• Alejandra Martins
  • BBC News Mundo

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Virginia Norwood em um dos seus primeiros trabalhos, no laboratório do Corpo de Comunicações do Exército americano

Quando Virginia T. Norwood cursava o Ensino Médio, uma conselheira vocacional recomendou que ela seguisse a carreira de bibliotecária.

Mas a adolescente tinha outras ideias e candidatou-se a uma vaga em uma das universidades de maior prestígio dos Estados Unidos para estudar física e matemática. Hoje com 95 anos, Norwood desafiou barreiras e preconceitos para tornar-se uma engenheira visionária, respeitada pelos seus projetos inovadores e sua capacidade de resolver problemas.

Uma de suas criações mais famosas é o instrumento que possibilitou, em 1972, o lançamento do primeiro satélite do programa Landsat, que observa a Terra de forma contínua.

Meio século depois, os satélites Landsat continuam fornecendo dados valiosos sobre o desmatamento, expansão de cidades e retrocesso de glaciares, entre muitos outros.

O que pensa hoje sobre essas conquistas a mulher conhecida na Nasa como a “mãe do Landsat”? Da sua casa na Califórnia, nos Estados Unidos, Virginia Norwood compartilhou reflexões e recordações sobre sua carreira e sua vida com a BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC.

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Em foto recente, Virginia Norwood exibe o prêmio concedido a ela pela Sociedade Norte-Americana de Fotogrametria e Teledetecção (ASPRS, na sigla em inglês) em 2021

Fascinação pelos números

Virginia Tower Norwood nasceu em 8 de janeiro de 1927, no Estado americano de Nova York.

Desde pequena, ela gostava de jogos de lógica – um interesse que ela compartilhava com seu pai, que era oficial do exército. Foi do pai que ela ganhou, com nove anos de idade, sua primeira régua de cálculo.

“Não consigo recordar nenhum momento em que os números não me fascinaram”, afirma Norwood. “No primeiro ou segundo ano, quando aprendi a subtrair, vi que meu pai subtraía de forma diferente e o fato de que havia diferentes formas de pensar sobre a subtração me chamou muito a atenção.”

Logo depois do ensino médio, em 1944, Norwood entrou no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês).

Naquela época, não havia dormitórios femininos no campus universitário. É as mulheres só podiam almoçar nas residências estudantis se fossem convidadas por alunos masculinos.

Mas essas limitações não reduziram o entusiasmo de Norwood pelo aprendizado. Ela se formou no MIT com 20 anos de idade.

No dia seguinte à sua graduação, a jovem casou-se com Larry Norwood, presidente do clube de matemática do MIT e estudante de pós-graduação da Universidade Yale, nos Estados Unidos.

O desafio seguinte para a jovem seria encontrar trabalho. E ela logo se deparou com os obstáculos enfrentados por muitas outras mulheres.

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Ilustração do satélite Landsat 9 foi lançado em setembro de 2021

A busca ‘desalentadora’ do primeiro emprego

“Demorei muito tempo para conseguir meu primeiro trabalho”, relembra Norwood. “Como meu marido estava na Universidade Yale, eu procurei emprego perto de New Haven” – cidade no Estado de Connecticut, onde fica a universidade.

Em uma ocasião, a jovem entrou em contato com uma empresa fabricante de armas.

“Expliquei como seria útil que eles tivessem uma matemática que soubesse usar estatísticas”, ela conta. “Basicamente, criei um cargo de controle de qualidade que não existia. Eles me entrevistaram pelo menos duas vezes, falei com diversas pessoas e expus minhas ideias.”

“Um dia, entrei em casa e fiquei sabendo pelo meu esposo que haviam telefonado para ele para dizer que gostavam das minhas ideias e iriam criar o cargo que eu havia proposto – mas que haviam ‘decidido contratar um homem'”, relembra Norwood.

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Em outra entrevista de emprego, Norwood pediu o salário correspondente ao cargo, mas disseram a ela que “nunca haviam pagado tanto para uma mulher”.

Para obter alguma renda, a jovem trabalhou em uma loja de venda de roupas e depois como professora de matemática em uma escola comercial, enquanto assistia às aulas de matemática avançada em Yale.

