- Marcia Carmo
- De Buenos Aires para a BBC News Brasil
Quando saíam do campo e se encontravam no vestiário, após um jogo do time do Santos, o então jogador argentino César Luis Menotti dizia ao amigo Pelé: “Você não é desse planeta. Você não é da Terra. Ninguém é igual. Pelé, você é tão bom, tão bom jogador que chega a ser sobrenatural”. O ex-jogador brasileiro sorria.
Na época, em 1968, Menotti era reserva do “rei do futebol”, morto na última quinta-feira (29), vítima de complicações resultantes de um câncer no colón.
Assim que atendeu à ligação da BBC News Brasil para esta reportagem, nesta sexta-feira, Menotti disse: “Estou triste, muito triste. Estou assistindo as reprises de Pelé em campo e penso como ele é mágico, único”.
Menotti jogou no Santos e no Juventus, de São Paulo, e foi técnico da seleção argentina campeã da Copa do Mundo de 1978.
“Por favor, escreva em letras bem grandes: ‘Não houve, não há e não haverá nenhum jogador igual a Pelé. Jamais'”.
A declaração remete a um tango do poeta e compositor argentino Homero Manzi (1907-1951) chamado Ninguna (Nenhuma) e ainda hoje referência no gênero musical. Para ele, Pelé é incomparável e por isso deve ser excluído das listas de comparações — mesmo quando se fala em Maradona, Neymar ou Messi.
“Todos são muito bons jogadores. Mas Pelé é superior a todos. É o melhor jogador da história do futebol. Desde que ele deixou os campos, ninguém chegou perto do que ele fez.”
Para Menotti, se Pelé estivesse jogando com as regras atuais do mundo do futebol teria feito “5.000” e “não mil gols”.
O argentino disse que sua admiração por Pelé é infinita e por isso chegou a duvidar quando alguém lhe disse que a doença do ex-atleta brasileiro seria incurável.
“Quando eu soube da doença dele, pensei que Pelé era imbatível e superaria qualquer problema de saúde. Ninguém tem o físico dele. Ele poderia ter sido campeão do mundo até de boxe, de atletismo. Tecnicamente ele é o melhor, é superdotado. Ele acrescenta às suas condições físicas a técnica futebolística. Ele tinha uma visão completa do jogo. Estava sempre à frente. Perfeito”, disse.
Para Menotti, os dribles, que podiam ser com o pé esquerdo ou pé direito, o jogo em equipe, a velocidade e os freios de Pelé justificam o adjetivo que usou várias vezes na entrevista: “único”.
O diferencial de Pelé incluía também o fato de o “rei” jogar cada partida como se fosse uma decisão, com toda a sua garra e talento.
Diretor geral das seleções nacionais na Associação de Futebol Argentino (AFA) e ex-comentarista esportivo, Menotti, de 83 anos, cresceu em um ambiente ligado à música e chegou a estudar piano durante dois anos na infância.
Talvez por isso suas afirmações entrelaçam o futebol e a cultura musical. Na entrevista, em uma das poucas frases em que se referiu a Pelé no passado, ele o comparou com “imortais” da música clássica.
“Pelé era como Bethoven ou Bach. Esses personagens grandiosos que marcam para sempre”, disse, em uma das poucas frases em que se referiu ao amigo com o verbo no passado.
Acima do piano que tem em sua casa em Buenos Aires, Menotti mantém há anos uma foto que tirou com Pelé, quando os dois já estavam longe dos campos e mantinham uma sólida amizade.
Uma vez, recordou Menotti, quando passavam férias juntos no balneário uruguaio de Punta del Este, o argentino comentou com Pelé que um amigo tinha uma quadra de padel.
Pelé ficou curioso pelo jogo e queria experimentá-lo. “Me disse: ‘Vamos lá, César. Quero ver como é esse jogo’. Resultado: ele não tinha pego jamais numa raquete de padel e foi o melhor de todos. Muito melhor. É como te digo, único”, afirmou Menotti.
Por terem representado uma mesma marca internacional de chuteiras, os dois ex-atletas realizaram várias viagens internacionais juntos para a Alemanha e para a Itália, entre outros países.
O tempo que compartilharam longe dos campos fortaleceu ainda mais a amizade, que deixava de lado as rixas costumeiras do futebol entre o Brasil e a Argentina.
“Com a gente isso não existia. E eu sempre fui admirador do futebol brasileiro”, disse Menotti.
Racismo
Quando Pelé jogava no New York Cosmos, nos Estados Unidos, nos anos 1970, foi barrado em uma discoteca badalada de Nova York por ser negro, contou Menotti.
“Éramos vários atletas do futebol. Entramos todos e, na hora de Pelé entrar, não deixaram. Porque era negro. E fizemos um escândalo. E [Ramón] Mifflin, jogador peruano que falava muito bem inglês, protestou, argumentou e Pelé entrou. E quando Pelé entrou, ele foi reconhecido e rodeado pelos fãs e pelas modelos e gente famosa. Ele era o mais famoso de todos que estavam lá dentro.”
Pelé era saudável e com uma energia e físico jovens. Fisicamente, ele era jovem. E eu não podia acreditar que ele faleceria”, disse o ex-jogador e ex-técnico argentino.
Na imprensa argentina, a morte do “rei do futebol” foi lamentada.
“Pelé, rei e lenda do futebol”, publicou o Clarín em sua manchete desta sexta-feira. Já o La Nación informou, também com amplo destaque na primeira página: “Pelé, o rei inesquecível”. Portais, rádios e emissoras de televisão informaram sobre a morte do “símbolo supremo” do futebol.
Menotti é reconhecido na Argentina por ter jogado nos clubes da sua terra natal, Rosario, na província de Santa Fé, que é a mesma de Messi.
E também por ter sido o técnico da seleção de 1978 e defendido o nome de Lionel Scaloni como técnico da seleção argentina que venceu a Copa do Mundo do Catar de 2022.
Ao ser perguntado sobre o fato de a seleção argentina ter sido campeã em 1978 durante a ditadura militar (1976-1985), ele respondeu que o futebol é “um fato cultural” que pertence ao povo e que a política não deve entrar nesse jogo.
E que é uma “estupidez” achar que os ditadores se envolveram na Copa. Ele lembrou que a seleção brasileira também ganhou a Copa do Mundo de 1970, em plena ditadura no Brasil.
“O que os jogadores têm a ver com isso? O que Pelé tem a ver com isso? Os jogadores jogam para seu público, para as pessoas”, disse. Menotti, que aborda o assunto no livro Fútbol sin trampa (“Futebol sem Armadilhas, em tradução livre).
“Uma bola pode fazer feliz a grandes grupos de crianças. E por isso os grandes ídolos do futebol devem ser respeitados. Quem, aos 15 anos de idade, não gostaria de ser Pelé?”, disse.
Ele afirma que não era uma tarefa fácil ser o rei do futebol como Pelé.
“Se Pelé tem uma namorada, diziam que ele tinha 15 [namoradas]. E muitas namoradas eram mentira. Uma vez eu disse a ele: se você quer ser feliz vai precisar deixar de ser Pelé. Falar de futebol e pronto, preservando sua vida pessoal”.
Para Menotti, aquele time formado por Gerson, Rivelino, Tostão, Jairzinho, Clodoaldo e Pelé, entre outros, que conquistou a Copa do Mundo de 1970, mostrou a grandeza do futebol brasileiro.
“Aquela seleção também foi única. E Pelé se destacava também entre eles, excelentes jogadores”, disse.
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