- Author, Julia Braun
- Role, Da BBC Brasil em Londres
- Twitter, @juliatbraun
Israel registrou o oitavo final de semana seguido de protestos populares no último sábado (25/2) e novas manifestações estão previstas para os próximos dias.
Com uma multidão de cerca de 160 mil pessoas, o ato do último domingo foi considerado um dos maiores da história do país. Os manifestantes reivindicam o abandono de uma reforma judicial proposta pelo governo do primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, que teve uma parte aprovada em uma primeira fase pelo Parlamento (Knesset) na última terça-feira (21/2).
Para entrar em vigor, cada uma das leis propostas no pacote precisa passar por três votações. Mas apenas a possibilidade das mudanças se concretizarem tem causado grande impacto na sociedade israelense e entre a comunidade internacional.
Analistas apontam que a reforma pode comprometer seriamente a separação entre os poderes e, em última análise, enterrar a democracia de Israel.
“A aprovação das mudanças significaria o fim da democracia de Israel. E a razão para isso é porque uma democracia depende da separação de poderes, do Estado de direito e do respeito aos direitos humanos para existir”, diz Gila Stopler, diretora da Faculdade de Direito e Negócios de Israel e especialista em Direito Constitucional.
O advogado e pesquisador do Instituto para a Democracia de Israel, Amir Fuchs, também vê grandes riscos.
“Essas mudanças significariam poder absoluto para a maioria que controla o governo. Do meu ponto de vista, isso não é uma democracia completa, que segue o sistema de pesos e contrapesos”, afirma.
Para Gideon Rahat, cientista político e professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, a democracia do país pode ser prejudicada mesmo se apenas partes do pacote de reforma forem adotadas.
“Israel é uma democracia, ainda que tenha muitos problemas relacionados à associação entre religião e Estado e a contínua ocupação de territórios que não fazem parte do país”, diz.
No Índice Global de Democracia do ano de 2022, Israel ocupa o 29º lugar entre 165 países analisados. Antes mesmo do anúncio das reformas, a nação caiu seis posições de 2021 para cá.
Entenda a seguir o que são as mudanças propostas, como elas podem afetar a política e sociedade de Israel e quais são os interesses particulares por trás de sua aprovação.
O que propõe a reforma?
O pacote é extenso e envolve muitos projetos de lei que atuariam como uma espécie de emenda à Constituição. Israel não possui uma constituição federal formal, escrita, mas usa as chamadas leis básicas para definir o papel das principais instituições e as relações entre as autoridades do Estado. E as reformas foram apresentadas ao Legislativo como leis básicas.
Segundo Gila Stopler, é possível agrupar as propostas em quatro pontos principais. O primeiro deles diz respeito a um projeto que, de forma simplificada, propõe impedir que a Suprema Corte do país revise legislações aprovadas pelo Parlamento.
A medida é considerada controversa justamente porque não há uma distinção muito clara entre as leis básicas e as leis comuns, estabelecidas pelo Legislativo. Ou seja, o Knesset pode alterar as leis básicas com a mesma facilidade com que aprova novos projetos.
E se a reforma for aprovada, isso passaria a acontecer sem qualquer revisão judicial do Supremo.
“O governo poderia aprovar e blindar qualquer legislação de revisão judicial apenas classificando-a como lei básica”, diz Stopler.
A reforma também inclui uma proposta para permitir que o Parlamento rejeite decisões da Suprema Corte com maioria simples, ou seja, com 61 votos em um total de 120 deputados.
O professor Gideon Rahat, da Universidade Hebraica de Jerusalém, explica que, como a separação entre Legislativo e Executivo é fraca, a Suprema Corte se torna uma das únicas instituições com poder para revisar as ações do governo e as legislações aprovadas pelo Knesset.
“Não temos muitos pesos e contrapesos em Israel”, diz, em relação ao sistema segundo o qual os três poderes precisam se autorregular em prol de uma maior segurança dos cidadãos.
“Por exemplo, diferente do Brasil, que é um Estado Federal e tem Câmara e Senado, somos um Estado unitário e só temos uma casa legislativa. Também seguimos um sistema parlamentar e, portanto, o Parlamento e o Executivo são muito próximos”.
“Ou seja, o grande responsável pelos pesos e contrapesos é o sistema judiciário”, afirma Rahat.
O terceiro ponto prevê mudanças no comitê responsável pela nomeação de todos os juízes do país, inclusive os integrantes da Suprema Corte, chamado Comitê de Seleção Judicial (JSC).
Essa junta é formada por nove membros, dos quais quatro estão associados ao Executivo e Legislativo. A reforma pretende ampliar esse total para dar maioria permanente aos representantes do governo — que poderá, dessa forma, controlar as nomeações.
Além de tornar as indicações totalmente políticas e acabar com o balanço de poder no país, Amir Fuchs, afirma que, com a mudança, um único governo poderia se tornar responsável por nomear todos os juízes do Supremo, a depender de sua duração.
O país tem um histórico de primeiros-ministros que passam muitos anos no cargo. Benjamin Netanyahu, por exemplo, se tornou o chefe de governo mais longevo da história de Israel em 2019. Ele já dirigiu o país, somando todos os seus mandatos, por mais de 15 anos.
“Em Israel os juízes da Suprema Corte só ficam no cargo até os 70 anos e, por isso, temos mudanças constantes no tribunal. Se um governo permanecer no poder por oito anos, por exemplo, poderia garantir o apoio de toda a corte”, diz Fuchs.
Já o quarto ponto diz respeito à nomeação dos assessores jurídicos que integram os diferentes ministérios.
