-los a favor das comunidades: segredos de cura, culinária, plantação”, afirma Emilia Valencia.
“Isso foi em parte o que aconteceu com esse processo libertário do palenque de San Basilio”, diz ela, que ouviu a história de palenqueras quando foi investigar “muitos, muitos anos atrás”.
“Elas me contaram que o lugar nasceu porque, quando as mulheres iam de fazenda em fazenda, fosse para fazer uma tarefa ou qualquer outra coisa, elas prestavam atenção nas estradas e nos pontos-chave”, conta a fundadora da Amafrocol.
“Então elas transmitiam isso aos homens e, juntos, eles traçavam a estratégia.”
De raiz
“É preciso lembrar que os escravizados vinham de diferentes regiões da África, falavam línguas distintas, e no início era difícil para todos se entenderem.”
Mas havia uma linguagem comum que eles trouxeram de seu continente de origem.
“O que chamamos de ‘tranças de raiz’, aquela que fica presa no couro cabeludo, que são próprias dos povos africanos.”
E essas tranças falavam: contavam histórias, declaravam a condição social de quem as usava, deixavam claro seu estado civil, a religião que professavam, identificavam-nas como membros de determinadas comunidades ou etnias.
No Novo Mundo, elas começaram a falar sobre liberdade.
“Após combinarem com os homens, elas concordaram que iam usar as tranças, os penteados, como um código secreto que indicava os caminhos por onde deveriam escapar.”
As escravizadas tornaram-se cartógrafas sem lápis nem papel, criando e usando na cabeça mapas desenhados com cabelos.
“Foi assim que elas desenharam o que é conhecido como os famosos mapas de fuga ou a rotas de liberdade”, diz Valencia.
E não só isso.
Nesses penteados, as mulheres também guardavam objetos valiosos que seriam úteis quando chegassem aos palenques, como fósforos, grãos de ouro ou sementes preciosas para o cultivo.
Trançados para acorrentados
Para planejar as fugas, as mulheres se reuniam em torno das cabeças das mais jovens, nas quais desenhavam seus mapas.
“Elas desenhavam com tranças, por exemplo, uma trança enrolada indicava uma montanha; aquelas que eram como cobras, sinuosas, indicavam que havia uma fonte de água – um riacho ou um rio –; uma trança grossa indicava que naquela seção havia um destacamento de soldados”, explica Valência.
“Os homens ‘liam’ os códigos que elas usavam em seus penteados, desde a testa, que demarcava o local onde se encontravam, até a nuca, que representava a montanha, o local para onde deveriam ir em sua fuga”, destacou no estudo Poética do penteado afro-colombiano (2003) a socióloga Lina María Vargas.
Quem lhe contou foi Leocádia Mosquera, professora do departamento de Chocó, no oeste da Colômbia, que aprendeu o segredo dos penteados com sua avó.
Ela revelou que não se tratava apenas de representar características geográficas ou alertar sobre a presença de postos de vigilância: com suas cabeças criptografadas elas deveriam comunicar a todos qual era a estratégia.
As tranças também indicavam pontos de encontro, marcados com várias fileiras de tranças convergindo no mesmo local, cada uma representando um caminho possível.
Nesses pontos eles se encontravam durante a fuga para saber como estavam e tomar decisões.
O último ponto ficava na nuca.
Segundo explicou Leocádia, se – por exemplo – iam se encontrar debaixo de uma árvore, arrematavam a trança na vertical e para cima, para que ficasse em pé; se fosse à margem de um rio, eles a aplainavam na direção das orelhas.
Além disso, às vezes havia tranças de comprimentos diferentes ao longo dos mesmos caminhos, dizendo a grupos diferentes até onde deveriam ir, pois os mais forte tinham de proteger a retaguarda.
Todas essas informações e muitas outras foram passadas pelas cidades e campos da Colômbia colonial à vista de todos, mas para compreensão de apenas alguns.
A outra libertação
Infelizmente, esses penteados de libertação com o tempo se tornaram uma fator de estigma.
“Algo particular aconteceu”, diz Valencia.
“As palenqueras ajudaram a formar cidades com sua arte. Mas depois houve uma ruptura com os penteados”, afirma.
“Por quê? Porque quando elas estavam aparentemente livres e começaram a se integrar à sociedade, foram obrigadas a abrir mão de seus penteados, aquilo que era sua tradição, sua cultura.”
Embora algumas descendentes tenham recebido esse legado graças a histórias passadas de geração em geração, muitas tiveram que mantê-lo na esfera privada, e muitas outras nunca descobriram sua própria história ancestral.
“Houve uma demanda dos empregadores e da sociedade em geral para unificar um modelo hegemônico de estética, de beleza, então as mulheres negras eram obrigadas a alisar o cabelo.”
Desde então, diz Valencia, “tudo passa pelo cabelo… a violência começa desde o jardim de infância”.
“Tem sido difícil, mas estamos avançando, graças aos diálogos, aos fóruns, a todos os processos formativos e culturais”, diz ela.
“Conseguimos descolonizar mentes e corpos e agora é maravilhoso ver como temos uma vice-presidente negra [Francia Elena Márquez Mina] e uma ministra [da Educação, Aurora Vergara Figueroa]”, comemora a ativista.
“A ministra Aurora me ligou para agradecer ‘por ter me ajudado no meu autorreconhecimento’, segundo me disse, porque ela também era uma das que alisava o cabelo, e era difícil para ela. Mas agora, ela está muito feliz mostrando toda sua ‘pretitude’ – como chamamos a expressão máxima da negritude – em público.”
“Para as mulheres negras, passar por esses procedimentos químicos de alisamento e outros, apenas para tentar se encaixar, acredite, é muito traumático e muito, muito doloroso”, conclui Valencia.
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