• Dalia Ventura
  • Da BBC News Mundo

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Flora Tristán (1803-1844)

Você pode não saber exatamente quem ela é, mas Flora Tristán não é exatamente uma desconhecida.

Embora tenha desaparecido da história por um tempo, ela foi resgatada com tanta força que, além de livros e inúmeros artigos sobre ela tanto na França quanto no Peru, agora há ruas, escolas e organizações de ajuda feminina que levam seu nome.

E não é só isso.

Flora Tristán é uma das duas protagonistas de O Paraíso na Outra Esquina, romance escrito pelo Prêmio Nobel de Literatura Mario Vargas Llosa. O outro protagonista é o pintor pós-impressionista Paul Gauguin, seu neto.

Então, por que escrever outro livro sobre ela, como acaba de fazer a autora Brigitte Krülic, professora da Universidade de Paris-Nanterr ?

“Flora Tristán é uma personalidade excepcional do século 19, não só porque é mulher, mas também porque é uma mulher que resume todas as dificuldades ligadas ao destino das mulheres na primeira metade desse século e depois disso”, disse a autora à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC).

“Ao mesmo tempo, ela é um exemplo de uma capacidade incomum de como superar essas dificuldades.”

“Ela é precursora de muitas coisas: sindicalismo, feminismo, a exigência de liberdade para que as mulheres evoluam no espaço público sem serem incomodadas. Além disso, ser francesa e peruana é uma ponte entre dois mundos.”

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Brigitte Krülic e seu livro sobre Flora Tristan

Para a especialista em história das ideias políticas, Flora Tristan é uma personalidade extremamente interessante.

“Flora Tristán é uma filha espiritual e política da Revolução, parte daqueles pensadores que viveram a onda de choque da Revolução Francesa, seja para condená-la ou pensar em suas consequências ou tentar cumprir suas promessas.”

Mas havia algo além disso.

“Ela não apenas escreveu e estabeleceu marcos, mas teve uma vida digna de um romance de aventura. Ela era irresistível: eu precisava olhar mais a fundo como essa franco-peruana viveu sua vida, lutou suas batalhas e escreveu.”

O começo

Flora nasceu em 7 de abril de 1803.

“Seu pai era uma personalidade da aristocracia crioula peruana”, diz Krülic. Sua mãe era uma francesa que havia fugido para Bilbao, na Espanha, durante a Revolução.

“No começo, tudo parecia um conto de fadas.”

Sua casa em Paris era frequentada por personalidades como Simón Bolívar, o futuro libertador de cinco nações; o escritor e filósofo Simón Rodríguez, e o naturalista Aimé Bonpland.

Mas logo tudo isso mudou.

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Homenagem em azulejos a Flora Tristán na França

“Aos 4 anos, ela perdeu o pai e ficou em uma situação em que acumulou todos os problemas e todas as desvantagens.”

Embora seus pais tivessem se casado diante de um padre na Espanha, o procedimento não era válido para as autoridades e leis francesas, pois eles não haviam se casado no civil.

Portanto, ela não foi reconhecida como herdeira legal de seu pai, cujo irmão era vice-rei do Peru. “Como mulher, bastarda, órfã e pobre, ela não teria educação.”

Mas Flora era autodidata.

De mal a pior

Aos 17 anos, ela casou-se com seu patrão, André-François Chazal, um homem violento que a deixou quatro anos depois com dois filhos para criar e uma terceira a caminho. Essa terceira filha era Alina, que viria a se tornar mãe de artista francês Paul Gaugin.

Assim, começou uma luta desesperada pelo divórcio, que durou 14 anos.

Ela saiu de casa e passou a viver como se fosse uma fugitiva. Flora precisou se esconder e trabalhar o máximo que podia para sustentar seus filhos, mesmo sem o apoio de sua mãe — para quem uma mulher que abandonava o marido era pior que uma prostituta.

Segundo seu próprio relato, depois de realizar vários trabalhos, ela conseguiu um emprego com uma família inglesa com quem viajou pela Europa e visitou o Reino Unido pela primeira vez.