Essas posições foram criadas para assegurar o interesse público e os pareceres jurídicos emitidos por cada um deles são de cumprimento obrigatório para o governo.
A proposta atual quer transformar a função de assessor em cargos de confiança escolhidos pelos próprios ministros, acabar com a obrigatoriedade do cumprimento dos pareceres e permitir que o Estado tenha acesso à assessoria e representação jurídica privada perante os tribunais.
Quais seriam os impactos?
O principal impacto, segundo os especialistas consultados pela BBC News Brasil, é o fim do equilíbrio entre os Poderes.
“O único poder verdadeiramente independente em Israel no momento é o Judiciário e, se esse plano for para frente, essa independência acabaria e Israel basicamente se tornaria uma autocracia, no qual o governo controla o Supremo sem supervisão”, diz Gila Stopler.
Os defensores da reforma argumentam que, como o bloco de partidos religiosos e de extrema direita conquistou a maioria das cadeiras do Knesset nas eleições de novembro de 2022, as mudanças no sistema judicial refletem o que a maioria dos israelenses quer e deveriam ser respeitadas.
No entanto, os detalhes do plano não foram apresentados por Netanyahu ou seu partido antes da eleição.
Além disso, pesquisas de opinião mostram que 60% dos israelenses querem que o governo abandone a ideia ou interrompa o andamento dos projetos legislativos até negociar com a oposição. E os próprios protestos mostram que muitos estão insatisfeitos.
Amir Fuchs afirma ainda que esse discurso que prega as vontades da maioria acima das minorias é próprio de líderes populistas e, em muitos casos, leva ao autoritarismo.
“Eles afirmam ser a maioria e buscar fazer o que o povo quer — isso é populismo e não acontece só em Israel”, diz.
“Mas assim que as mudanças no sistema entram em vigor, eles usam esse poder total não apenas para implementar políticas que infringem os direitos humanos e LGBT, mas também para alterar as leis eleitorais e controlar os tribunais — assim como aconteceu na Hungria e na Polônia.”
Além disso, há consequências econômicas. O professor Gideon Rahat explica que a força da economia israelense está muito ligada à sua estabilidade política — e as reformas têm provocado reações negativas do mercado.
Prova disso é que o shekel israelense atingiu seu valor mais baixo em três anos um dia depois que as primeiras medidas foram aprovadas de forma inicial pelo Parlamento.
“A economia israelense é forte graças à Suprema Corte e à confiança da população em sua capacidade de zelar pela justiça e pelo direito à propriedade”, diz o professor da Universidade Hebraica de Jerusalém.
Essas mesmas preocupações também foram levantadas por centenas de economistas e pelo próprio chefe do Banco de Israel.
Pode haver ainda consequências práticas das mudanças na forma como o Knesset e a justiça lidarão com novas legislações e projetos.
Os partidos de extrema direita foram por diversas vezes bloqueados em seus esforços para expandir os assentamentos em territórios palestinos — e com a reforma, poderiam ter mais liberdade para perseguir seus objetivos.
Da mesma forma, as legendas ultra religiosas travam há anos um duelo com a justiça para isentar os judeus ultraortodoxos da obrigatoriedade do alistamento no Exército. Esses partidos fazem parte atualmente da coalizão que sustenta o governo de Netanyahu — e podem se beneficiar do maior controle sobre o Judiciário.
O que Benjamin Netanyahu tem a ganhar?
Bibi, como o premiê é conhecido, está sendo julgado por acusações de suborno, fraude e quebra de confiança em Jerusalém. E, segundo os especialistas ouvidos, as reformas poderiam beneficiá-lo de diferentes formas.
Primeiro, porque seu governo poderia eventualmente substituir os três juízes que atualmente presidem seu caso, promovendo-os para outros cargos, e nomear aliados.
Segundo, porque é muito provável que o caso de Netanyahu chegue ao Supremo por meio de recursos — e com as mudanças propostas, o governo do premiê teria poder para nomear os próximos integrantes da corte.
Por fim, os especialistas também afirmam que Bibi pode eventualmente usar a ameaça da reforma como moeda de barganha para negociar um acordo e encerrar os processos contra ele.
“Há cerca de 12 anos, reformas semelhantes a essa foram propostas por algumas das pessoas que estão promovendo elas atualmente. Mas na época elas não ganharam força e o maior opositor foi justamente Benjamin Netanyahu, que falava sobre a importância da independência da Suprema Corte e que nunca permitiria que algo assim acontecesse”, diz Amir Fuchs, do Instituto para a Democracia de Israel.
“Agora ele mudou de ideia, justamente quando se tornou réu.”
Quais as chances da reforma passar?
Segundo Fuchs, os partidos da coalizão do governo estão empenhados e unidas em torno da tarefa de aprovar a reforma. E como eles detêm uma maioria confortável de assentos no Parlamento, possuem votos suficientes para aprovar as leis.
Por outro lado, a resistência popular e a repercussão econômica podem pesar no futuro, segundo o especialista.
“As centenas de milhares de pessoas nas ruas estão mudando o cenário. O governo também vê que suas ações podem ter consequências financeiras”, diz.
Para o especialista, há ainda a possibilidade de que a Suprema Corte interfira em caso de uma aprovação, declarando as legislações inconstitucionais. “Isso nunca aconteceu em Israel, mas poderia gerar uma crise constitucional”, avalia.
Mas a verdade é que, assim como tudo que envolve a política israelense, é difícil prever.
Ainda não há uma data oficial para as próximas votações no plenário do Parlamento, mas a expectativa do governo é que pelo menos parte do pacote passe por todas as votações até o fim de março, antes que o Knesset entre em recesso para a Páscoa judaica.
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