Peixes do grupo Chondrichthyes, os tubarões estão enraizados no imaginário popular como grandes e temidos predadores – não à toa, são conhecidos como “rei dos oceanos”. Produções da cultura pop, como o filme “Tubarão” (1975), de Steven Spielberg, e os recentes incidentes com banhistas e surfistas documentados em Pernambuco, além da ocorrência em diversos outros pontos do planeta, ajudam a manter o estigma de vilão sobre o animal. Especialistas lembram, no entanto, que os tubarões estão no seu habitat e o ser humano precisa aprender a respeitar, assim como conviver.
No Estado, que por razões como degradação ambiental e topografia subaquática tem registrado uma série de incidentes, sendo os três mais recentes nas últimas semanas, as espécies mais frequentes são tigre e cabeça-chata. A reportagem conversou com o biólogo Daniel Senna e o doutor e engenheiro de Pesca pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) Jonas Rodrigues, membro da Sociedade Brasileira para o Estudo de Tubarões e Raias, para detalhar as características dos animais e entender como se comportam.
A espécie envolvida no primeiro caso, de um surfista de 32 anos em Olinda, mordido em 20 de fevereiro, entre as praias de Del Chifre e Milagres, foi um cabeça-chata. A dos dois casos seguintes, dois adolescentes de 14 e 15 anos, na praia de Piedade, em Jaboatão dos Guararapes, em 5 e 6 de março, ainda não foi divulgada pelo Comitê Estadual de Monitoramento de Incidentes com Tubarões (Cemit). A suspeita é de que tenha sido, em ambos os casos, tubarão-tigre.
Jonas Rodrigues diz que 82 espécies ocorrem no Litoral do Nordeste, sendo que as “potencialmente agressivas” são justamente tigre e cabeça-chata. As espécies são assim chamadas por causa do tamanho e nível de predação. “Podem chegar a zonas bem rasas, 50 metros, 30 metros. O cabeça-chata por exemplo entra nas zonas de manguezais e têm interação muito forte com a zona costeira”, explica.
Em relação aos incidentes, Daniel Senna afirma que os tubarões têm preferência por carnes brancas sem pigmento vermelho do sangue humano, que contém ferro. “Eles geralmente cospem [a carne humana]. Esses casos ocorrem pelo que chamamos de mordida exploratória. Tubarões são míopes, enxergam tudo embaçado à distância, logo, percebem o movimento e pequenas descargas elétricas que os seres vivos produzem no sistema nervoso para identificar possíveis presas”, detalha.
O biólogo também defende que não deveria mais existir balneário em mar aberto nas regiões ao norte do Porto de Suape, onde se concentram a maior quantidade de incidentes. “Recomendo apenas banho em locais com recifes, protegendo dos ataques. Por isso o Buraco da Velha, no Pina, faz tanto sucesso. O povo ali está certo. Esse segundo ataque demonstra claramente um desequilíbrio generalizado nos ecossistemas estuários e marinhos na costa de Pernambuco. Os tubarões estão, sim, passando fome”, completa Senna.
Tubarão-tigre (Galeocerdo cuvier)
O comportamento do tubarão-tigre pode variar dependendo da sua localização geográfica, idade, sexo, tamanho e disponibilidade de alimento. No entanto, existem alguns comportamentos comuns observados nesta espécie, segundo Daniel Senna.
“O tubarão-tigre é um predador oportunista e pode se alimentar de uma ampla variedade de presas, incluindo peixes ósseos, tartarugas marinhas, aves marinhas, mamíferos marinhos e até mesmo outros tubarões. Eles são conhecidos por serem vorazes comedores e podem consumir até 90 quilos de comida em uma única refeição”, detalha.
Os tubarões-tigres são animais solitários e geralmente são encontrados sozinhos ou em pequenos grupos. Eles também são conhecidos por serem territoriais e podem defender sua área de alimentação ou área de descanso agressivamente contra outros tubarões ou predadores. Os exemplares da espécie costumam atingir até 6 metros de comprimento, com média entre 3 e 4 metros, e até 600 quilos. Podem viver até os 50 anos.
Os animais desta espécie também são conhecidos por realizarem migrações de longa distância, movendo-se entre áreas de alimentação e áreas de reprodução. “Por exemplo, na Austrália, os tubarões-tigres viajam para o sul durante o verão e retornam para o norte durante o inverno”, completa o biólogo.
O tubarão-tigre é considerado uma das espécies de tubarão mais perigosas para os seres humanos devido ao seu comportamento agressivo. “Eles são conhecidos por morder pessoas e barcos e podem seguir os mergulhadores por longas distâncias. No entanto, os ataques aos seres humanos são relativamente raros e geralmente ocorrem quando os humanos entram em seu território ou quando os tubarões confundem as pessoas com suas presas naturais”, detalha Daniel Senna.
Tubarão-tigre (GIF: Reprodução)
Tubarão-cabeça-chata (Carcharhinus leucas)
Predador oportunista assim como o tigre, o tubarão-cabeça-chata se alimenta de uma ampla variedade de presas, incluindo peixes ósseos, crustáceos, moluscos e outros tubarões. As fêmeas dessa espécie podem chegar a quase 3,5 metros de comprimento e 250 a 300 quilos e viver por até 16 anos. Os machos costumam ser menores.
“Eles também são conhecidos por se alimentarem de animais terrestres, como gado e cervos, quando estes entram na água”, explica Daniel Senna.
Solitários, os cabeça-chata também pode ser encontrados em pequenos grupos. Por serem territorialistas, podem defender sua área de alimentação ou área de descanso agressivamente contra outros tubarões ou predadores.