Ela voltaria para a França em 1839 e em 1840 publicaria Passeios em Londres, obra em que denunciava as desigualdades que presenciara, culpando os aristocratas e o sistema capitalista por tal injustiça. O livro se tornou um dos textos fundamentais do incipiente movimento socialista.

Mas nem esse livro nem todos os outros que ela escreveu provavelmente teriam visto a luz do dia se não fosse pela viagem que realizou em 1833.

Crédito, Getty Images

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Arequipa, no Peru, em gravura do século 19

“Decidi ir para o Peru e refugiar-me no seio da minha família paterna, esperando encontrar lá uma posição que me fizesse voltar a entrar na sociedade”, escreveu ela em Peregrinações de umaPária, de 1838.

Peru

Como em um romance de aventuras, conta Flora, a ideia da viagem surgiu depois de uma conversa casual em um albergue parisiense com um capitão chamado Zacarías Chabrié.

Em suas viagens, Chabrié havia conhecido a poderosa família Tristán, chefiada por don Pío Tristán y Moscoso, irmão mais novo do pai de Flora. O capitão sugeriu que ela escrevesse uma carta para ele.

A resposta do tio demorou a chegar e, embora não prometesse nada, ele enviou dinheiro para que ela fosse visitá-los em Arequipa.

Embora fosse incomum e perigoso uma mulher viajar desacompanhada naquela época, Flora atravessou o oceano sozinha, acompanhada por 18 homens.

Ela foi recebida na casa majestosa da família e desfrutou de muito conforto nos 8 meses em que esteve no Peru. Mas mesmo assim seu tio deixou claro que ainda a considerava uma bastarda e que ela não teria direito a nenhum bem da família.

“Fiquei sozinha, completamente sozinha, entre duas imensidões: a água e o céu”, diz a última página de Peregrinações de uma Pária, livro de memórias sobre sua jornada.

Foi entre essas “duas imensidões” que ele finalmente se encontrou.

Ela havia partidoda França como uma lutadora e rebelde que sonhava em recuperar seu lugar perdido na aristocracia. Mas retornou ao país em 1834 como uma revolucionária determinada a conquistar com a força das palavras um lugar justo para todos na sociedade.

‘A senhora está viajando sozinha?’

Desde o início ela tinha uma visão clara de como o mundo poderia ser melhor.

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Selo francês em homenagem a Flora Tristán

Sua visão de mulheres independentes era ambiciosa, o que ficou claro já em seu primeiro livro, Da necessidade de acolher mulheres estrangeiras, de 1835.

Nele, “ela imagina maneiras de ajudar as mulheres a viajar”, afirma Krülic.

“Quando uma mulher chegava a um hotel, a pergunta mais comum era ‘Madame está viajando sozinha?’, algo obviamente condenável: uma mulher que viaja sozinha é considerada uma aventureira, ou até mesmo uma ‘mulher de vida ruim’.”

“Flora mesma foi acusada quando esteve sozinha em um hotel: ‘Provavelmente é porque ela quer receber amantes’, disseram.”

“O que Flora reivindica é o direito das mulheres de serem anônimas, de poderem fazer tudo o que não é proibido — ir a um hotel, ao banco, a um museu — sem serem julgadas.”

“E esse problema da visibilidade das mulheres, da liberdade das mulheres no espaço público, infelizmente ainda não foi completamente resolvido.”

Finalmente livre

Em 1837, ela publicou Petição para a Reintegração do Divórcio, detalhando uma das causas pela qual mais lutou, bem como pela abolição da pena de morte.

Mas foi Peregrinações de umaPária que lhe abriu as portas dos salões parisienses.

Em Arequipa, no entanto, a obra causou uma rejeição tão forte que houve uma queima pública do livro, pois suas descrições do Peru em meados do século 19 ofenderam seus anfitriões no país.

Mais tarde, a obra foi reavaliada pelos historiadores peruanos e, nas primeiras décadas do século 20, foi acolhida como literatura peruana.

Na medida em que ficava mais famosa, Flora voltou a cairr na mira de seu marido.

