Depois de sair clandestinamente do Japão, Kanaye Nagasawa foi o primeiro cidadão japonês a fixar residência permanente nos Estados Unidos. Ele ajudou a criar a indústria do vinho na Califórnia.
A uma hora de carro de São Francisco, na Califórnia (Estados Unidos), fileiras de vinhas retorcidas cobrem as encostas suaves dos morros do Condado de Sonoma. Ao lado do vizinho vale do Napa, aquela foi uma das principais regiões de cultivo de uva do mundo por mais de um século.
Muitos dos primeiros vinhedos comerciais da região foram plantados em meados dos anos 1850 por colonizadores europeus. Curiosos para saber se as uvas se desenvolveriam no solo rochoso e no clima temperado e ensolarado da Califórnia, eles fizeram experiências com variedades de Bordeaux e de outras regiões vinícolas populares da França e da Alemanha.
Mas a região talvez nunca tivesse desenvolvido tanto sua viticultura não fosse pela pouco conhecida história de um imigrante japonês chamado Kanaye Nagasawa.
Nascido em uma família de samurais, Nagasawa saiu clandestinamente do Japão dos xogunatos para tornar-se um dos fundadores de uma cultura utópica. Ele acabou ficando conhecido como o “Rei do Vinho da Califórnia”.
A vida de Nagasawa foi mais estranha que as histórias de ficção. No auge da sua influência, na virada do século 20, ele operava uma das maiores vinícolas da Califórnia, produzindo mais de 750 mil litros de vinho por ano nos 800 hectares da fazenda Fountaingrove, em Santa Rosa.
O “Rei do Vinho” ajudou o famoso botânico americano Luther Burbank na horticultura. Ele tinha contato com diplomatas japoneses no exterior. E sua luxuosa fazenda em Sonoma recebeu hóspedes como Thomas Edison, Henry Ford, o ambientalista John Muir e outras figuras de destaque.
Ainda assim, Nagasawa ficou quase esquecido, até que os viticultores locais Walter e Marijke Byck compraram um terreno ao lado da fazenda Fountaingrove original para plantar vinhedos. E, quando eles começaram a pesquisar a história da região, descobriram um legado complexo de vitórias, preconceitos e perdas.
“Minha mãe queria pesquisar a história da nossa terra. Quando ficou sabendo de Nagasawa, ela quis contar essa história fabulosa, de um importante personagem histórico do Condado de Sonoma, que muitas pessoas não conhecem”, afirma Rene Byck, filho de Marijke e dono da vinícola Paradise Ridge.
Eu visitei Rene Byck na sua pequena vinícola familiar e observei a exposição inaugurada pelos Bycks em 1996, com a ajuda do Museu do Condado de Sonoma e dos descendentes de Nagasawa – Kosuke Ijichi, Amy Mori e seus filhos.
As paredes exibiam fotografias de Nagasawa e sua família em frente aos seus vinhedos, entretendo convidados na sua sofisticada mansão em Fountaingrove e supervisionando as operações da vinícola. Havia também cópias dos seus primeiros rótulos de vinho, garrafas de champanhe e vinho da Borgonha, Riesling e Pinot Blanc de Fountaingrove e uma grande lata metálica do “Puro Suco de Uva de Vinho”, vendido por Nagasawa durante a Lei Seca, nos anos 1920.
O ponto central da exibição era uma longa e curva espada de samurai, que Nagasawa havia trazido do Japão quando voltou para visitar sua terra natal depois de adulto.
“Esta espada foi importante para Nagasawa porque, quando ele saiu para os Estados Unidos, ele precisou cortar seu cabelo e entregar suas espadas”, afirma Mary Ijichi, sobrinha-bisneta de Nagasawa. “Mas meu pai me contou que seu tio dizia: ‘nossa educação será nossa espada’.”
Agora escurecida e deformada, a espada foi um símbolo de resistência depois que o incêndio florestal Tubbs varreu a região em 2017. Ele atingiu uma área de 15 mil hectares, causando prejuízos de US$ 8,7 bilhões (cerca de R$ 46,2 bilhões) e destruindo 5.682 estruturas – entre elas, a vinícola Paradise Ridge.
“Quando vimos para onde o fogo havia se deslocado, sabíamos que tudo estava perdido”, afirma Karen Ijichi Perkins, irmã de Mary Ijichi.
