- José Carlos Cueto – @josecarloscueto
- Enviado da BBC News Mundo a Doha
Não faz muito tempo, Doha, a capital do Catar, estava longe da imagem futurista e quase distópica que vemos hoje em 2022, a poucos dias do país sediar a Copa do Mundo de futebol.
Um século atrás, em 1922, este pequeno Estado do Golfo Pérsico de três milhões de habitantes e menos de 12.000 km² era uma terra praticamente desabitada — um humilde assentamento de pescadores e catadores de pérolas, no qual a maioria dos moradores eram nômades viajantes dos vastos desertos da Península Arábica.
Apenas alguns cidadãos com mais de 90 anos poderiam se lembrar hoje das terríveis dificuldades econômicas enfrentadas nas décadas de 1930 e 1940, depois que os japoneses inventaram o cultivo de pérolas, as produziram em massa e arruinaram efetivamente a economia do Catar.
Naquela década, o Catar perdeu até 30% da sua população, que partiu em busca de oportunidades no exterior. Dez anos depois, em 1950, não havia mais de 24 mil habitantes, de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU).
Mas a economia do país estava prestes a dar uma virada radical. Eles haviam encontrado seu milagre: uma das maiores reservas de petróleo do mundo.
Foi o ponto de partida para encher os cofres do Catar em um ritmo frenético a partir da segunda metade do século 20, e seus moradores se tornarem alguns dos cidadãos mais ricos do mundo.
Agora que o Catar se revela diante do mundo com seus enormes arranha-céus, ilhas artificiais luxuosas e estádios de última geração, a BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, analisa as três mudanças que transformaram este país em um dos mais ricos do planeta.
1. A descoberta do petróleo em 1939
Quando o Catar descobriu seu ouro negro, ainda não existia como nação e estava nas mãos dos britânicos, que assumiram o controle deste território em 1916.
Após vários anos de prospecção, as primeiras reservas foram encontradas em 1939 em Dukhan, na costa oeste do país, a cerca de 80 quilômetros de Doha.
Mas essa descoberta só viria a ser capitalizada alguns anos depois.
“A descoberta acontece logo no início da Segunda Guerra Mundial, o que impediu que o petróleo fosse exportado até 1949 e, por isso, não começaram a entrar os lucros”, explica à BBC News Mundo Kristian Coates Ulrichsen, analista do Baker Institute, dos EUA, especialista em Catar.
As exportações de petróleo abriram um leque de oportunidades no Catar, que rapidamente começou a se transformar e se modernizar.
Atraídos pela próspera indústria petrolífera, migrantes e investidores começaram a chegar ao Catar, aumentando sua população. Se em 1950 havia menos de 25 mil habitantes, em 1970 sua população já passava de 100 mil.
De um país de pescadores e catadores de pérolas, o Catar já acumulava um Produto Interno Bruto (PIB) superior a US$ 300 milhões em 1970.
Um ano depois, se consolidou como um Estado independente após o fim da presença britânica. Uma nova era que trouxe consigo uma segunda descoberta que gerou ainda mais riqueza.
2. A descoberta de gás natural
Quando engenheiros exploradores descobriram, em 1971, a vasta reserva de gás natural em North Field, na costa nordeste do Catar, poucos poderiam imaginar sua importância.
Somente 14 anos e dezenas de perfurações depois, foi constatado que North Field era o maior campo de gás natural não associado do planeta, com aproximadamente 10% das reservas conhecidas do mundo.
Isso, na prática, faz com que o Catar tenha uma das maiores reservas de gás do mundo, atrás apenas da Rússia e do Irã, países muito maiores em população e extensão territorial.
O North Field ocupa uma área de aproximadamente 6.000 km², o equivalente à metade de todo o Catar.
A Qatargas, empresa que mais produz gás natural liquefeito do mundo, considera o desenvolvimento dessa indústria um fator significativo para o crescimento econômico do Catar.
Mas, assim como no caso do petróleo, os lucros vultosos das exportações de gás demoraram a chegar.
“Durante muito tempo, a demanda não era tão grande e não havia um grande interesse em desenvolvê-la, mas tudo começou a mudar nos anos 1980, quando a infraestrutura começou a ser criada em várias fases, distribuindo (o gás) dentro do país — e, nos anos 1990, se preparando para exportá-lo e transformá-lo no grande motor da economia”, diz Coates.
