- Por Jane Draycott
- Da BBC HistoryExtra
Cleópatra, a lendária rainha egípcia, era odiada pelos romanos.
Ela era, afinal, tida como o “monstro fatal” que seduziu Marco Antônio e o atraiu para uma aliança malfadada.
Todo o sórdido episódio atingiu seu clímax no início de 30 a.C, quando, com as forças de Otaviano, futuro imperador de Roma, aproximando-se da capital egípcia de Alexandria, o casal tirou a própria vida.
Apesar de sua morte trágica, Roma continuou a nutrir um ódio ardente por Cleópatra. No entanto, a admiração pelo Egito era imensa
Era possível perceber isto nos afrescos ornamentados das muralhas da cidade e até mesmo em enormes pirâmides, como a imponente tumba de Gaius Cestius Epulo, no sul da cidade.
Única filha de Cleópatra e Marco Antônio, Cleópatra Selene 2ª deve ter ficado intrigada com essa contradição: o ódio por sua mãe e a grande admiração pelo Egito que ela governou.
Cleópatra Selene nasceu em 40 a.C. e foi criada no Palácio Real de Alexandria. Tnha cerca de 10 anos quando seus pais morreram. Ela, seu irmão gêmeo, Alexander Helios, e seu irmão mais novo, Ptolomeu Philadelphus, foram levados para Roma e depositados na casa de Otávia, irmã de Otaviano e ex-esposa de seu pai, Marco Antônio.
Embora o biógrafo de Otaviano, Suetônio, afirmasse que o (futuro) imperador era uma figura paterna gentil, insistindo que os menores fossem cuidados como se fossem seus próprios filhos, havia sem dúvida uma dimensão política nessa decisão.
Manter o controle das crianças significava neutralizar qualquer ameaça potencial ao poder de Roma sobre o Egito.
O Sol e a Lua
Esse controle se expressou pela primeira vez no Triplo Triunfo de Otávio, um evento organizado para celebrar os êxitos militares de Otaviano, no verão do ano 29 a.C.
O terceiro e último dia do triunfo comemorou a conquista do Egito e, na ausência da mãe, as crianças passaram por uma efígie dela entrelaçada com as cobras que supostamente a mataram.
Cleópatra Selene vestiu-se de Lua e Alexandre Helios de Sol, em referência aos nomes celestiais dados a eles por Marco Antônio, para garantir que as multidões ao longo da rota processional os reconhecessem.
Felizmente para eles, ao contrário de outros inimigos de Roma, como Vercingetorix da Gália, a participação na celebração não culminou em sua execução ritual.
Mas o que fazer com uma princesa que não possuía mais um reino?
Otaviano garantiu que os outros filhos sobreviventes de Marco Antônio fossem criados como romanos tradicionais: Iullus Antonius, filho de Marco Antônio com sua terceira esposa, Fúlvia, ascendeu ao cursus honorum (carreira política) e foi eleito cônsul.
Antônia, a Maior, e Antônia, a Menor, as duas filhas de Marco Antônio com Otávia (sua quarta esposa), casaram-se com romanos respeitados. Os imperadores Calígula, Cláudio e Nero estão entre seus descendentes.
Mas a situação de Cleópatra Selene era mais delicada. Afinal, Marco Antônio a havia declarado rainha de Creta e Cirenaica (parte da atual Líbia) em 34 a.C. E técnicamente ela poderia ser considerada a rainha legítima do Egito após a morte de sua mãe.
Otaviano acabou encontrando uma solução por meio de um de seus pupilos, Gaius Julius Juba.
Assim como Cleópatra Selene, Juba 2° foi o último descendente de uma família real deposta.
Seu pai, Juba 1°, tinha sido rei da Numídia (uma região ao norte do Saara), mas havia apoiado o perdedor na guerra civil entre Júlio César e Pompeu, o Grande. Após a derrota de Pompeu, Juba 1° fez o mesmo que Cleópatra- cometeu suicídio e Roma confiscou seu reino, seu tesouro e sua descendência.
Como Cleópatra Selene, Juba 2° havia sido exibido em uma procissão militar: o Quádruplo Triunfo de Júlio César em 46 a.C. Ele era um menino na época, e o biógrafo de César, Plutarco, o descreveu como “o cativo mais feliz já capturado”.
Cleópatra Selene e Juba se casaram por volta de 25 a.C. antes de serem enviados para a Mauritânia (atual Marrocos e Argélia), que era um “reino cliente” de Roma- como eram chamadas as regiões que decidiram se aliar aos romanos.
Uma rainha atuante
A Mauritânia era o único reino cliente de Roma no oeste do império.
Era um vasto território, abençoado com consideráveis recursos naturais que incluíam muitos dos luxos pelos quais os romanos ansiavam, como tinta púrpura, cidra e animais exóticos, bem como alimentos básicos como grãos e peixes.
Foi povoado por muitos grupos tribais diferentes, que hoje são conhecidos coletivamente como “berberes”. Havia também colônias gregas e romanas localizadas ao longo da costa mediterrânea da região.
Enquanto no coração do império romano se esperava que as mulheres exercessem apenas um poder discreto, as rainhas nas regiões periféricas, como a Mauritânia, eram muito mais atuantes.
Era tão natural para elas se envolverem em todos os aspectos da administração diária de seus reinos que seus súditos teriam se sentido ofendidos se não participassem plenamente.