Sua situação trabalhista só mudou quando um amigo a convidou a visitar a Signal Corps Labs, o laboratório do Corpo de Comunicações do Exército americano em Nova Jersey, que ofereceu emprego para ela e para o seu marido.

“Recordo que minha busca de emprego inicial foi muito desalentadora”, afirma ela. “Felizmente, ela durou meses, não anos, e acabou por nos levar a aceitar o trabalho no Signal Corps Labs.”

Foi ali que Norwood conseguiu sua primeira patente, com 22 anos de idade. Ela projetou um refletor de radar para balões meteorológicos que registrava a velocidade do vento em grande altitude.

Em 1953, Norwood e seu esposo, já com o primeiro dos seus três filhos, mudaram-se para a Califórnia, onde ela passou a trabalhar para a empresa Hughes Aircraft Company. Lá ela trabalhou por mais de 30 anos e criou alguns dos seus projetos mais famosos, mas ainda precisava lidar com o preconceito de alguns colegas.

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Norwood enfrentou muitos preconceitos enquanto procurava seu primeiro emprego, mesmo tendo se formado em uma das universidades de maior prestígio dos Estados Unidos

‘Eles me deixavam pensar’

Na Hughes Aircraft, Norwood era a primeira e única mulher entre os mais de 2 mil funcionários do departamento técnico.

“Quando um membro do grupo de projeto de antenas da Hughes Aircraft Company preferiu sair da empresa a “reportar-se a uma mulher”, lembro que isso me deixou surpresa, mas não ofendida”, ela conta. “O que mais me surpreendeu foi que ele logo pediu para voltar.”

“Depois disso, um supervisor da Hughes me contou sobre a formação de um novo departamento e reconheceu que eu era a opção óbvia para dirigi-lo”, ela conta, “mas me disse que ‘não estava disposto a nomear uma mulher chefe de departamento’.”

“Isso me afetou tanto que procurei outra função dentro da Hughes. Deixei completamente a seção de mísseis e radar e entrei no novo grupo de espaço e comunicações, o que acabou sendo excelente para mim”, prossegue Norwood.

“Por isso, em algumas vezes, essas dificuldades acabaram sendo oportunidades.”

Apesar das dificuldades, Norwood encontrou um ambiente propício para inovar na Hughes Aircraft. Mas como ela encontrava inspiração para seus projetos?

“Realmente não consigo explicar o processo criativo. As pessoas vêm tentando explicar este processo há muito tempo”, afirma ela.

“Posso dizer que a Hughes Aircraft Company criou as condições para esse processo criativo. Eles me deixavam sozinha para pensar. Eu tinha colegas que podia consultar se precisasse, mas ninguém me perturbava e meus chefes não me controlavam demais”, segundo Norwood.

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Virginia Norwood (dir.) com a esposa do cientista William Pecora, Ethelwyn, em 1979, quando recebeu o prêmio Pecora pela sua notável contribuição para a compreensão da Terra por teledetecção

MSS, a invenção que possibilitou o Landsat

A Hughes Aircraft tinha inúmeros contatos com a Nasa e Norwood projetou o transmissor da sonda Surveyor, que enviou imagens da superfície da Lua como preparação para as futuras missões Apolo.

Mas um dos seus maiores desafios chegou quando a Nasa e o Serviço Geológico dos Estados Unidos (USGS, na sigla em inglês) propuseram-se a lançar um satélite para monitorar continuamente a Terra.

Para captar e transmitir imagens do nosso planeta a partir do espaço, a Nasa preferia o uso de um sistema chamado RBV, que já havia sido comprovado em satélites climáticos. Mas Norwood propôs outra solução: um sistema de scanner multiespectral (MSS, na sigla em inglês), que transmitiria as informações para a Terra de forma digital.

Depois de um ano de discussões, a Nasa decidiu levar os dois sistemas a bordo do satélite Landsat 1 e forneceu a Norwood um orçamento de US$ 100 mil (R$ 530 mil, em valores atuais) para desenvolver um protótipo. O scanner também ocuparia um espaço reduzido no satélite.

