Em uma noite fria de inverno em Portugal, ele pode ser servido com natas — recém-saído do forno, borbulhando em creme de leite — entre camadas de batata frita e fatias de cebola, temperado com noz-moscada.
Não é preciso andar muito pelas calçadas das ruas íngremes de Lisboa para encontrá-lo na forma de pataniscas crocantes, servidas com um pouco de sal grosso e acompanhadas de molho tártaro ou outro molho picante.
Você pode comprá-lo ainda na forma de bolinhos, temperados com alho e salsa, para saborear enquanto passeia pelas margens do Rio Douro, na cidade do Porto. Ou até encontrá-lo na forma de açorda, uma sopa com pão típica do Alentejo, coberta por coentro e um ovo pochê.
O bacalhau, ingrediente central de todos esses pratos, está profundamente arraigado na identidade culinária portuguesa. O país consome 20% da produção mundial.
Na verdade, esse peixe é tão importante para os corações (e estômagos) dos portugueses, que um ditado local afirma que “existem 365 formas de preparar bacalhau, uma para cada dia do ano”.
Mas o bacalhau só é encontrado nas profundezas geladas do Oceano Atlântico Norte, longe das costas portuguesas. É isso que torna o caso de amor entre Portugal e o bacalhau ainda mais curioso. Como esse peixe acabou nos pratos portugueses?
Para encontrar a resposta, é preciso revisitar mais de 500 anos de história.
Prato onipresente
Ao visitar restaurantes, mercados e cafés pelo país, você encontrará bacalhau, de uma forma ou de outra, em quase todos. O peixe tradicional é um dos destaques do badalado restaurante Alma, em Lisboa, que ganhou sua primeira estrela Michelin apenas nove meses depois de aberto — e uma segunda estrela logo em seguida.
“É engraçado porque, às vezes, os chefs com estrela Michelin ou de alta cozinha não valorizam o bacalhau porque não acham que ele se encaixe neste tipo de gastronomia”, diz Henrique Sá Pessoa, dono e principal chef do Alma.
“Mas sempre tenho e sempre terei bacalhau no menu.”
Pessoa garante aos visitantes que uma criação com base no peixe também fará parte do menu do seu novo restaurante Joia, a ser aberto em Londres ainda este ano. Mas, por ser um prato tradicional e bem explorado por muitos portugueses em todo o país, ele ainda está encontrando formas de levar o amor de Portugal pelo bacalhau para novos territórios.
Um exemplo é sua criação mais “instagramável” — ou seja, com forte potencial de ser exibida em posts na rede social —, a Calçada de Bacalhau, que recebeu esse nome pela sua semelhança com as ruas seculares do bairro histórico do Chiado, em Lisboa, onde fica o restaurante Alma.
Trata-se de uma versão moderna de um antigo prato dos camponeses e uma das receitas de bacalhau mais adoradas do país — o bacalhau à Brás — que tipicamente mistura bacalhau desfiado, batata palha, cebola e ovos mexidos, com guarnição de azeitonas pretas.
“Eu sabia que não poderia chamar de bacalhau à Brás porque os portugueses são muito tradicionais, e alguns ficam ofendidos quando você mexe com os pratos clássicos”, explica.
“Eu queria me inspirar nesse prato, mas elevar sua apresentação, sua textura e seus detalhes para conseguir algo mais delicado e elaborado.”
O resultado é bem diferente da versão normalmente servida nos jantares de família. Uma mistura cremosa de bacalhau, batata frita, ovos e cebola chega à mesa escondida em uma cobertura de fatias finas de bacalhau recobertas com pasta de azeitonas pretas para criar um visual parecido com a calçada de pedras. E a surpresa final vem quando você quebra a cobertura de pedras e surge uma gema de ovo cozido que estava no meio da mistura de bacalhau.
“Eu quis deslocar todos esses elementos do prato e tentar fazê-lo da forma mais perfeita possível”, afirma.
“Quando lançamos no restaurante, foi um sucesso instantâneo. E se popularizou especialmente nas redes sociais porque é visualmente muito marcante.”
Voltando na história
A Calçada de Bacalhau de Pessoa é apenas uma das mais recentes evoluções de um longo legado culinário, envolto em séculos de uma história pouco conhecida fora do país.