O fogo também consumiu a última estrutura remanescente da fazenda Fountaingrove original: um celeiro de 16 lados construído por Nagasawa em 1899, que havia se tornado um marco histórico local. Seu apelido carinhoso era Celeiro Redondo.
Certamente parecia o fim da exibição, até que uma equipe de pesquisadores vasculhou as ruínas e fez a espada ressurgir triunfante das cinzas. O achado inspirou os Bycks e os descendentes de Nagasawa a recriar a exibição ao máximo possível, com cópias de fotos e artefatos.
A espada voltou às paredes quase ao mesmo tempo em que Paradise Ridge reabria para o público, em dezembro de 2019, com familiares de Nagasawa presentes à homenagem.
A saga de Kanaye Nagasawa
A história extraordinária de Nagasawa remonta a 1864. Naquele ano, 19 jovens samurais da península de Satsuma, em Kagoshima, no Japão, saíram clandestinamente do Japão da era Edo, fortemente isolacionista, em missão secreta para estudar ciência e tecnologia no Ocidente.
O mais jovem do grupo – Hikosuke Isonaga, então com 13 anos de idade – foi para a Escócia. Lá ele mudou seu nome para Kanaye Nagasawa para proteger sua família, já que viajar para fora do Japão, na época, era ilegal.
Na Escócia, ele foi atraído pelo líder religioso carismático Thomas Lake Harris, que estava recrutando seguidores para sua versão do transcendentalismo extático chamada Irmandade da Nova Vida.
Harris levou Nagasawa e diversos dos seus colegas samurais para o interior do Estado de Nova York, nos Estados Unidos, onde ele havia fundado uma comunidade às margens do lago Erie. E, quando Harris decidiu mudar a comunidade para uma faixa de terra de cerca de 240 hectares, na zona rural do oeste do Condado de Sonoma, em 1875, Nagasawa, então com 25 anos de idade, seguiu com ele.
“Acho que Harris foi como um pai para ele”, afirma Perkins. “Ele havia saído do Japão muito jovem e não tinha família nos Estados Unidos. Harris era tudo o que ele tinha.”
Harris deu à fazenda o nome de Fountaingrove, devido a uma fonte de água permanente que havia na propriedade. Ele começou a cultivar uvas e nomeou Nagasawa encarregado da operação.
A vinícola logo prosperou, mas o “Éden do Oeste”, como a comunidade se autodescrevia, ficou cada vez mais rebelde, até chegar às manchetes dos jornais de São Francisco com suas festas bacanais que, por fim, levaram à partida vergonhosa de Harris do local.
Depois que Harris se foi, Nagasawa assumiu a propriedade da fazenda. Ele progrediu rapidamente até tornar-se uma referência respeitada na nascente indústria de vinho da Califórnia. E tornou-se também o primeiro cidadão japonês com residência permanente nos Estados Unidos.
“Ele e Luther Burbank costumavam cavalgar juntos por todos os vinhedos e ranchos, dando conselhos sobre o cultivo de uvas e de outros produtos”, afirma Gaye LeBaron, um dos autores do livro The Wonder Seekers of Fountaingrove (“Os caçadores de maravilhas de Fountaingrove”, em tradução livre).
“Os moradores da cidade o admiravam ao máximo, como você pode ver pelas fotografias daqueles enormes jantares que ele fazia no seu gramado frontal”, segundo LeBaron. “Ele desempenhou um papel significativo no crescimento da indústria vinícola da Califórnia e foi o primeiro a vender nosso vinho para a Inglaterra e o continente europeu, tornando-se também uma figura internacional”.
LeBaron acrescenta que Nagasawa recebeu do imperador japonês a Ordem do Sol Nascente, em 1915.
Mas tudo isso chegou ao fim durante um dos capítulos mais sombrios da história da Califórnia. Fountaingrove foi confiscada pelo governo, como parte das Leis sobre Terras de Estrangeiros do Estado, instituídas em 1913 e ampliadas nos anos 1920. As leis eram discriminatórias e proibiam que cidadãos asiáticos fossem proprietários de terras ou negócios.
Nagasawa nunca havia se casado, nem tinha filhos. Ele tentou manter a fazenda na família, deixando-a por testamento ao seu sobrinho-neto – Kosuke Ijichi, que havia nascido na fazenda e, por isso, era cidadão americano – e ao pai de Kosuke, Tomoki Ijichi, nascido no Japão.
Mas, quando Nagasawa morreu, em 1934, Kosuke ainda era menor de idade. O administrador assumiu o controle da fazenda e rapidamente vendeu a terra.
