- Max Matza
- Da BBC News em Seattle
Os Estados Unidos aboliram a escravidão há 157 anos — ou seja, desde então, nenhuma pessoa pode ser propriedade legal de outra. Mas uma exceção permaneceu: os prisioneiros condenados.
Na maior parte dos Estados Unidos, a escravidão ainda é legal quando adotada como pena para um crime.
Mas, nas eleições de 8 novembro, eleitores de cinco Estados — Alabama, Louisiana, Oregon, Tennessee e Vermont — decidirão pela eliminação ou não dessas exceções nas suas constituições estaduais, em uma tentativa de proibir totalmente a escravidão.
O resultado poderá permitir que os prisioneiros contestem o trabalho forçado. Atualmente, cerca de 800 mil prisioneiros trabalham por centavos, ou sem pagamento. Sete Estados não pagam salários para os trabalhadores nas prisões pela maioria dos trabalhos exigidos.
Os apoiadores da mudança afirmam que esta é uma brecha para a exploração que precisa ser fechada. Já os críticos argumentam que é uma mudança insustentável, que pode gerar consequências indesejadas para o sistema de justiça criminal.
As raízes do sistema moderno têm origem nos séculos de escravidão dos afro-americanos, segundo pesquisadores dos direitos humanos.
Nos anos que se seguiram à abolição da escravatura, foram aprovadas leis especificamente destinadas a reprimir as comunidades negras e levá-las à prisão, onde os detentos seriam forçados a trabalhar.
Atualmente, existem prisioneiros negros americanos que ainda são forçados a colher algodão e outros produtos nas plantações do sul, onde seus antepassados foram mantidos acorrentados.
“Os Estados Unidos da América nunca tiveram um dia sem escravidão legal”, afirma Curtis Ray Davis II, que passou mais de 25 anos em trabalhos forçados em uma prisão da Louisiana por um assassinato que não cometeu, até o seu indulto, em 2019.
Davis teve uma série de trabalhos na conhecida Penitenciária Estadual de Louisiana, apelidada de “Angola”, nome do país de onde foram trazidos muitos dos africanos escravizados na região.
“Trabalhei por 25 anos e vim para casa com 124 dólares [cerca de R$ 627]”, afirma Davis. Ele nunca recebeu mais de US$ 0,20 (cerca de R$ 1) por hora de trabalho, o que, segundo ele, era feito “contra a minha vontade e sob a mira de uma arma”.
Cerca de 75% dos prisioneiros na penitenciária eram negros, segundo o Projeto Inocência, um grupo que trabalha para libertar prisioneiros inocentes que foram condenados. O grupo afirma que em “Angola” a escravidão americana nunca acabou.
“A escravidão foi abolida, mas, na verdade, foi apenas uma transferência de propriedade da escravidão legal e da propriedade privada para a escravidão literalmente sancionada pelo Estado”, afirma Savannah Eldrige, da Rede Nacional para a Abolição da Escravatura.
A organização vem trabalhando para ampliar o número de Estados que proíbem a escravidão sem exceções e vem tentando convencer os legisladores na capital americana, Washington, a aprovar uma lei similar alterando a constituição dos Estados Unidos.
Desde 2018, os Estados do Colorado, Nebraska e Utah aprovaram medidas proibindo todas as formas de escravidão. Eldrige destaca que o movimento reuniu o apoio de democratas e republicanos. Só assim foi possível a aprovação em Utah e Nebraska, Estados dominados pelos republicanos.
Ela prevê que, em 2023, 18 legislativos estaduais votarão leis para proibir a escravidão.
‘Consequências indesejadas’
Poucos apresentaram-se contrários aos esforços estaduais para eliminar a linguagem da escravidão. Mas o movimento encontrou resistência de críticos que afirmam que seria caro demais pagar salários adequados aos prisioneiros, que eles não merecem o mesmo pagamento ou que as mudanças trariam desvantagens aos detentos.
