- Rachel Schraer
- BBC 100 Women
Como você pode pedir a uma comunidade que confie na medicina quando a história deu a ela várias razões para não confiar?
É um dilema com o qual a enfermeira americana Victoria Baptiste tem que lidar todos os dias enquanto viaja pelo condado de Baltimore, no Estado americano de Maryland, em uma clínica móvel, aplicando vacinas contra covid-19.
Nos últimos dois anos, uma pergunta continuou surgindo, especialmente por parte de pacientes negros: Já fomos submetidos a experimentos no passado — como podemos confiar neste tratamento?
Muitas vezes, eles se deparam com postagens imprecisas no Facebook ou no Twitter. Mas os medos desses pacientes negros não vêm apenas da desinformação online — a desconfiança deles começou há muito tempo.
“Quando começam a contar suas histórias, eles dizem: ‘Lembra do Tuskegee e da Henrietta Lacks, sempre fizeram experimentos com negros”, ela relata.
Tuskegee foi um experimento conduzido pelo governo dos EUA, ao longo de 40 anos, no qual centenas de homens negros foram deliberadamente deixados sem tratamento para sífilis, sem seu conhecimento.
Após o caso ser denunciado, foram introduzidos regulamentos em 1974 exigindo o consentimento informado e voluntário de todos os participantes de pesquisas.
E quanto a Henrietta Lacks, submetida a uma pesquisa médica antiética — ninguém entende melhor sua história do que Victoria. Henrietta era a mãe do amado avô de Victoria, Lawrence.
Durante o tratamento contra o câncer, foram coletadas amostras de tecido do colo do útero de Henrietta — e as mesmas foram colocadas em uma placa de Petri, como parte de uma busca por células que pudessem ser estudadas e submetidas a experimentos fora do corpo.
Ela não foi informada de que isso estava acontecendo. Tampouco foi totalmente informada sobre os efeitos do tratamento que estava recebendo contra o câncer, diz Victoria. Placas radioativas foram costuradas em seu colo do útero para tentar matar o tumor. Era um tratamento aceito na época, mas ela não foi informada de que isso poderia impedi-la de ter mais filhos.
Enquanto outras amostras de células morriam rapidamente, apesar dos melhores esforços dos cientistas, as células de Henrietta não apenas permaneceram vivas — elas se multiplicaram rapidamente, levando-as a serem chamadas de “imortais”.
O aumento vertiginoso dessas células, uma característica do câncer dela, seria devastador para ela — mas revolucionário para a ciência.
Esse estoque de células humanas pôde então ser usado para testar tratamentos para doenças, melhorando tanto a velocidade quanto a segurança da pesquisa médica.
As células de Henrietta Lacks — batizadas de HeLa — estiveram envolvidas na compreensão do câncer de colo do útero, da tuberculose, do ebola e do HIV, estabelecendo também as bases para as vacinas contra poliomielite, HPV (papilomavírus humano) e covid-19.
Elas beneficiaram milhões de pessoas — e renderam potencialmente bilhões de dólares para as empresas farmacêuticas que as usaram para testar seus produtos.
No entanto, a família Lacks nunca viu um centavo desse lucro. A certa altura, alguns membros da família não tinham condições sequer de pagar um plano de saúde.
Os detalhes completos sobre as células HeLa só chamaram a atenção da família quando a escritora científica Rebecca Skloot, que escreveu um best-seller sobre o caso, começou a investigar.
Então, quando Victoria diz que entende por que as pessoas podem desconfiar da indústria farmacêutica, ela está falando sério.
Uma enfermeira na família
Victoria cresceu ouvindo falar sobre a mãe que o avô Lawrence perdeu antes de chegar à idade adulta: uma mãe de cinco filhos que cuidava de todos e ansiava por mais filhos, e que adorava cozinhar, dançar e estar bonita.