“O RBV foi o instrumento principal do Landsat 1 e, por isso, Virginia Norwood recebeu apenas 48 kg e 0,21 m3 de volume para projetar seu instrumento”, destacou à BBC News Mundo o cientista argentino Roberto Alemán, do Centro Goddard de Voos Espaciais da Nasa. Alemán trabalhou como gerente de observações do satélite Landsat 9 até abril de 2022.

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Norwood recorda que muitas pessoas da Nasa e do USGS “eram muito céticos, especialmente no início do processo, quando eu precisava garantir constantemente às pessoas que o MSS funcionaria e que os dados seriam valiosos”.

O ceticismo era tão grande que, para convencer os críticos, Norwood decidiu que sua equipe faria um experimento em terra. Eles carregaram um protótipo do MSS na parte traseira de um caminhão e fizeram imagens de locais simbólicos da Califórnia.

Uma dessas imagens – o Meio Domo, uma famosa cúpula de granito no Parque Nacional de Yosemite – hoje é para Norwood “uma recordação de como fiquei encantada e feliz quando o protótipo enviou esses testes em terra com grande sucesso”.

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Norwood no seu tempo de estudante no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, nos Estados Unidos

Como funcionava o MSS

Para apreciar por que o scanner de Norwood e sua equipe era tão inovador, é preciso entender como ele funcionava e no que ele se diferenciava do sistema tradicional, RBV, preferido pela Nasa.

“O RBV era grande, pesado, tirava fotos com uma câmera de lentes tradicionais e usava tubos de raios catódicos para criar a imagem de uma cena”, explica Roberto Alemán.

“E o sistema era analógico, o que exigia grandes gravadores a bordo do satélite e muitos contatos com a Terra para transmitir esses dados”, prossegue ele.

Já o MSS de Norwood funcionava de forma diferente.

“O MSS era um instrumento capaz de medir a energia do espectro eletromagnético, incluindo a luz visível e infravermelha”, segundo Alemán. “Utilizando um espelho que se movia mecanicamente de um lado para outro, o MSS montava as imagens linha por linha, enquanto o satélite viajava para frente.”

“Varreduras sucessivas usando o espelho de lado a lado montam uma imagem bidimensional da superfície da Terra”, explica ele. “A radiação emitida ou refletida, recebida pelo MSS, passa por filtros de frequências diferentes, depositando-se em um banco de detectores, que produzem um fluxo de dados, criando uma imagem digital que depois é analisada por computadores.”

Esta capacidade de analisar dados espectrais possibilita identificar o material sendo “fotografado”, segundo o especialista da Nasa. “Campos de trigo e de milho, por exemplo, são observados do espaço como se fossem iguais, mas podem ser diferenciados pela sua assinatura espectral única.”

Para Alemán, o MSS “foi inovador por muitas razões, mas principalmente porque os instrumentos multiespectrais naquela época haviam comprovado o conceito de obtenção de imagens em transportes aéreos, mas conseguir isso funcionalmente no espaço era considerado uma tarefa monomental”.

“Nas palavras de Virginia Norwood, ‘este é o espaço – não há ar, não há gravidade e os dados precisam viajar por distâncias significativas – tudo isso é novo’.”

O primeiro satélite Landsat foi lançado com os dois instrumentos em julho de 1972. Mas, apenas duas semanas depois, uma sobrecarga de potência obrigou a Nasa a desligar o sistema RBV.

Alemán conta que “assim que chegaram as primeiras e espetaculares imagens do MSS, o RBV não voltou a ser usado”.

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O primeiro satélite Landsat foi lançado por um foguete Delta em 1972

O legado do Landsat

Atualmente, estão em órbita os satélites Landsat 8 e 9. E, apesar dos grandes avanços da tecnologia, “o conceito básico do MSS continua hoje em dia”, segundo Alemán.

Para ele, “a mais importante conquista do programa Landsat foi a continuidade dos dados”.

“Há 50 anos, pode-se observar como a Terra foi mudando e o efeito causado pelos seres humanos sobre suas riquezas”, afirma ele. “Cinquenta anos não são nada na história do planeta e me assusta pensar no que vou deixar aos meus filhos e netos se não usarmos essas informações oferecidas pelo Landsat para melhorar as condições.”

