- Thais Carrança – @tcarran
- Da BBC News Brasil em São Paulo
“Responsável formalmente pela condução da política econômica e pela direção dos bancos estatais, o ministro da Fazenda exerce, na prática, a liderança de um primeiro-ministro. Com a peculiaridade de precisar de apenas um voto, o do presidente.”
“Nenhum presidente de empresa privada acumula tanto poder, controla tantos destinos, atrai tanta inveja. Nenhum outro posto da administração pública sofre tanta pressão, recebe tanto escrutínio, é alvo de tantos ataques. Nenhum emprego tem, simultaneamente, tamanha força e fragilidade. É o pior emprego do mundo.”
Assim o jornalista e analista político Thomas Traumann definiu, em seu livro O Pior Emprego do Mundo, o cargo que será ocupado a partir de janeiro por Fernando Haddad.
Formado em direito, mestre em economia e doutor em filosofia, Haddad foi ministro da Educação de 2005 a 2012 e prefeito de São Paulo entre 2013 e 2016. Concorreu à reeleição para prefeito em 2016, à presidência da República em 2018 e ao governo de São Paulo em 2022, sendo derrotado nas três tentativas.
Sua passagem pela prefeitura paulistana é igualmente marcada por altos e baixos: por um lado, renegociou a dívida do município, levando São Paulo a obter o chamado grau de investimento (um selo de bom pagador atribuído por agências de risco), e realizou investimentos recordes, graças ao saneamento das contas públicas.
Por outro, era o prefeito quando explodiram as manifestações de junho de 2013 contra o aumento das tarifas de ônibus, cujas repercussões derrubariam sua aprovação e de toda a classe política, e mudariam os rumos do país nos anos seguintes.
Entenda como a gestão Haddad na prefeitura de São Paulo dá pistas sobre o que pode vir pela frente em sua atuação no Ministério da Fazenda.
Renegociação da dívida do município e grau de investimento
Uma das tarefas mais espinhosas de Haddad na Fazenda será definir uma nova regra fiscal para substituir o teto de gastos — regra aprovada em 2016, durante o governo Michel Temer (MDB), que limita o crescimento da despesa federal à variação da inflação no ano anterior.
Segundo economistas, é preciso que a nova regra seja crível (isto é, que possa de fato ser cumprida, diferentemente do teto de gastos, que acabou sendo “furado” diversas vezes desde sua criação) e indique uma trajetória sustentável para a dívida pública.
Segundo a IFI (Instituição Fiscal Independente) do Senado Federal, a dívida bruta brasileira deve encerrar 2022 em 76,6% do PIB (Produto Interno Bruto), e pode superar 95% em 2031 sem uma limitação das despesas.
Quanto mais alta a dívida pública, maior o volume de juros da economia e mais difícil para o país crescer e gerar empregos.
Para tentar convencer o mercado financeiro de que está cacifado para essa tarefa e que tem um histórico de responsabilidade fiscal, Haddad tem citado sempre a renegociação de dívida que realizou em São Paulo e que levou o município a conquistar o grau de investimento pela agência de risco Fitch.
“O município [de São Paulo] tinha uma situação de endividamento muito complexa, fora dos limites definidos pelo Senado Federal”, lembra Rogério Ceron, ex-secretário de Finanças da gestão Haddad em São Paulo e futuro secretário do Tesouro Nacional no Ministério da Fazenda, conforme anunciado pelo petista pouco antes do Natal.
Segundo Ceron, a dívida à época era equivalente a mais de 2 vezes a receita do município, quando a Lei de Responsabilidade Fiscal estabelecia um limite de 1,2 vez.
“O principal problema desse endividamento era o contrato de renegociação de dívida com a União”, explica o gestor público. A dívida era então corrigida pelo IGP-DI, um índice de inflação que sofre muito efeito da variação de preços das commodities, mais juros de 9%. “Isso foi fazendo com que a dívida crescesse exponencialmente e era algo insolúvel”, diz Ceron.
Haddad negociou a mudança dessa regra, com a dívida de Estados e municípios passando a ser corrigida pelo IPCA (índice de inflação oficial do país) mais juros de 4% ou a Selic, o que fosse menor.
“Isso reduziu brutalmente o saldo devedor, que caiu de R$ 74 bilhões para menos de R$ 30 bilhões. Agora era possível ver o final dessa dívida e começou um processo de redução dos pagamentos, o que foi gerando um alívio fiscal crescente ao longo dos anos”, diz Ceron.
Como essa renegociação foi concluída ao fim de 2015, Haddad pouco se beneficiou da mudança em seu próprio governo. Mas a renegociação contribuiu para a atual situação confortável das contas públicas de São Paulo, reconhecida até mesmo por seus sucessores.
