• Diana Massis
  • HayFestivalArequipa@BBCMundo

Crédito, Andres BO

Emilia vai reformar a cozinha de casa. Não porque queira — a ideia é do marido, que tomou a decisão sem consultá-la. Ele tinha vontade de ter uma cozinha mais moderna e ela, em vez de começar uma briga, resolveu aceitar resignadamente a obra.

Assim começa Qué hacer con esos pedazos (O que fazer com esses pedaços, em tradução livre) o novo romance da colombiana Piedad Bonnett, no qual examina os fragmentos de sua própria vida e de temas que compõem a existência: pessoas, decisões, violências, rupturas, culpas, perdas, sucessos, silêncios, saudades, dores.

Piedad Bonnett sabe de tudo isso.

Sua extensa obra poética tem sido amplamente reconhecida, assim como seus ensaios, romances e textos autobiográficos, como Lo que no tiene nombre (O Que Não Tem Nome), em que narra com delicadeza, honestidade e profundo amor o suicídio, aos 28 anos, de seu filho Daniel, que sofria de esquizofrenia.

A autora, que participou do Festival HAY, evento cultural peruano realizado na cidade de Arequipa, conta que na nova obra quis falar sobre “os abusos que sempre me interessaram, os pequenos abusos que as mulheres aceitam com uma passividade aterradora, sem armas para enfrentá-los. Porque se um homem te bate ou te chama de ‘vadia’ você tem como reagir”.

Assim aparecem as faces de Emilia, a personagem que é uma escritora na casa dos 60 anos e que nos revela, enquanto a cozinha desmorona, um marido egocêntrico, um ex-namorado estuprador, um pai punitivo, uma irmã controladora e uma filha distante.

BBC Mundo – O que fazer com esses pedaços?

Piedad Bonnett – Periodicamente as pessoas fazem avaliações da vida, do passado, da transformação desse passado em presente; você pensa em quantos amigos você perdeu, nos distanciamentos que aconteceram na família.

Durante a pandemia fui muito afetada pela situação dos meus pais, que são muito idosos e corriam risco de se infectar. Pensei na solidão da velhice, no que eu não sabia sobre meu próprio pai ou minha mãe e no meu próprio envelhecimento — porque envelhecemos muito, mas também porque estou em uma idade em que a curva aponta para baixo, e isso é irremediável.

O tema da família foi se impondo, e me interessou profundamente: o pai, a mãe, os filhos, porque você também faz um balanço da relação com seus filhos, um assunto do qual pouco se fala, porque muitas mães que têm relações ruins com seus filhos escondem ou negam, não querem aceitar.

BBC Mundo – Como a relação áspera de Emilia com sua filha Pilar, como se cada uma vivesse em mundos muito diferentes…

Bonnett – Os filhos julgam os pais com extrema severidade, e não entendemos quem eles são até ficarmos muito velhos. Isso pode nos levar a ser cruéis ou indiferentes e a nem mesmo perguntarmos sobre suas vidas.

É também um grande tabu; as mães minimizam a indiferença, a incompreensão e até as agressões que podem receber dos filhos.

BBC Mundo – Mas as agressões também vêm dos pais. Emilia foi castigada pelo pai e acha que “os laços familiares também são algemas”. Você concorda?

Bonnett – Muita gente não se atreve a encarar esses problemas e tenta fugir deles, porque são os mais insolúveis. Você coloca o dedo em algum lugar e eles começam a aparecer.

O vínculo familiar é acompanhado por um imperativo social e quase divino: com sua mãe você não briga, com seu pai, com seus irmãos e seus filhos você não briga.

Com amigos você pode ter uma mágoa, mas não essa enorme culpa. Pelo menos na América Latina, e vejo isso na Colômbia, há uma idealização das relações familiares. O que é diferente é a relação com o pai, existem muitos romances acusatórios do pai.

BBC Mundo – Do que eles são acusados?

Bonnett – Os pais causam muitos danos pela masculinidade mal administrada. Meu pai me castigava quando era pequena; não foi muito, e nada que configurasse maus tratos, mas era aceitável que o pai desse umas palmadas e uns cascudos, e isso me afetou profundamente.

Comecei a odiar a autoridade masculina, a odiar a Deus, que exigia tantas coisas de mim. Era contra todo tipo de autoritarismo. Mesmo das freiras.

Não é só o (autoritarismo) masculino, mas uma ordem que te subjuga, te aprisiona.

Então compreendi algo que me salvou: que meu pai era uma pessoa que tinha medo da vida, porque ficou órfão muito novo. Aos 14 anos, foi morar em um hotel abandonado, pois seu pai se casou com outra mulher.

Ele tinha medo de não exercer o papel de pai, e minha mãe atribuía toda a responsabilidade a ele: “seu pai está chegando”.

Ele desempenhava o papel que a sociedade lhe impunha, que incluía o que haviam feito com ele: bater nele, espancá-lo, gritar ou socar a mesa, coisas que eram aterrorizantes para mim. Quando entendi, comecei a perdoar, mas isso fica ali, como uma cicatriz.