Em 1942, o presidente americano Franklin Roosevelt assinou o Decreto 9066, ordenando a retirada forçada dos cidadãos nipo-americanos, considerados “inimigos estrangeiros”. Na época, os herdeiros de Nagasawa ainda contestavam judicialmente o confisco da fazenda, mas foram presos em campos de concentração.
Ao lado dos cerca de 125 mil cidadãos nipo-americanos aprisionados até o final da Segunda Guerra Mundial, os herdeiros de Nagasawa perderam todas as possibilidades de reclamar a propriedade.
“Ele sofreu duas vezes nas mãos do governo e seria compreensível se ele ficasse um pouco amargo”, afirma Perkins sobre Kosuke Ijichi, o pai dela e de Mary Ijichi. “Mas não acho que ele quisesse transmitir isso para nós.” E, de fato, durante a infância, os filhos de Ijichi e Amy Mori pouco sabiam sobre Fountaingrove ou o legado da família.
“Acho que meu pai reprimiu seus verdadeiros sentimentos sobre aquilo”, afirma Mary. “Todos sabíamos que era onde meu pai e minha tia cresceram e nós fomos até lá para ver algumas vezes. Mas realmente não conhecíamos a história.”
O resgate histórico
Só no final dos anos 1970 e início da década de 1980, a história começou a ressurgir, pelo menos localmente. Foi quando LeBaron começou a escrever sobre ela para o jornal Press Democrat, de Santa Rosa.
Ao mesmo tempo, a imprensa japonesa filmou documentários sobre o legado coletivo dos 19 estudantes samurais de Kagoshima. Muitos deles haviam se tornado figuras importantes do governo e da indústria depois que voltaram para o Japão. Mas a exibição em Paradise Ridge foi o que mais ajudou os herdeiros de Nagasawa a contar novamente sua história.
“Foi positivo para o meu pai vasculhar e colaborar com fotografias. Saber que os Bycks eram sinceros e que preservar a história era importante para eles o ajudou”, afirma Mary Ijichi.
A exibição atual em Paradise Ridge é bem menor que antes do incêndio, mas é a única exibição permanente dedicada a Nagasawa nos Estados Unidos. O Museu do Condado de Sonoma mantém uma extensa coleção sobre Nagasawa e Fountaingrove, mas vem promovendo exibições temporárias.
A maior coleção sobre Nagasawa fica no Japão, onde foi aberto em 2014 um museu para preservar o legado dos 19 estudantes samurais – o Museu dos Estudantes de Satsuma, em Kagoshima. Dez descendentes de Nagasawa compareceram à abertura do museu, reunidos por Rene Byck.
Pouco acima de Paradise Ridge, a cidade de Santa Rosa formou em 2007 o Parque Comunitário Nagasawa. Com 13 hectares de extensão, o parque foi inaugurado em uma cerimônia com a presença de diversos familiares de Nagasawa.
E, em Paradise Ridge, logo atrás do canteiro de uvas chardonnay conhecido como Vinhedo Nagasawa, uma pequena área cercada abriga uma recém-cultivada plantação de chá, resultado dos esforços para conectar o legado de Nagasawa ao da fazenda Wakamatsu, que empregou alguns dos primeiros imigrantes japoneses da Califórnia, na produção de chá e seda.
“Grande parte da agricultura da Califórnia deve seus princípios aos imigrantes japoneses. Como o ‘Rei da Batata’, o ‘Rei do Alho’ e também o ‘Rei do Vinho'”, afirma o fundador da plantação de chá, Nao Magami. Ele se refere aos imigrantes japoneses George Shima – suas vastas colheitas de batata fizeram com que ele se tornasse o primeiro milionário nipo-americano – e Kiyoshi Hirasaki, que chegou a ser o maior produtor de alho do país.
“Mas, quando os japoneses foram mandados para os campos na Segunda Guerra Mundial, todas essas histórias foram perdidas”, afirma Magami. “Agora, estamos tentando reunir os legados desses pioneiros da Califórnia.”
Em 2021, o grupo Wakamatsu realizou sua primeira cerimônia do chá em Paradise Ridge, com a presença de familiares de Nagasawa. Mas talvez o melhor e mais simples epitáfio para esse homem notável é aquele que foi acrescentado pela família à placa do Parque Nagasawa, descrevendo sua vida em apenas quatro palavras: “Espírito Samurai na Califórnia”.
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