A cientista costarriquenha Sandra Cauffman é diretora adjunta da Divisão de Ciências Astrofísicas e foi diretora da Divisão de Ciências da Terra da Nasa, responsável pelo programa Landsat.

Os satélites Landsat permitiram observar “o impacto que causamos em lugares como a Amazônia, o desmatamento, as mudanças na agricultura, nos rios, nos oceanos, podemos ver essas mudanças graças a anos e anos de registros”, destacou Cauffman à BBC News Mundo.

“E, quando falamos em mudanças climáticas, combinando os dados do Landsat com os de outros satélites, podemos ver o impacto exponencial que nós, seres humanos, temos causado sobre a Terra”, afirma ela.

E o uso dos dados também está mudando, segundo Alemán. “Além dos dados serem gratuitos e acessíveis para todos, estão sendo iniciados programas de fornecimento de informações aos pequenos agricultores com poucos recursos – sobre água, por exemplo, informando se eles estão irrigando excessivamente para não desperdiçar água, ou irrigando pouco, para que eles possam irrigar mais e não arriscar a colheita.”

Enquanto projetava o MSS, será que Virginia Norwood imaginava o impacto que o Landsat teria meio século depois?

“Eu não estava pensando muito no futuro”, afirma ela.

“É claro que eu esperava que o programa fosse importante. Mas esse trabalho de projeto técnico estava necessariamente muito concentrado no momento presente”, prossegue Norwood. “Pensar no futuro poderia ter sido paralisante. Eu só precisava baixar a cabeça e seguir em frente.”

“Estou orgulhosa de que tantas pessoas tenham se beneficiado dos dados e que continuem surgindo novos usos para eles, que nunca sequer contemplamos”, afirma ela.

E sobre o apelido de “mãe do Landsat”? “Isso me agrada, destaca Norwood. “E também, como disse em outras ocasiões, é adequado.”

‘Norwood abriu o caminho para nós’

A figura de Virginia Norwood continua inspirando muitos cientistas.

Para Roberto Alemán, “desde jovem estudante, Virginia Norwood demonstrou que, quanto mais difícil o objetivo, maior era sua inquietação e dedicação”.

“Com apenas US$ 100 mil, pouco peso e volume, além da pouca confiança de que conseguiria por parte dos engenheiros da época, Virginia Norwood mudou o rumo da história das imagens da Terra vista do espaço”, destaca ele.

E a história de Norwood é especialmente animadora para outras mulheres.

Sandra Cauffman destaca que “depois de formada pelo MIT, uma das melhores universidades dos Estados Unidos, ela não conseguia trabalho por ser mulher. Mas ela era valente e não tinha medo. Virginia Norwood abriu o caminho para nós, para muitas mulheres, e foi um exemplo de perseverança.”

Já a cientista brasileira Flávia de Souza Mendes é especialista em teledetecção e integra o grupo “Damas do Landsat” – uma rede que promove cientistas subrepresentadas nas ciências de observação da Terra.

Ela declarou à BBC News Mundo que “o nosso campo é muito dominado pelos homens, especialmente na parte técnica. Virginia lutou por salários justos enquanto era a única mulher nas equipes técnicas. Isso inspirou muitas gerações no setor de observação da Terra.”

“Ter um modelo como ela é ainda mais importante para as novas gerações”, destaca a brasileira. “Ela representa a resistência e a força das mulheres!”

Para as estudantes de engenharia, a mensagem de Norwood é que elas “são felizardas. Elas enfrentarão sérios problemas, mas estes são os mais interessantes. E suas soluções são as mais importantes.”

Aos 95 anos de idade, uma das paixões de Norwood é a observação de aves. “Gosto de aprender, no meu próprio quintal de casa, coisas que a maioria das pessoas não sabe que estão ali.”

Fazer perguntas sobre o mundo que a rodeia é parte da essência de Virginia Norwood. Assim ela resumiu sua filosofia de vida:

“Mantenha a curiosidade e continue aprendendo coisas novas.”