- Author, Giulia Granchi
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
- Twitter, @GranchiGiulia
Assim como muitos protetores e amantes de bichos, o médico veterinário Rodrigo Mendes se envolveu com diferentes ONGs ao longo de seus 37 anos de idade. “É uma ocupação que sempre me deu muita satisfação e que comecei ainda criança, com 12 anos”, lembra.
Há sete anos, um telefonema que recebeu de Roswitha, uma protetora com quem havia trabalhado, foi o que bastou para o início de um projeto que moldaria sua vida nos anos seguintes.
“Ela se mudou de São Paulo para Belmonte, um município muito pequeno na Bahia, e adotou duas gatas no caminho. Como a cidade não tinha estrutura para a castração, as gatas foram fecundadas por outros animais da cidade, e com o passar do tempo, entre eles, já eram 80 crias.”
O fenômeno observado por Roswitha é bastante comum. As fêmeas de gatos podem ter o primeiro cio a partir dos seis meses de idade, e a partir daí, uma única gata têm a possibilidade de gestar 36 filhotes no período de um ano. Se estes não forem castrados, a reprodução desenfreada é um destino certo.
Para cães, o contingente é menor, mas ainda preocupante. Levando em conta a possibilidade das fêmeas engravidarem duas vezes por ano e a mesma média de quatro filhotes por gestação, oito novos cães podem surgir por ano a partir de uma cadela.
“Essa amiga já tinha 70 anos e não tinha condição de levar todos os bichos à cidade de Porto Seguro, que fica a duas horas de distância. Ela sugeriu que eu fosse à Belmonte fazer um mutirão de castração e eu achei uma boa ideia. Pedi que comentasse com os vizinhos para saber se mais gente precisava do serviço”, lembra Rodrigo.
A expedição foi a primeira versão do castramóvel, um ônibus adaptado e equipado com materiais e aparelhos cirúrgicos que tem como objetivo visitar áreas remotas onde não há clínicas veterinárias ou onde a população não pode arcar com a média de preço cobrada nas clínicas.
“O projeto surge da necessidade de comunidades lotadas de animais e sem serviços especializados. Eu não tinha contato com essa realidade ainda, porque em São Paulo nós temos, às vezes, duas clínicas em uma mesma rua, prefeituras fazendo atendimentos, ONGs de diferentes tamanhos. Então, para mim, uma cidade que não tem veterinário ainda era uma coisa que eu nunca havia tido contato. A princípio, peguei para mim a missão de fazer esse trabalho social uma ou duas vezes por ano, mas acabou que nunca consegui parar.”
O ‘Castramóvel’ visita principalmente cidades no interior da Bahia, mas já passou por municípios em outros estados, como Pernambuco, Distrito Federal e Espírito Santo.
Como o projeto funciona
O Vet Nômade, como Rodrigo é conhecido, faz parcerias prévias com ONGs ou protetores independentes nas cidades onde vai visitar. O veterinário então realiza um cálculo de quantos animais em média serão atendidos, os custos de materiais e do serviço da sua equipe de oito pessoas e os gastos com o ônibus – tanto para possíveis manutenções quanto o combustível necessário para chegar até o local.
“Tentamos sempre diluir esses custos atendendo várias cidades próximas umas das outras. Passamos dias na estrada. Às vezes o trajeto demora até mais tempo do que o período que passamos na cidade. O apoio que eu e meus companheiros de trabalho recebemos das nossas famílias é essencial para que consigamos continuar fazendo esse trabalho.”
Rodrigo explica que a margem de lucro costuma ser pequena e que, quando possível, a equipe também realiza outros procedimentos de urgência. “Parece que tudo acontece quando nós chegamos: um animal precisando da retirada de um tumor com urgência, outro que foi atropelado… Nem sempre é possível fazer todos os procedimentos, mas ajudamos como podemos.”
A protetora Thais Peral, hoje residente de Corumbau, na Bahia, conheceu Rodrigo quando organizou, junto com ele, um mutirão na cidade de Caraíva, onde morava na época.
“Ali tem uma população nativa indígena que não tem condição de pagar um preço alto ou de viajar para levar animais em clínicas. Esses vilarejos acabam ficando cheios de animais, o que aumenta riscos de zoonose e proliferação de vermes, por exemplo.”
