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Joias avaliadas em cerca de R$ 16,5 milhões foram enviadas pelo governo da Arábia Saudita quando Michelle ainda era primeira-dama

Pelo menos três crimes pode vir a ser investigados no caso das joias avaliadas em cerca de R$ 16,5 milhões que foram enviadas pelo governo da Arábia Saudita ao Brasil e teriam como destinatária a então primeira-dama Michelle Bolsonaro.

No ano passado, um funcionário da Receita Federal confiscou um colar, um anel, um relógio e um par de brincos de diamantes avaliados em 3 milhões de euros (aproximadamente R$ 16,5 milhões), que seriam destinados à ex-primeira-dama.

Os objetos valiosos estavam com um integrante da comitiva do Ministério de Minas e Energia , que desembarcou no Aeroporto de Guarulhos em outubro de 2021, após uma viagem oficial ao Oriente Médio.

Elas foram confiscadas porque não haviam sido declaradas como item pessoal, sujeito a pagamento de imposto, nem como presente oficial para o Estado brasileiro.

O caso foi revelado na sexta (03/03) pelo jornal O Estado de S. Paulo. O ministro da Justiça, Flávio Dino, pediu nesta segunda (06/03) que a Polícia Federal que investigue a possível tentativa do governo Bolsonaro de trazer ilegalmente as joias ao Brasil.

Mas quais crimes podem ter sido cometidos?

Peculato, descaminho, lavagem de dinheiro

O ofício encaminhado pelo ministro da Justiça à PF diz: “Os fatos, da forma como se apresentam, podem configurar crimes contra a Administração Pública tipificados no Código Penal, entre outros. No caso, havendo lesões a serviços e interesses da União, assim como à vista da repercussão internacional do itinerário em tese criminoso, impõe-se a atuação investigativa da Polícia Federal.”

O documento não menciona os crimes que podem ter sido cometidos. Mas, em entrevista no fim de semana, Flávio Dino foi mais específico e disse que Polícia Federal deve investigar a ocorrência de três: descaminho, peculato e lavagem de dinheiro.

Descaminho é a tentativa de driblar “no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria”. A pena é de 1 a 4 anos de prisão.

Segundo a lei brasileira, mercadoria trazida do exterior que custe mais de US$ 1.000 deve ser declarada à Receita Federal e aplica-se um imposto de 50% sobre o valor excedente.

Se o bem não for declarado e o agente da Receita Federal confiscar, além do imposto de 50%, a pessoa tem de pagar multa de 100% sobre o valor excedido.

Em caso de presente oficial dado a autoridade brasileira, esse imposto não se aplica, mas o bem teria que ser declarado como patrimônio da União, o que não foi feito pelo funcionário do Ministério de Minas e Energia.

O outro crime que, segundo Dino, pode ter sido cometido neste caso é o de peculato, quando um funcionário público se apropria ou tenta se apropriar “de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo” ou desvia esse bem em proveito próprio ou alheio. A pena é de 2 a 12 anos de prisão.

Já lavagem de dinheiro é a tentativa de ocultar a origem ilícita de um bem. A pena neste caso é de 3 a 10 anos.

Desde que as joias foram apreendidas pela Receita, houve várias tentativas de reavê-las durante o governo Bolsonaro, envolvendo o Ministério de Minas e Energia, o Itamaraty, o gabinete pessoal de Jair Bolsonaro e o chefe da Receita Federal.

Mas servidores da Receita resistiram às ordens e aos apelos, e não entregaram as joias, que permanecem nos cofres da instituição em São Paulo.

O que diz a lei sobre presentes de governo estrangeiros

Conforme o decreto 4.344/2002, presentes recebidos em cerimônias oficiais de trocas de presentes com chefes de Estado e de governo são considerados patrimônio da União.

Ou seja, não se tornam patrimônio pessoal do presidente da República ou da primeira-dama. Os presentes são catalogados pela Diretoria de Documentação Histórica da Presidência da República, que cuida do acervo presidencial durante o mandato.

Após o fim do mandato, o ex-presidente fica responsável pela conservação dos bens recebidos durante o seu período de governo, com apoio Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Mas, em 2016, o Tribunal de Contas da União determinou que todos os documentos e presentes recebidos por presidentes desde 2002 devem ser incorporados ao patrimônio da União – mesmo que não tenham sido entregues em cerimônias formais de trocas de presentes.

Só podem ser consumidos e incorporados como patrimônio pessoal “itens de natureza personalíssima ou de consumo próprio”, como doces, frutas, bebidas, medalhas ou outros itens com nomes gravados.