Victoria e sua legião de primos — seus melhores amigos até hoje — passaram a infância correndo pela casa do marido de Henrietta, David, conhecido como Day. E foi graças a ele que Victoria se tornou enfermeira.
“Ele tinha diabetes quando eu era criança, e eu sempre fui muito curiosa e fazia perguntas como: ‘Por que você está se dando injeção? Para que serve isso?’ E ele sempre foi muito paciente comigo.”
Ela acabou, por fim, aprendendo a aplicar suas injeções de insulina.
No início de 2020, Victoria trabalhava como enfermeira na unidade renal de um hospital. Mas quando a covid chegou, seu trabalho mudou drasticamente. E, como muitos profissionais de saúde, ela tinha medo de levar a doença para casa.
Com receio de ter um burnout, mas querendo continuar cuidando das pessoas, em 2021 ela se tornou uma enfermeira itinerante, aplicando vacinas contra covid-19.
Ela logo percebeu que tinha talento para trabalhar com pessoas que estavam ansiosas ou hesitantes e tinham perguntas — indicando a elas as melhores pesquisas e ajudando-as a encontrar informações por conta própria.
E a história de Henrietta Lacks não saía da sua cabeça.
“Sabendo qual foi a história da minha família, não quero que a família de mais ninguém tenha a mesma história. Não quero que eles se sintam silenciados ou uma voz silenciosa em seu atendimento, como Henrietta foi.”
Para alguém que se sente pessoalmente conectada com o lado sombrio do que foi feito em nome da ciência, Victoria sabe que simplesmente pedir aos pacientes que ignorem os rumores online e confiem na ciência não seria suficiente.
“Eu nunca vou tentar evitar falar sobre esses temas difíceis”, diz ela.
“Sim, essas coisas aconteceram com Henrietta. Percorremos um longo caminho desde então. E ainda estamos lutando para garantir que esse tipo de injustiça não aconteça agora.”
Mas, ao mesmo tempo, a covid-19 estava afetando desproporcionalmente a comunidade negra, e as vacinas eram a ferramenta mais poderosa disponível para prevenir doenças graves e mortes.
Victoria acredita na possibilidade de reconhecer problemas genuínos na medicina e na indústria farmacêutica e exigir que sejam responsabilizados, ao mesmo tempo em que reconhece o peso de dados independentes sobre uma vacina que salvou cerca de 20 milhões de vidas em seu primeiro ano.
Ela explica a seus pacientes como as coisas mudaram desde a época de Henrietta — incluindo salvaguardas como o Conselho de Revisão Institucional, concebido para garantir que a pesquisa seja conduzida de forma ética, e a necessidade do consentimento informado.
“Percorremos um longo caminho desde 1951. A pesquisa tem tantos freios e contrapesos antes de divulgar as coisas ao público”, diz ela.
Isso não significa que ainda não haja problemas a serem resolvidos.
Agora, além de trabalhar diariamente como enfermeira e com a iniciativa da família HELA100, Victoria está servindo como embaixadora da Organização Mundial da Saúde (OMS) para a eliminação do câncer de colo de útero, que ela vê como uma missão pessoal.
“Sabemos o que sabemos agora sobre o câncer de colo de útero por causa da perda que minha família teve”, diz ela.
É outra doença da qual as pessoas negras nos EUA têm maior probabilidade de morrer.
Victoria quer que o maior número possível de pessoas faça o exame para identificar o HPV, tenha acesso à vacina e ao tratamento precoce, para reduzir as mortes por um câncer que é evitável em mais de 90% dos casos.
“Perdemos uma pessoa amada para o câncer de colo de útero”, diz ela.
“Mas, por meio de sua morte, a ciência foi capaz de inventar a vacinação.”
As fotografias são cortesia da CELLebrate Henrietta Lacks #HELA100
Esta reportagem faz parte do especial BBC 100 Women, que todos os anos destaca 100 mulheres inspiradoras e influentes ao redor do mundo.
Você precisa fazer login para comentar.