Como o mercado lê esse episódio
Para Benito Salomão, economista especialista em política fiscal, é fato que Haddad fez uma gestão fiscalmente responsável à frente da prefeitura de São Paulo.
“A preocupação não é com o Haddad, é que a memória dos governos Dilma ainda é muito recente na cabeça dos brasileiros, do setor produtivo e do setor financeiro. E a retórica que o presidente Lula adotou na transição não foi uma retórica ‘market friendly‘, amigável ao ambiente de negócios que o Brasil precisa construir”, diz Salomão.
“Então o principal problema que recai sobre Haddad não é a formação conceitual dele, mas se ele tem condições de se contrapor ao Lula”, afirma.
“Vamos voltar para o padrão de política econômica dos anos 2010 [era Dilma] ou aquele do final dos anos 1990 e começo dos anos 2000 [governos FHC e Lula, quando vigorou o tripé macroeconômico de câmbio flutuante, metas fiscais e meta de inflação]? Essa sinalização não está clara”, avalia o economista.
Para Rafael Cortez, cientista político e sócio da Tendências Consultoria, há ainda outro motivo para o mercado financeiro não se deixar impressionar pela gestão fiscal de Haddad na prefeitura paulistana.
“A redução da dívida municipal, muito embora tenha gerado efeito importante para o caixa da prefeitura, não foi fruto de uma gestão fiscalista ou de corte de gastos”, observa. “Foi basicamente uma negociação política em torno de uma mudança de legislação, que, ao trocar o indexador da dívida, diminuiu o estoque [de dívida] de forma considerável.”
Da prefeitura à Fazenda
Rogério Ceron, futuro secretário do Tesouro e secretário de Finanças da gestão Haddad à época da renegociação da dívida, rebate as críticas.
“Essa questão da dívida tem que se olhar pelo prisma da preocupação dele [Haddad] de longo prazo com a solvência do ente federativo [o município]. Ele tinha uma preocupação legítima com o longo prazo, mesmo sabendo que não seria o maior beneficiário dessa redução [do endividamento]. Isso faz muita diferença, ele é um estadista neste sentido”, defende.
Ceron cita ainda outras medidas tomadas por Haddad para o equilíbrio fiscal de São Paulo, que podem dar pistas do que vem pela frente na Fazenda.
Ele lembra, por exemplo, que o começo do governo Haddad foi marcado por uma profunda revisão de contratos da prefeitura, com um “pente-fino” nas despesas que pode ser replicado em nível federal.
Também cita que Haddad realizou diversas reformas na gestão tributária para inibir sonegação e reduzir o estoque de créditos tributários. E regulamentou de forma pioneira os aplicativos de transporte individual, o que passou a arrecadar milhões anualmente para o município.
Ainda no âmbito tributário, Ceron cita o aumento da arrecadação fruto de revisão feita no IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano). E quanto à arrecadação maior através de multas — Haddad chegou a ser acusado de criar uma “indústria da multa” no município — o futuro secretário do Tesouro argumenta que foi fruto de melhoria no processo de fiscalização.
“Tudo isso ajudou a elevar a capacidade de investimento, tanto que ele conseguiu entregar as finanças equilibradas e realizar o maior ciclo de investimento em décadas”, diz Ceron — em agosto de 2022, o Estadão Verifica checou a afirmação de que o investimento foi recorde durante a gestão de Haddad na prefeitura, e confirmou a informação como verdadeira.
Investimento federal, concessões e PPPs
A retomada do investimento federal será outro desafio para Haddad à frente da Fazenda.
Entre 2016 e 2020, após a crise econômica e a aprovação da regra do teto de gastos, o investimento no país caiu abaixo do necessário para repor a depreciação do estoque de capital existente.
Apenas a partir de 2021, o investimento voltou a crescer, puxado pelo setor privado, tendência que se manteve em 2022.
O futuro ministro da Fazenda tem defendido as concessões e PPPs (parcerias público-privadas) como um caminho para fortalecer os investimentos, em meio ao estrangulamento do orçamento público, pressionado por despesas obrigatórias crescentes.
A escolha do ex-presidente do Banco Fator, Gabriel Galípolo, para secretário-executivo do Ministério da Fazenda (cargo que é considerado o número dois da pasta), teria por objetivo destravar as PPPs.
Ceron, que antes de aceitar a secretaria do Tesouro, estava no cargo de diretor-presidente da São Paulo Parcerias, companhia responsável pela estruturação de concessões, PPPs e venda de ativos na Prefeitura de São Paulo, também é um entusiasta desse caminho, reforçando o histórico de Haddad com as parcerias público-privadas.