Tudo começou no final do século 14, quando a Marinha portuguesa percebeu que o bacalhau seco e salgado poderia ser armazenado por anos nos porões dos navios. Era o alimento perfeito para longas viagens marítimas.
Em meados dos anos 1500, durante as explorações marítimas portuguesas e a busca para chegar ao litoral da Índia, eles encontraram águas ricas em bacalhau perto do Canadá e da Groenlândia. Essa descoberta importante deu início à pesca do bacalhau pelos portugueses. Mas, no século 16, os pescadores portugueses foram expulsos da região pelos franceses e ingleses.
Nos séculos que se seguiram, Portugal ficou muito dependente da Inglaterra, que era o principal exportador de bacalhau. Nos anos 1800, o ingrediente era uma iguaria reservada à aristocracia.
Mas a popularidade do bacalhau aumentou no século 20, durante o regime do ditador português Antônio de Oliveira Salazar (1889-1970), que queria trazer o peixe de volta para casa.
Sua “campanha do bacalhau”, lançada em 1934, buscava reacender a indústria portuguesa da pesca (e de secagem do peixe) e instituir o bacalhau como símbolo nacional. Milhares de pescadores portugueses foram enviados para o Canadá e a Groenlândia para pescar bacalhau, e alguns chegavam a levar para casa até 900 toneladas por navio.
Mas era um trabalho extenuante, demorado e, muitas vezes, perigoso. Muitos dos homens nunca retornavam às suas famílias.
Esse trabalho prosseguiu até mesmo durante a Segunda Guerra Mundial, quando um navio português chamado Maria da Glória foi bombardeado enquanto se dirigia para os bancos de pesca na costa ocidental da Groenlândia, matando 36 pessoas a bordo.
Essas condições prejudicam a indústria pesqueira até hoje. Estima-se que 24 mil pessoas percam a vida no setor anualmente em todo o mundo, segundo a organização Seafarers Rights International.
Foi essa história complexa que fez com que o amor de Portugal pelo bacalhau ficasse tão enraizado. E é o que levou o chef de cozinha e especialista em alimentos Leandro Carreira a incluir mais de 50 receitas com o peixe em seu novo livro, Portugal, The Cookbook (“Portugal, o livro de receitas”, em tradução livre).
Ao todo, o livro apresenta mais de 550 receitas tradicionais de todo o país, incluindo uma salada de bacalhau cru, que mistura o peixe com pimentões vermelhos assados, cebola, alho e salsa.
“Se eu não incluísse [o bacalhau], teria enfrentado muitos problemas”, afirma Carreira.
“O bacalhau se enraizou na nossa cultura ao longo dos séculos, desde que começou o comércio de sal, que foi difícil escolher quais receitas seriam incluídas no livro.”
O amor pelo bacalhau segue vivo até hoje.
“Conheço pessoas que comem bacalhau todos os dias, há mais de 30 anos”, ele conta.
“Minha avó costumava comer todos os dias o mesmo prato no almoço, com bacalhau, batatas cozidas, cebola crua, alho, azeite de oliva, vinagre e salsa. E até eu e todas as pessoas que conheço comemos bacalhau pelo menos duas vezes por semana.”
“O bacalhau é um produto incrivelmente flexível. Você pode grelhar, cozinhar, assar, fritar, fazer torta ou comê-lo cru depois de deixar de molho na água. Combinando isso com seu baixo preço e acessibilidade, você pode ver por que [ele é popular]”, segundo Carreira.
‘Não sobreviveríamos sem Portugal’
Atualmente, Portugal importa da Noruega cerca de 70% do seu bacalhau. O Conselho Norueguês da Pesca descreve Portugal como “de longe, o maior mercado do bacalhau da Noruega”. E, das 100 mil toneladas que a Noruega exporta anualmente para Portugal, 95% são de bacalhau salgado, segundo a entidade.
Na remota e gelada ilha pesqueira norueguesa de Røst, o bacalhau mais pesado de uma expedição de pesca recebe até um nome específico: “bacalhau português”, diz Pessoa. Como ex-embaixador no Conselho Norueguês da Pesca, ele visitou a ilha diversas vezes.
“Eles sabem que Portugal paga o melhor preço por aquele bacalhau”.
Quem confirma é Rita Karlsen, executiva-chefe da empresa norueguesa Bødrene Karlsen, que exporta bacalhau seco e salgado para Portugal desde a sua fundação, em 1932.