Chazal perseguiu-a nas ruas e a espancou. Tentou tomar a custódia dos filhos na Justiça. Alina precisou ser escondida depois de ter sido sequestrada pelo pai.

Foi só depois que Chazal feriu Flora gravemente com um tiro que ele foi preso. Finalmente Flora e Alina estavam livres.

Crédito, Staatsgalerie Stuttgart

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Alina, filha de Flora, pintada por seu filho Paul Gauguin

Alguns anos depois, “de uma forma extremamente ousada e premonitória”, diz Krülic, Flora examinaria a questão do consentimento amoroso e da liberdade de movimento das mulheres no espaço público.

“Ela levantou uma noção que, no século 19, era completamente tabu: a do consentimento. Naquela época, nem homens nem mulheres estavam interessados ​​nisso. E ela não se limitou à necessidade de a mulher dizer ‘sim’.”

“Ele questionou quais as condições sob as quais o sim é dito… Haveria a opção de se dizer ‘não’? Ela perguntou porque ela mesma viveu isso: ela consentiu em se casar aos 17 anos, mas poderia ter feito outra coisa?”

Quase 180 anos após sua morte, essa noção ainda é tema de debates. E é um dos motivos que levou Krülic a escrever seu livro.

Seres humanos

“Flora Tristán não é apenas uma mulher mal casada que quase foi morta pelo marido”, declara.

“Sua personalidade e seu trabalho vão muito além: ele desenvolveu uma série de ideias extremamente inovadoras e interessantes.”

Embora nas décadas de 1960 e 1970 Flora Tristán tenha sido reconhecida como pioneira do feminismo e do movimento sindical, Krülic considera que “há uma profunda injustiça” no fato de “sua contribuição para o pensamento político e social não ter sido apenas minimizada, mas praticamente ignorada”.

Crédito, Getty Images

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Karl Marx

Até mesmo Karl Marx, que a reconheceu como “precursora de elevados ideais”, não a citou em seu Manifesto Comunista de 1848, embora conhecesse “sua ideia de que, além das particularidades de profissão, sexo, origem geográfica, localização, a classe trabalhadora constitui uma entidade única que tem interesses comuns”.

“Marx pegou essa ideia, desenvolveu-a, teorizou-a, respaldou-a com sua imensa cultura filosófica e econômica, com os meios intelectuais que tinha, mas Flora não.”

“Foi uma ideia extremamente forte, poderosa e original de Flora Tristán. Por que ele não a citou como os outros se, na verdade, foi a ideia dela que desempenhou um papel desencadeante para ele?”

“Eu acho que há duas razões principais.”

A primeira, segundo Krülic, é simples: ela era uma mulher e ele um homem do seu tempo.

A segunda é uma diferença de expressão.

“Ela tinha o vocabulário dos autores românticos. Ela lia muito, tinha uma cultura vasta e estava imbuída de pensamento cristão, totalmente dissociada da Igreja e anticlerical, mas não antirreligioso, e isso era um ponto fundamental de discordância com Marx.”

Mas embora “Marx escreva sobre os trabalhadores e seu admirável trabalho conceitual, a verdade é que requer estudo; não é uma leitura, como diz Flora, para os trabalhadores”.

Seu estilo era mais concreto.

“Ela sabia que os trabalhadores tinham uma jornada de trabalho muito longa, que muitos não sabiam ler e que tinham que ser abordados em uma linguagem simples que os incitasse à ação.

“Isso também foi muito inovador e a diferenciou dos socialistas de sua época”.

E ela colocou essa ideia em prática.

Ela se autodenominou “apóstola do Sindicato dos Trabalhadores” e em abril de 1844 fez uma viagem pela França, sendo perseguida pela polícia da época.

Seu fervor foi profundamente apreciado.

Quando morreu em Bordeaux seis meses depois, incapaz de terminar sua tour pela França, as pessoas por quem havia lutado gravaram as palavras em seu túmulo: “Em memória da senhora Flora Tristán, autora de ‘A União Trabalhadora’, os trabalhadores gratos. Liberdade, Igualdade, Fraternidade, Solidariedade”.