3. O golpe palaciano de 1995
A curva de crescimento econômico do Catar dá um salto estratosférico com a chegada do século 21. Somente entre 2003 e 2004, o PIB passou de uma taxa de crescimento de 3,7% para 19,2%. Dois anos depois, em 2006, a economia cresceu 26,2%.
O crescimento de dois dígitos do PIB tem sido uma marca registrada da prosperidade do Catar por vários anos — e é um fenômeno que não pode ser explicado apenas pelo valor do gás.
“Isso aconteceu após a mudança política em que Hamad bin Khalifa al Thani, pai do atual emir Tamim bin Hamad Al Thani, tomou o poder em 1995, um fato controverso para alguns pela forma como aconteceu”, diz à BBC News Mundo Mohammad al Saidi, professor da Universidade do Catar, especialista em economia sustentável.
Hamad bin Khalifa al Thani depôs o pai como emir do país enquanto ele estava em uma viagem à Suíça. Os Al Thani são a dinastia que governa o Catar durante o último século e meio — e este tipo de sucessão de poder não é incomum.
Mas, independentemente das intrigas palacianas, os analistas concordam que essa sucessão foi um divisor de águas.
“Os investimentos em infraestruturas de extração, liquefação e distribuição se multiplicaram para otimizar o rendimento de suas enormes reservas, e isso se traduziu em um aumento exponencial das exportações”, explica o Instituto Espanhol de Comércio Exterior (ICEX).
Em 1996, um cargueiro repleto de gás natural liquefeito zarpou para o Japão. Foi a primeira grande exportação de gás do Catar, e o início da indústria multibilionária que catapultou o país para o topo da riqueza global.
O PIB per capita do Catar foi de US$ 61.276 em 2021. Se considerarmos também a paridade do poder aquisitivo, a cifra sobe para US$ 93.521, segundo o Banco Mundial, entre as mais altas do mundo.
Sua pequena população faz muita diferença. Os catarianos são apenas cerca de 300 mil – 350 mil, 10% da atual população de três milhões de habitantes, a maioria deles expatriados.
“Ou seja, a população à qual se destinam os grandes lucros do Estado é muito pequena. Isso permitiu que o PIB per capita crescesse tão rápido”, diz Coates.
O Estado do Catar, além de garantir altos salários, também oferece sistemas públicos robustos de educação e saúde.
Os desafios da economia do Catar
Mas o espetacular crescimento econômico do Catar sofreu reveses e desacelerou nos últimos anos. E vislumbra ainda desafios futuros, principalmente devido à sua dependência de combustíveis fósseis, atualmente sob grande escrutínio por seu impacto climático.
“Em 2013 e 2014, os preços do petróleo despencaram, e a diversificação econômica se tornou o principal tema de discussão”, diz al Saidi.
A isso se somou o bloqueio imposto entre 2017 e 2021 pela Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Bahrein e Egito após uma disputa diplomática com Doha, desafiando a resiliência da economia do Catar.
“O Catar ainda não construiu uma economia pós-gás ou petróleo. Por isso, eles estão tentando expandir o setor privado, investir muito ao redor do mundo para reduzir sua dependência de hidrocarbonetos”, acrescenta Coates.
Um bom exemplo dessa tentativa é a presença da Qatar Investment Authority, o fundo soberano estatal, em várias propriedades de renome em cidades como Londres e Nova York.
“Ou também como tentam impulsionar o turismo e transformar Doha em um polo de reuniões, conferências e eventos, principalmente agora com a Copa do Mundo”, completa Coates.
A rica economia do Catar se reflete nos mais de US$ 200 bilhões investidos nesta Copa do Mundo, a mais cara da história, com oito estádios, um novo aeroporto e uma nova linha de metrô, só para citar algumas das várias infraestruturas preparadas para o evento.
Grande parte do mundo questiona a forma como o evento foi preparado, com denúncias de organizações humanitárias sobre as condições de muitos trabalhadores envolvidos nas obras, a maioria proveniente de países como Nepal, Índia e Bangladesh.
Somam-se a isso outras denúncias de corrupção e suborno contra o Catar e a Federação Internacional de Futebol (FIFA) quando o país foi escolhido para sediar o evento em 2010.
Estes e outros questionamentos sobre os direitos das mulheres e da comunidade LGBT em um país rotulado como conservador e rígido fizeram com que muitos considerassem esse evento como um “banho de imagem”.
Independentemente das denúncias, está claro que se trata muito mais do que uma Copa do Mundo para este pequeno país que enriqueceu em tempo recorde e que agora busca se firmar como um importante ator geopolítico sob uma imagem mais moderna e progressista.
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