BBC Mundo – O marido de Emilia, um homem pouco empático, parece estar em segundo plano, já que ela se refugia em sua escrita. E a pergunta que fica: o que é o amor quando se está junto há tanto tempo?

Bonnett – Quis falar sobre o quarto de Virginia Woolf, que para ela é o trabalho e literalmente um quartinho do apartamento em que se refugiava. Também de um momento nos casamentos… Porque aos 35, você vai embora, mas quando se tem 60 você diz: “Por que eu vou sair?” Há muito medo da solidão na velhice.

O marido é um personagem perturbador, é possível se concentrar e ignorá-lo, como quando há um mosquito que zumbe perto do ouvido o tempo todo — que você pode espantar, mas não toma uma decisão.

Um casamento de 30 anos é unido por muitas coisas, solidariedades, conhecimentos; se não há violência de fato ou infidelidade, fica difícil jogar tudo para o alto, e eu queria mostrar essa complexidade.

É comum que se diga a um amigo que tem um casamento morno algo como ‘ah, se separa’, mas não é tão fácil.

No caso das mulheres latino-americanas, elas também têm medo de que os homens procurem as de 30 anos, e não as que têm 65. A ideia de que ninguém se interessará por você ou amar você de novo. É uma velhice com amigas, mas não com homens.

Ultimamente tenho me interessado pelo tema aposentadoria: o homem que saía todos os dias e chegava às 6 da tarde, só te deixava ver alguns ângulos da vida dele, mas quando você o tem lá e ele envelhece, te mostra um futuro inesperado.

BBC Mundo – Os homens são necessários ou uma velhice com as amigas é suficiente?

Bonnett – Se tivesse que escolher, preferiria uma velhice cheia de amigos, de pessoas felizes, rindo, sem o peso de um marido antipático.

BBC Mundo – Além da violência cotidiana que você descreve, há outra violência maior, como a do namorado da juventude que engravidou a companheira. Uma noite ela se recusou a fazer sexo, mas “ele montou nela rudemente, abriu suas pernas com um dos joelhos e a penetrou sem preâmbulos”. Como os limites são impostos aos abusadores?

Bonnett – O episódio com o namorado me interessou para mostrar que ela não é burra, porque ela toma uma decisão e aborta. Ela o deixa e logo acaba se casando e reconstruindo sua vida. Mas depois há a morte do filho e alguns silêncios, por conta de coisas que não foram ditas.

BBC Mundo – É a morte de um bebê, uma morte súbita. Você viveu a experiência de perder seu filho Daniel, e no livro fala-se que “a morte não é algo natural, com o qual podemos concordar”, Como as duas coisas estão vinculadas?

Bonnett – A morte de um filho quebra uma vida para sempre, embora um filho de 28 anos não seja o mesmo que um bebê.

Eu roubei essa experiência de uma amiga, a quem aconteceu exatamente isso.

Mas repare que depois tem o episódio em que ela guarda as coisinhas do bebê, e que o marido a joga no chão com uns tapas, porque ele odeia o fato de que aquela ferida ainda esteja aberta nela.

Ele quis fechá-la, porque é um homem com sensibilidade limitada. Por outro lado, ela é uma pessoa… Eu sei que há leitoras em quem Emilia desperta raiva.

BBC Mundo – Por quê?

Bonnett – Ela (Emília) é da minha geração, mulheres que achavam que tínhamos rompido com tudo porque tomamos a pílula, pedimos divórcio, fomos para a universidade, criamos filhos trabalhando.

No entanto, a educação que recebemos nos deixou com males atávicos. Alguns arraigados.

Tenho amigas que são pessoas muito importantes e que dizem: “Tenho que ir porque meu marido está chegando em casa”.

As mudanças de mentalidade acontecem muito lentamente, a literatura tem o dever de revelar essas mentiras que contamos a nós mesmos.

Por isso gostei muito do livro Fierce Attachments, de Vivian Gornick, (lançado em espanhol com o título Apegos feroces, e no Brasil como Afetos Ferozes), porque é esse apego, essa palavra tão forte.

Crédito, Pilar Bonnett

Legenda da foto,

Escritora colombiana tem extensa obra poética

BBC Mundo – “Quantos anos levou para que ela deixasse de se sentir escrava da culpa. Culpa por odiar sua mãe, que a mandava se calar apenas com os olhos durante as visitas familiares; seu pai, que a cercava com suas proibições e a humilhava com seus castigos; sua irmã, que a julgou…” Como é o processo de se libertar da culpa?

Bonnett – É muito difícil desapegar, porque recebemos aquela educação religiosa que tem toda a ênfase na culpa.

Mas sou uma mulher que quase não carrega culpa. Em relação à morte do Daniel quase não tenho. Talvez a mais prevalente seja a de não poder ir ver meus pais tantas vezes quanto deveria.

BBC Mundo – Isso veio naturalmente ou houve um esforço?

Bonnett – Eu fiz um esforço, naturalmente você não chega a se livrar totalmente da culpa.

Mas há também uma epígrafe em uma obra de Susan Sontag que diz: “Olhe para si mesmo nas relações com os outros e se pergunte: será que eu também contribuo?”