“O tubarão-cabeça-chata é capaz de se adaptar à água doce e pode migrar por rios e estuários em busca de alimento ou áreas de reprodução. Eles também podem migrar por longas distâncias em águas costeiras”, completa o biólogo.
Os cabeças-chatas ainda são considerados uma das espécies de tubarão mais perigosas para os seres humanos por causa do comportamento agressivo. “Eles são conhecidos por atacar humanos e outros animais de forma surpreendente e sem aviso prévio. Esse comportamento pode ser influenciado pela presença de alimentos, estresse ou proteção do território”, frisa.
“É importante estar ciente da presença desses animais em áreas costeiras e estuarinas e tomar precauções adequadas para minimizar o risco de encontros perigosos”, finaliza Daniel Senna.
Tubarão-cabeça-chata (GIF: Reprodução)
Dentes e a mordida do tubarão
O impacto da mordida do tubarão, tanto do cabeça-chata quanto do tigre, pode chegar a até três toneladas. Chamados de polifiodontes, seres com dentes “infinitos”, os tubarões perdem dentes a cada alimentação – esses dentes são repostos. “Por isso, ele tem várias fileiras de dentes. A boca de um tubarão adulto abarca metade do abdômen do ser humano, por isso o perigo”, alerta Daniel Senna.
“No momento em que ele reconhece que é uma presa que não faz parte do hábito alimentar dele, já não se interessa mais. A maioria das vítimas em Pernambuco tem apenas uma mordida. Quem tem mais de uma mordida é geralmente quem entrou em luta corporal”, completa Jonas Rodrigues, que reforça a questão da mordida exploratória.
Para a quebra do estigma de vilão atribuído ao tubarão, o engenheiro de Pesca defende a educação ambiental como principal atributo para uma mudança de visão.
“A população precisa entender qual é o papel desse animal na cadeia alimentar, no ecossistema. Não é uma máquina mortífera de seres humanos, não está no mesmo habitat. A gente tem o cinema, que passa aquela imagem de máquina mortífera que virava navios para comer seres humanos, mas, na verdade, isso não acontece”, pontua Jonas, acrescentando que os tubarões têm um papel importante na saúde do ambiente marinho.
Placas espalhadas no Litoral pernambucano orientam para o risco de banho de mar (Foto: Melissa Fernandes/Folha de Pernambuco)
Histórico
Desde 1992, quando o Cemit começou a catalogar os incidentes, 77 banhistas e surfistas foram mordidos por tubarões no Litoral de Pernambuco. Nos anos das primeiras ocorrências, especialistas dedicaram-se a entender quais tubarões estavam presentes na costa. O monitoramento identificou outras espécies presentes além de cabeça-chata e tigre, como flamengo, galha-preta, azeiteiro, sucuri, lixa, rabo-seco, rabo-fino e martelo.
À época, o Laboratório de Oceanografia Pesqueira da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) apontou como prováveis responsáveis pelo aumento no número de incidentes:
– Elevação do número de surfistas e banhistas
– Presença de arrasto de camarão com rejeito próximo às praias
– Topografia da região, caracterizada por um canal adjacente à praia
– Mudanças climáticas
– Porto de Suape, no Litoral Sul, que resultou em impacto ambiental e aumento no tráfego pesqueiro
Áreas portuárias, inclusive, são consideradas zonas potencialmente perigosas em função de uma maior abundância de tubarões atraídos pelo lixo que os navios costuma despejar no mar. Desde 1999, trecho do Litoral entre Paulista e o Cabo de Santo Agostinho, que inclui o Recife, Olinda e Jabotão dos Guararapes, é proibido para esportes náuticos, como surf, body boarding e similares desde 1999 por um decreto estadual.
Praia de Piedade, em Jaboatão dos Guararapes, é o trecho do Litoral de Pernambuco com mais incidentes com tubarão já catalogados pelo Cemit (Foto: Alexandre Aroeira/Folha de Pernambuco)
E o que pode ter causado os casos recentes?
O Instituto Praia Segura alertou para questões que podem ter influenciado a sequência recente de incidentes, como dragagens feitas na área do Porto do Recife e em Barra de Jangada. Jonas Rodrigues defende a tese de que atividades humanas podem ter, sim, contribuído, mas o retorno efetivo só poderá ser dado quando saírem resultados de pesquisas.
“A questão das mudanças climáticas é muito importante, como na questão das mudanças das correntes, aquecimento e resfriamento de águas, mudança da dinâmica de hábitat de algumas espécies, isso pode ser um fator atrativo para os fatores. O fator mudança climática pode ser um item relevante, é uma das coisas que a gente está direcionando nos estudos”, completa Jonas.
O Governo do Estado anunciou, na quinta-feira (9), um investimento de R$ 2 milhões em pesquisas e prevenção junto a universidades. A expectativa é ter resultados a curto, médio e longo prazos.
“A mensagem que fica para nós, pernambucanos afetados pelo tema, é que felizmente temos a união de muitas instituições e um acúmulo de conhecimento, de décadas, no assunto, e de muito material que já foi produzido. Com este incentivo vamos avançar com as pesquisas”, salientou a secretária de Meio Ambiente, Sustentabilidade e Fernando de Noronha, Ana Luíza Ferreira.
O aporte financeiro possibilitará o início da segunda fase do Projeto Megamar, que prevê a instalação de dez receptores acústicos na área de estudo. As pesquisas, segundo o Governo do Estado, ainda incluem 24 expedições para captura e marcação de tubarões das espécies tigre, cabeça-chata e galha preta, além da aplicação de 30 receptores acústicos e 32 ações de educação ambiental, entre palestras, exposições e campanhas com banhistas. Em até três meses, é esperada a avaliação da densidade de tubarões em quase todas as áreas onde há maior chance de registros de incidentes.
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