“Portugal é muito importante [para os exportadores de bacalhau da Noruega]; é o nosso cliente mais importante”, afirma.
“Não teríamos conseguido sobreviver sem Portugal.”
Fritadas de bacalhau da chef portuguesa Marlene Vieira
Essa influência se espalhou até países como o Brasil, que importou 8,6 toneladas de bacalhau somente para a Semana Santa em 2019, e Angola, que importou 308 toneladas de bacalhau da Noruega em 2012, segundo o Centro Interpretativo da História do Bacalhau, em Lisboa.
Na Itália, existe até um festival do bacalhau, a “Festa del Bacala”, que é realizada todos os anos em Veneza. E, na região da Toscana, as pessoas apreciam pratos clássicos como o bacalhau à moda de Livorno, que combina bacalhau com um rico molho de tomate com alho.
Para outros chefs de cozinha portugueses, o bacalhau reúne o passado e o presente. Entre eles, está Marlene Vieira, jurada do programa MasterChef Portugal, chef de dois restaurantes de Lisboa e o único rosto feminino entre os chefs do Time Out Market de Lisboa, onde suas pataniscas de bacalhau rendem elogios.
Ela explica que a receita vem da sua avó. O ambiente de pobreza em que ela vivia fez com que usasse na massa partes menos nobres do bacalhau, como o rabo, que são mais baratas. Como tem menos umidade, resultou em um acabamento mais crocante, “parecido com tempurá” — uma excelente combinação com o pimentão vermelho assado e a maionese de alho servidos por Vieira para acompanhar.
Ela se lembra de ajudar sua avó na cozinha quando era criança “para fazer as coisas que ela não gostava de fazer”, como descascar a cebola, o alho e, claro, retirar cuidadosamente as espinhas do bacalhau.
Hoje, ao mesmo tempo em que mantém as tradições, Vieira faz questão de promover o peixe, junto aos frutos do mar locais portugueses. Seu refinado restaurante Marlene dedica-se exatamente a isso.
Ela até cozinha bacalhau em casa para sua filha que, segundo ela, “ama, ama, ama bacalhau”. Talvez seja uma prova de que, apesar da distância que o país precisa percorrer para trazer o peixe do Atlântico Norte, a paixão pelo bacalhau continuará a fluir no sangue português pelas próximas gerações.
Salada de Bacalhau Cru
Receita do chef Leandro Carreira
Tempo de preparação: 25 minutos
Tempo de cozimento: 20 minutos
Serve 4 porções
Ingredientes:
– 450 g de bacalhau salgado, dessalgado e reidratado (deixe o bacalhau salgado imerso em água por até dois dias, trocando a água diariamente até atingir o ponto de sal desejado);
– 2 pimentões vermelhos;
– 2 ovos;
– 100 ml de azeite de oliva;
– 30 ml de vinagre de vinho branco;
– 1 cebola pequena, descascada e picada;
– 2 dentes de alho, descascados e picados;
– 1/3 de maço de salsa picadinha;
– Sal marinho e pimenta moída na hora, a gosto
Modo de preparo:
1. Verifique se o bacalhau não está salgado demais antes de cozinhar. Se estiver, deixe imerso na água por mais duas horas. Retire a água;
2. Prepare uma churrasqueira ou pré-aqueça a grelha ou chapa;
3. Assim que o carvão da churrasqueira começar a ficar em brasa, coloque os pimentões sobre a grelha e asse por oito minutos, ou até que eles fiquem escuros. Coloque em um saco plástico ou cubra com uma película e deixe em repouso. Você pode também cozinhar na chapa;
4. Depois que os pimentões esfriarem um pouco, remova a pele e as sementes, fatie em tiras finas e reserve;
5. Quando o bacalhau estiver com o ponto de sal desejado, remova a pele e as espinhas. Pique o bacalhau e reserve;
6. Separe uma tigela com água gelada. Leve uma panela de água ao fogo. Quando a água ferver, acrescente os ovos, cozinhe por seis minutos e coloque-os na tigela com água gelada. Deixe esfriar;
7. Remova as cascas dos ovos e corte-os em fatias;
8. Misture todos os ingredientes, exceto a salsa, em uma tigela para servir;
9. Prove e ajuste o tempero com sal e pimenta, se necessário. Acrescente a salsa antes de servir.
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