“Haddad foi o líder da elaboração da lei de PPPs [em 2003, no Ministério do Planejamento, a convite de Guido Mantega] e na gestão dele na prefeitura se iniciou a estruturação e licitação da PPP de iluminação pública, que foi a primeira do tipo no Brasil e hoje é o carro-chefe das PPPs em âmbito municipal”, defende o gestor.
Para o especialista em política fiscal Benito Salomão, o caminho das concessões e PPPs é correto para alavancar o investimento, mas precisa ser acompanhado da retomada das reformas para cortes de despesas obrigatórias, de forma a abrir espaço para o investimento no Orçamento federal.
“O investimento público é um dos principais problemas fiscais que o país precisa enfrentar”, diz Salomão.
“Hoje, a despesa obrigatória da União representa cerca de 92% do Orçamento. Não sobra recurso para investir — a PEC de Transição é um sintoma desse tipo de problema”, observa, citando a Proposta de Emenda à Constituição aprovada na Câmara e no Senado em meados de dezembro, para ampliar o teto de gastos em R$ 145 bilhões no próximo ano, viabilizando o Bolsa Família de R$ 600 no início do governo Lula. O texto também autoriza R$ 23 bilhões em investimentos fora da regra fiscal.
“Então precisamos saber quais serão os cuidados a serem tomados para que as despesas obrigatórias não continuem achatando o investimento público no Orçamento.”
Junho de 2013 e janeiro de 2023
Mesmo com investimentos recordes, saneamento das contas públicas e a conquista do grau de investimento pelo município, Haddad não conseguiu se reeleger prefeito em 2016. Para Rafael Cortez, da Tendências, isso se deve em grande medida aos efeitos de junho de 2013.
Haddad foi eleito em 2012 ainda num período de crescimento econômico e otimismo, com a promessa de investimentos ambiciosos no município, que seriam facilitados pela parceria entre prefeitura e governo federal, ambos sob gestões petistas.
Mas logo em seu primeiro mês à frente da prefeitura, foi ele o solicitado a ajudar o governo federal, adiando o reajuste das tarifas de ônibus da capital paulista de janeiro para junho, a pedido do então ministro da Fazenda Guido Mantega, com o objetivo de conter a inflação.
Em vez de acontecer num mês de férias escolares, o reajuste foi feito em pleno ano letivo, gerando uma forte mobilização contrária, que catalisaria outros descontentamentos, na maior onda de protestos vista no país no período recente.
Para Benito Salomão, o episódio remonta a um padrão de política econômica que precisa ser evitado no novo governo: o do controle artificial da inflação através de intervenções do Estado na economia — algo adotado também por Jair Bolsonaro (PL) em sua tentativa de reeleição.
“Esse é o tipo de padrão de política econômica que o Brasil precisa evitar. Não se controla preços represando preços administrados [aqueles controlados pelo poder público, como tarifas de ônibus, contas de luz, preços dos combustíveis etc]”, diz Salomão.
“Isso partiu de uma concepção absolutamente equivocada do problema da inflação dos anos 2010 e do avizinhamento das eleições [de 2014]. Muito parecido com o que Bolsonaro fez agora com o ICMS de combustíveis. Então esse é um tipo de padrão de política econômica que o ministro Haddad precisa evitar. E é sobre esse tipo de medida que recai a desconfiança.”
Para Rafael Cortez, o episódio de 2013, em que Haddad prejudicou o próprio mandato na prefeitura para atender a uma demanda do governo federal, ajuda a explicar a escolha do ex-prefeito para o cargo de ministro da Fazenda.
“A escolha do Haddad por parte do presidente eleito tem menos a ver com o pensamento econômico dele e mais com atributos políticos”, avalia Cortez.
“O primeiro desse atributos é a conexão pessoal e a relação de confiança entre o presidente e o ministro da Fazenda. Isso parece central ao presidente Lula neste momento, num início de mandato marcado por limitação do capital político [de Lula] e por uma realidade diferente daquela de 2003, com uma rejeição mais alta, fruto das administrações petistas anteriores e do processo de polarização e radicalização política.”
O segundo atributo, segundo o cientista político, é a expectativa de que Haddad seja capaz de tocar as negociações com Congresso e mercado, o processo de vender a agenda que o governo irá tentar implementar, seja para os agentes econômicos ou no âmbito parlamentar.
Ao mesmo tempo, 2013 reforça a dúvida sobre se Haddad será capaz de se contrapor a Lula, avalia o analista.
“De alguma forma, esse problema vai retornar agora em 2023. Uma boa parte do desempenho do Haddad pode ser comprometida por decisões que estão para além do seu controle. Que têm a ver com a maneira como o presidente vai tocar os diferentes interesses em pauta”, diz Cortez.
“Não me parece que o Haddad deva ser visto como o nome que vai se contrapor a eventuais decisões do presidente Lula. Até porque, sua escolha se deve justamente a essa sintonia.”
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