Há pessoas que não são capazes de se fazer essa pergunta. Somos cegos para nós mesmos, é difícil entender até que ponto somos culpados.

Emilia parece uma pessoa sem culpas, ela não sente culpa em relação ao bebê, embora às vezes diga que talvez ela o tenha deixado em uma posição em que não o tocou, não o protegeu, não o levou ao médico. Mas é uma reflexão externa, ela não está atormentada.

BBC Mundo – “O corpo não responde, a máquina está desligando… isso não dura muito”, disse a Emilia seu pai. Ao que ela pensa: “Como responder a isso, que banalidades, que falsos consolos?” Como é olhar a velhice de frente?

Bonnett – A velhice tem duas fases: quando se entra nela e se começa a ver as mudanças que ela traz, abre-se mão de algumas coisas, mas ainda assim a vida é cheia de opções. Essa primeira velhice, entre 60 e 75 anos, é uma época de grande produtividade para os intelectuais.

Há mais compreensão, mais bondade, há liberdade em relação ao tempo, às tarefas.

Mas aquela que vivi com meus pais, a segunda velhice, é dolorosa, porque envolve algo horrível que é a paralisia na espera da morte.

BBC Mundo – “Quem envelhece fica feio”, ela pensa, e “o feio é aquele que se odeia”. “Como não sentir um certo desgosto ao ver as estrias no baixo ventre, os joelhos roliços, a flacidez que já está causando estragos”… Como você lida com a deterioração física?

Bonnett – Alguns se envolvem em uma guerra contra o tempo. São as mulheres que vivem com base no não-envelhecimento e que travam essa batalha diariamente. E há outros, entre os quais me incluo, que estamos registrando as mudanças e buscando as contrapartidas, mas as mudanças doem.

Quando você não consegue mais subir e descer escadas no mesmo ritmo, quando você está fazendo turismo e é difícil chegar àquele lugar mais alto, onde a vista é mais bonita. São renúncias duras.

Há algum tempo li sobre uma escritora argentina que se suicidou porque não suportava ver-se fisicamente. É preciso acumular sabedoria para não chegar a esses momentos de desespero.

BBC Mundo – Como compensa as mudanças físicas?

Bonnett – Ouço muita música, leio livros, vou à praia, e não ao Himalaia. Como muito — é o que os velhos fazem, comem —, bebo um bom vinho.

Idealmente, tudo poderia se encaixar, mas nunca se encaixa. Sempre falta alguma coisa.

BBC Mundo – A que se refere?

Bonnett – À saudade do sexo, por exemplo. A renúncia da sexualidade, a renúncia do amor! Nem pense em sexualidade, pense em amor, aquela coisa agitada que existe até os 50 anos; ou mesmo nos 60, há mulheres que se apaixonam nessa idade. Os homens se apaixonam até os 80 anos.

BBC Mundo – E por que não as mulheres?

Bonnett – Eu estava conversando com Chantal Maillard, uma escritora belga que mora em Málaga, e ela me disse que os homens têm um fardo que nós não temos, que é a libido. Nós, mulheres, a perdemos mais rápido. Aquele impulso brutal que os leva a assistir pornografia o tempo todo ou a se tornarem velhos horríveis que tentam tocar as meninas, nós não temos essas coisas patéticas.

Não se vê uma velha tentando colocar a mão na nádega de um jovem de 20 anos, certo?

BBC Mundo – Perdemos a libido por conta da nossa natureza ou porque tivemos que reprimi-la e controlá-la culturalmente?

Bonnett – Também fomos educadas para reprimir, e isso está reformatando nosso cérebro.

É sobre o que vou escrever agora, a relação com meu corpo, que é uma relação geracional, social. Como quando te faziam acreditar que você era “puta” se beijasse um rapaz quando tinha 14 anos.

BBC Mundo – Ver a vida como um todo que desmorona é ilusório?

Bonnett – É uma maneira metafórica de dizer algo como: minha vida está em pedaços, como dizem as pessoas; ou minha vida foi destruída. Mas há muitas outras tramas que estão lá. O que acontece é que de repente no processo de autoavaliação há uma percepção do trágico.

BBC Mundo – O que acontece quando tudo se despedaça?

Bonnett – Duas coisas possíveis: ou você afunda, pensa que sua vida é um fracasso, e isso te derruba; ou que você renasce como Emilia, que tem o ímpeto de um segundo nascimento.

BBC Mundo – E qual seria o seu equilíbrio?

Bonnett – A literatura me salvou, esse é o meu equilíbrio. Ensinou-me a amadurecer e serviu de apoio quando Daniel morreu.

Claro que minha vida também tem buracos, como um queijo gruyère, porque você está sempre descontente com algo sobre você ou sobre a realidade, e é por isso que você sente vontade de continuar escrevendo.

A literatura é um grande suporte, no meu caso, também tendo sido professora e transmitindo aos outros a visão da arte como caminho de transcendência. Essas duas coisas. E o amor dos poucos que amaram alguém.

Agora tenho três netas, e por isso não quero morrer ainda, quero que tenham uma ideia da avó, de quem fui, do que fui, e que não se esqueçam de mim.

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