O legislativo da Califórnia rejeitou a retirada de referências à escravidão das leis estaduais em votação em 2022, quando os democratas, incluindo o governador do Estado, alertaram que pagar aos prisioneiros o salário mínimo estadual, de US$ 15 (cerca de R$ 76) por hora, custaria mais de US$ 1,5 bilhão (cerca de R$ 7,6 bilhões).
A Associação dos Xerifes de Oregon opõe-se à medida no Estado. Eles alegam que sua aprovação traria “consequências indesejadas” e a perda de todos os “programas de reforma”, que incluem tarefas com baixo pagamento, como trabalhar na biblioteca, na cozinha e na lavanderia.
O grupo afirma que essas tarefas oferecem algo para fazer aos prisioneiros e “servem de incentivo para o bom comportamento”, o que é um fator considerado nas audiências para concessão de liberdade condicional.
Para a associação, essa medida traz dois problemas: ela se aplica apenas aos condenados, deixando de fora as pessoas detidas aguardando julgamento, e poderia significar o fim de todos os programas prisionais não autorizados especificamente por sentença judicial.
“Os xerifes de Oregon não aceitam nem apoiam a escravidão e/ou a servidão involuntária de nenhuma forma”, afirma a associação em um panfleto aos eleitores. Ela acrescenta que a aprovação da medida “resultará na eliminação de todos os programas de reforma e aumento dos custos de operação das cadeias locais”.
Grandes empresas, via terceirizados
Os prisioneiros contribuem para a economia e a cadeia de fornecimento de muitas formas, algumas delas surpreendentes.
Eles já foram convocados para produzir de tudo, desde óculos até placas de automóveis e bancos de parques. Eles processam carne, leite e queijo e trabalham em centrais de atendimento telefônico de agências do governo e companhias importantes.
Rastrear as empresas que usaram mão de obra prisional pode ser difícil, já que o trabalho normalmente é terceirizado. Uma empresa contratada vende os produtos e serviços dos prisioneiros para companhias importantes que, às vezes, desconhecem sua origem.
Empresas que já se beneficiaram do trabalho prisional, somente no Estado de Utah, incluem a American Express, Apple, PepsiCo e FedEx, segundo um relatório da União Americana para as Liberdades Civis (ACLU, na sigla em inglês), publicado em junho.
Pelo menos 30 Estados incluem trabalhadores prisionais nos seus planos de operação de emergência contra desastres naturais e outros distúrbios civis. E eles combatem incêndios em pelo menos 14 Estados, segundo o relatório da ACLU.
Mas as vidas dos prisioneiros provavelmente não irão mudar da noite para o dia nos cinco Estados promotores do plebiscito, se a medida for aprovada.
“Esses plebiscitos são necessários, mas não são suficientes para pôr fim à escravidão”, afirma Jennifer Turner, pesquisadora de direitos humanos na ACLU.
Os tribunais ainda precisarão interpretar quais direitos têm os trabalhadores prisionais e se eles receberão benefícios como auxílio-doença, a que os trabalhadores em liberdade legalmente têm direito.
Nos Estados que já eliminaram as exceções de escravidão, os resultados foram variados.
No Colorado, um prisioneiro processou o Estado por estar, segundo ele, violando a abolição da escravatura. Mas, em agosto, um tribunal decidiu que os legisladores não pretendiam abolir todo o trabalho prisional e encerrou o caso.
Já uma prisão em Nebraska começou a pagar US$ 20 a 30 (cerca de R$ 100 a 150) por semana aos detentos depois que a exceção foi eliminada naquele Estado, segundo o jornal americano The New York Times. Espera-se que outros questionamentos legais surjam à medida que os prisioneiros continuem a lutar por seus direitos e proteções.
Davis, que foi preso injustamente em Louisiana, afirma que eliminar a exceção da prisão colocará fim a esse “incentivo” para que seu Estado natal detenha seus cidadãos.
“Acredito que qualquer pessoa com consciência, qualquer pessoa que entenda a legislação de propriedade, entende que seres humanos nunca deveriam ser propriedade de outras pessoas”, declarou ele à BBC News. “E que também não deveriam ser propriedade do Estado da Louisiana.”
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