Hoje, Thais já realizou três mutirões em diferentes cidades com o Vet Nômade. “Eu acompanhei de perto e vi a seriedade do trabalho de toda a equipe, que é muito bem preparada para auxiliar animais e tutores no pré e pós-operatório. A unidade móvel é impecável, tem respiradores e todo tipo de material e medicações para caso o animal tenha alguma intercorrência.”
Por que a castração de animais domésticos é importante
A OMS (Organização Mundial da Saúde) estima que existam hoje no Brasil cerca de 20 milhões de cães e 10 milhões de gatos, equivalentes a mais da metade do total de animais de estimação. E esse número vem crescendo de forma acelerada, podendo chegar a 100 milhões (entre cães e gatos) em 2030.
Em machos, a castração consiste na retirada cirúrgica dos testículos e em fêmeas, a retirada do útero e dos ovários.
A medida é importante para controlar a população de animais de estimação, especialmente em regiões onde há superpopulação de animais abandonados – tanto para o bem estar dos bichos quanto para a saúde do meio ambiente.
A castração pode ajudar a prevenir certas condições médicas em cães e gatos, incluindo câncer de mama, câncer de próstata, hiperplasia prostática e tumores perianais.
A castração também previne a piometra, que é uma infecção bacteriana que ocorre no útero. Quando a cadela ou gata entra no cio, ocorre a descamação do útero e a cérvix se abre para que o útero possa receber os espermatozóides – e bactérias podem se aproveitar da abertura, se alojando no útero e causando a infecção.
Há também um fator comportamental: cães e gatos machos que não são castrados podem ser mais agressivos e territorialistas do que animais castrados.
“No caso dos felinos, como a gata tem seu cio induzido, para tentar acelerar o processo, o macho vai ficar em cima do telhado, miando alto, urinando na casa inteira e até batendo na gata para aumentar os estímulos.”
Rodrigo explica que o equilíbrio ambiental também se beneficia do controle populacional.
“Eu fiz parte de um grupo de conscientização e planejamento no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros (GO), por exemplo, no qual mostramos que a reprodução desenfreada de cães e gatos estavam levando doenças como cinomose e sarnas para espécies nativas, como lobo guará. Além disso, os bichos passam a disputar as caças. Felinos, por exemplo, caçam aves por instinto, não é nem para comer.”
Dificuldades burocráticas e críticas ao projeto
A lei federal 13.426/2017, sancionada pelo então presidente Michel Temer, tornou o controle de natalidade de cães e gatos de rua uma responsabilidade também do poder público.
Pela descrição da lei, o tratamento prioritário deveria ser dado aos animais pertencentes ou localizados nas comunidades de baixa renda.
Mas, na prática, não são todos os municípios que contam com atendimento público para os animais e não há fiscalização federal do cumprimento da lei.
“É justamente nos locais onde o poder público não chega que o projeto é mais importante”, diz o criador.
Rodrigo já recebeu críticas e inclusive notificação por parte de alguns Conselhos Estaduais de Veterinária, que alegam, de acordo com ele, a ilegalidade da castração itinerante. Os números do castramóvel também parecem chamar atenção – às vezes, a equipe castra mais de 50 animais em um único dia e em sete anos, mais de 80 mil gatos e cachorros já passaram pela cirurgia.
O veterinário rebate as críticas. “Há, sim, leis estaduais e municipais que permitem programas itinerantes como o nosso. Além disso, os Conselhos servem para fiscalizar a profissão, e não para criar leis. Da parte da fiscalização, já recebi visitas de representantes no castramóvel que constatam que tudo está 100%. Nós garantimos que temos todos os materiais e equipamentos necessários para para cirurgias seguras e óbitos não são nada comuns entre os animais que atendemos.”
A protetora Thais, que já acompanhou alguns mutirões com o grupo, também defende a possibilidade de atender grandes grupos. “Em Itaúnas foram 95 animais em três dias, e todos os procedimentos foram muito bem feitos. Vale lembrar que para os machos a cirurgia é muito simples. Para as fêmeas demora um pouco mais, mas a equipe tem muita experiência.”
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