E Cleópatra Selene cresceu vendo sua mãe fazer exatamente isso: não apenas governando seu reino e recebendo embaixadores de todo o antigo Mediterrâneo, mas também visitando e se correspondendo com outras mulheres poderosas, como a rainha Amanirenas, que presidia a vizinha Kush.
Portanto, não é surpreendente que ela não tenha mostrado nenhuma inclinação para se afastar e permitir que Juba assumisse a liderança.
Afinal, Cleópatra Selene tinha a linhagem de maior prestígio que remontava a Ptolomeu, general de Alexandre, o Grande, e também podia se orgulhar de uma conexão direta com a família imperial por meio de suas meias-irmãs e avó paterna, Julia.
Assim, o casal governou junto, fato que as moedas cunhadas deixam claro: Juba e o escrito latino Rex Iuba (Rei Juba) apareciam de um lado, e Cleópatra Selene e o escrito grego Kleopatra Basilissa (Rainha Cleópatra) do outro.
Cleópatra Selene também emitiu suas próprias moedas, repletas não apenas de referências a si mesma por meio de luas crescentes, mas também de motivos egípcios, como crocodilos, íbis e a coroa e o sistro da deusa Ísis.
Em uma emissão de moeda, ela se apresentou como “Rainha Cleópatra, filha da Rainha Cleópatra”, evidenciando o orgulho que tinha por sua mãe.
Sempre cautelosos e discretos, o casal deu à capital da Mauritânia, Lol, um novo nome: Cesareia, em homenagem a Otaviano.
Mas eles encontraram uma maneira de homenagear Cleópatra e a cultura egípcia dentro dos muros da cidade. Embarcaram, por exemplo, em um pródigo programa de construção para tornar a capital uma sede adequado à sua dinastia incipiente. Nesse processo, claramente se inspiraram na antiga casa de Cleópatra Selene.
Construíram um farol semelhante ao famoso farol de Alexandria, além de um grande palácio, um fórum, um teatro e um anfiteatro. Eles também plantaram um bosque sagrado, importaram obras de arte egípcias, reformaram antigos templos e ergueram novos.
Deuses e deusas egípcios logo se tornaram populares na Mauritânia, e havia um templo de Ísis ao qual Juba dedicou crocodilos.
Com o tempo, Cesareia se transformou em uma corte altamente sofisticada e multicultural, habitada por prolíficos estudiosos gregos, romanos, egípcios e africanos, além de artesãos talentosos e criativos.
Em seus próprios escritos, Juba incluiu anedotas sobre o Egito, Alexandria e o Nilo que provavelmente vieram de Cleópatra Selene. Era uma forma de a rainha aproveitar as memórias de sua mãe e de sua vida anterior, de uma forma aceitável para os leitores romanos.
Brilho que perdurou
Cleópatra Selene e Juba transformaram, por todos os meios, suas infâncias turbulentas (derrota, cativeiro, suicídios de seus pais) em um triunfo.
Mas, por volta da virada do primeiro milênio, essa história de sucesso chegou a um fim repentino com a morte prematura da rainha.
Embora não saibamos a data precisa de sua morte, um poema composto pelo poeta da corte Crinagoras de Mitilene pode fornecer uma pista:
“A própria Lua, que surgiu no início da tarde, extinguiu sua luz, velando seu luto com a noite, pois ela viu sua homônima, a bela Selene, descer morta ao sombrio Hades”.
Em seu poema, Crinagoras parece indicar que a morte de Cleópatra Selene coincidiu com um eclipse lunar.
Isso levou os historiadores a propor duas datas possíveis para a morte da rainha da Mauritânia, com base em eclipses lunares visíveis em Cesareia e Roma: 23 de março de 5 a.C. e em 4 de maio de 3 d.C.
A rainha foi enterrada em um magnífico mausoléu, cujos restos ainda podem ser vistos na Argélia hoje.
Juba continuou a governar a Mauritânia por duas décadas após a morte de sua esposa. Ptolomeu, filho do casal, foi nomeado co-governante em 21 d.C.
Mesmo após sua morte, Cleópatra Selene permaneceu uma figura importante no reino.
Um tesouro depositado perto de Tânger contém moedas que podem ser datadas do período 11-17 d.C. e inclui não apenas aquelas emitidas por Cleópatra Selene e Juba juntos, mas também aquelas emitidas apenas pela rainha.
Isso indica que seus antigos súditos ainda os usavam décadas após sua morte, e que Juba e Ptolomeu conseguiram estabilizar seu reinado conjunto graças em parte ao brilho duradouro de sua esposa e mãe.
Cleópatra Selene teve um imenso impacto em seu reino e no resto do mundo romano durante sua vida, mesmo além. Então, por que ela é tão pouco conhecida hoje?
Paradoxalmente, a resposta pode estar no seu sucesso.
Os historiadores romanos estavam obcecados com o que estava acontecendo no centro do império. Eles só mencionavam reinos clientes quando havia problemas.
O fato de não terem escrito muito sobre a Mauritânia indica que as coisas estavam indo bem por lá.
Ao contrário de sua mãe e de outras rainhas-clientes romanas como Boudica, Cleópatra Selene parece ter tido um sucesso discreto, em vez de um fracasso ruidoso.
* Jane Draycott é professora de história antiga da Universidade de Glasgow. Seu último livro, “A filha de Cleópatra”, foi publicado em 2022. A reportagem original em ingês da BBC HistoryExtra pode ser acessada aqui.
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