Ou seja, ainda que estejam sob os cuidados dos ex-presidentes após o fim do mandato, os presentes dados por autoridades estrangeiras devem ser considerados bens da União e ex-presidentes não podem vendê-los ou doá-los.

O que disseram Bolsonaro e Michelle

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Michelle e Jair Bolsonaro no funeral da rainha Elizabeth, em 2022

Nos Estados Unidos, onde está desde o final de dezembro, Bolsonaro falou com jornalistas sobre o caso das joias.

Ele afirmou que Michelle Bolsonaro poderia vir a usar as joias, mas garantiu que elas seriam incorporadas ao acervo da Presidência da República, embora o servidor do Ministério de Minas e Energia tenha trazido os bens sem declarar.

“(As joias) iriam para o acervo e seriam entregues à primeira-dama. E o que diz a legislação? Ela poderia usar, não poderia desfazer-se daquilo”, disse o ex-presidente a jornalistas após participar do CPAC (Conferência conservadora da direita americana), que está sendo realizada em um hotel na região metropolitana de Washington D.C.

A ex-primeira-dama negou ser dona das joias. “Quer dizer que eu tenho tudo isso e não estava sabendo? Meu Deus! Vocês vão longe mesmo hein? Estou rindo da falta de cabimento dessa imprensa vexatória”, publicou Michelle no Instagram.

O trajeto das joias

Segundo a reportagem do Estadão, as joias foram encontradas por agentes da Receita Federal em outubro de 2021 na mochila do militar Marcos André dos Santos Soeiro, então assessor do ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, em seu retorno ao país após a visita à Arábia Saudita.

Um dia antes das joias chegarem ao Brasil, Bolsonaro se encontrou com o embaixador saudita Ali Abdullah Bahittam em Brasília, segundo o jornal O Globo.

Os dois participaram de um almoço na embaixada junto com o filho do ex-presidente, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), e o ex-ministro das Relações Exteriores, Carlos França na residência do embaixador, além de outros diplomatas de países do Oriente Médio.

O encontro não constou na agenda pública de Bolsonaro ou de França na época, segundo o jornal O Globo, e o Planalto também não teria divulgado o que foi tratado no almoço.

Albuquerque negou qualquer irregularidade e disse que as joias seriam “devidamente incorporadas ao acervo oficial brasileiro”. No entanto, as peças foram retidas pela Receita Federal, que negou que o governo federal tenha pedido na época para incorporá-las ao acervo.

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O ex-ministro Bento Albuquerque disse que as joias seriam ‘devidamente incorporadas ao acervo oficial brasileiro’

“Eu agora estou sendo crucificado no Brasil por um presente que não recebi”, disse Bolsonaro no fim de semana. “Eu estava no Brasil quando esse presente foi oferecido lá nos Emirados Árabes (sic) para o ministro das Minas e Energia. O assessor dele trouxe em um avião de carreira e ficou na alfândega, eu não fiquei sabendo”, disse Bolsonaro.

“Dois, três dias depois a Presidência notificou a Alfândega que era para ir para um acervo. Até aí tudo bem, nada demais, poderia, no meu entender, a alfândega ter entregue. Iria para o acervo, seria entregue à primeira-dama”, afirmou o ex-presidente.

Segundo Bolsonaro, ele desconhecia o valor das joias e ficou surpreso ao saber das estimativas.

“A imprensa fala uma coisa absurda. Eu teria que pagar 50% ou teria que pagar 8 milhões. Da onde eu teria que arranjar R$ 8 milhões, meu Deus do céu? Eu sou uma pessoa que não tenho bens para bancar tudo isso aí. Ponto final”, afirmou, referindo-se ao valor que teria que pagar para liberar os itens retidos na alfândega caso fossem itens pessoais.

Segundo reportagem do G1, até o último dia do governo Bolsonaro houve empenho do gabinete pessoal do ex-presidente para que as joias fossem liberadas.

O então ajudante de ordens do ex-presidente, tenente-coronel Mauro Cid, teria enviado correspondência no dia 28 de dezembro de 2022 ao então chefe da Receita Federal, auditor Júlio Gomes, pedindo a liberação das joias.

Gomes, então, teria encaminhado um e-mail à Superintendência da Receita Federal em São Paulo determinando que o pedido fosse atendido.

Mas servidores da Receita Federal teriam resistido e insistido que procedimentos técnicos fossem seguidos para a liberação das joias, que permanecem nos cofres do órgão em Guarulhos.

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