- Leandro Machado
- Da BBC News Brasil em São Paulo
O presidente Jair Bolsonaro (PL), candidato à reeleição, tem repetido em seus discursos que seu adversário na disputa eleitoral, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), vai legalizar drogas no Brasil.
Esse é um dos temas da chamada “pauta de costumes” que o atual mandatário frequentemente se utiliza para atacar o rival.
Publicações que associavam Lula a drogas feitas por políticos bolsonaristas, como Carla Zambelli e Eduardo Bolsonaro, chegaram a ser suspensas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) na semana passada.
No entanto, o plano de governo do petista não fala em legalização das drogas – nem sua propaganda gratuita exibida na televisão e no rádio.
O programa de Lula destaca que “o país precisa de uma nova política sobre drogas, intersetorial e focada na redução de riscos, na prevenção, tratamento e assistência ao usuário”.
“O atual modelo bélico de combate ao tráfico será substituído por estratégias de enfrentamento e desarticulação das organizações criminosas, baseadas em conhecimento e informação, com o fortalecimento da investigação e da inteligência”, diz o documento.
Já em carta aos evangélicos, Lula afirmou que seu governo “vai fortalecer as famílias para que os nossos jovens sejam mantidos longe das drogas.”
Na semana passada, por exemplo, ao ser questionado sobre uma possível legalização da maconha no podcast Flow, Lula afirmou que o assunto não depende dele.
Por outro lado, embora o petista seja “acusado” de ser a favor da legalização, ele foi o responsável por sancionar uma lei que facilitou a prisão e endureceu as punições por tráfico de drogas quando ocupava o Palácio do Planalto, em 2006.
O presidente pode legalizar as drogas?
O presidente da República não tem poder para legalizar as drogas no Brasil. Uma mudança nessa área precisaria necessariamente ser aprovada pelo Congresso, por meio de um projeto de lei ou de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC).
E, a depender das bancadas da Câmara e do Senado eleitas nessas eleições – com maioria conservadora -, é improvável que alguma alteração seja aprovada nos próximos anos.
Outro caminho dependeria da Justiça. Desde 2015, um julgamento sobre a descriminalização do porte de maconha para uso pessoal está parado no Supremo Tribunal Federal (STF), e não há data para sua retomada.
Para Fernanda Vilares, doutora em processo penal pela USP e professora da Fundação Getulio Vargas (FGV), a criação de leis é uma resposta do Parlamento a violências latentes na sociedade.
“O Congresso escolhe dar uma resposta institucional a quem causou uma violência. O tráfico e o uso de algumas drogas são vistos pelo Estado como uma violência contra a saúde pública”, explica.
A chamada lei de drogas foi sancionada por Lula em agosto de 2006, três meses após uma onda de violência em São Paulo atribuída à facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC). Em apenas 10 dias, 59 policiais foram assassinados em ataques a delegacias e prédios da polícia — 505 civis também morreram no período.
Na esteira, a lei acabou com a pena de prisão para usuários e aumentou a punição para traficantes.
“A lei tinha o objetivo de separar quem é usuário e quem é traficante. O usuário passou a ser visto como uma questão de saúde pública, e não de cadeia. Quando é pego com drogas, ele vai à delegacia, responde a uma advertência, mas não fica detido”, diz Luis Carlos Valois, juiz de execuções penais do Amazonas e doutor em criminologia pela USP.
“Em tese, a lei tinha o objetivo de diminuir o encarceramento, mas aconteceu justamente o contrário”, explica Valois, autor do livro O Direito Penal da Guerra às Drogas (Editora D’Plácido).
O defensor público federal Gustavo de Almeida Ribeiro, que há 15 anos atua no STF, afirma que “a lei aumentou muito a aprisionamento e o tamanho das penas por tráfico de drogas.”
“Na lei anterior, de 1976, a pena mínima era de três anos de prisão. Na nova, passou para cinco”, diz.
Em 2005, antes da legislação sancionada por Lula, 14% dos presos haviam sido condenados por crimes relacionados ao tráfico, segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen). Já em 2019, o delito representava 27,4% — entre as mulheres, esse índice chega a 54,9% do total.
Em 2005, havia 296.919 pessoas encarceradas no país. Em 2019, eram 773.151 detentos, alta de 160%. Os últimos dados do Infopen são de 2019, mas o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) estima que no ano passado havia 820 mil pessoas presas. O número de vagas no sistema, no entanto, é de 442 mil.
O país tem hoje a terceira maior população carcerária do mundo, só atrás de China e Estados Unidos.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, dois em cada três presos são negros – apenas 51% concluíram o ensino fundamental. Já 62,3% têm entre 18 e 34 anos.
Por que a nova lei aumentou condenações?
Para defensores públicos e especialistas em direito penal, a lei de drogas de 2006 facilitou as condenações por tráfico, mas, na prática, não cumpriu a meta de diferenciar usuários de traficantes. O problema é que a legislação não estipula parâmetros objetivos para fazer isso.
O tráfico passou a ser caracterizado mais pelas circunstâncias da prisão do que pela quantidade da substância apreendida.
A lei cita 18 verbos que definem o crime: como importar, remeter, preparar, produzir, vender, expor à venda, oferecer, ministrar, entre outros.
A falta de critérios mais claros fez com que a principal prova utilizada pela Justiça para condenar seja o testemunho dos policiais envolvidos na detenção, segundo profissionais da área.
“Essa diferenciação do que é usuário ou traficante é bem aleatória. Na falta de investigação, se a pessoa tiver um caderno de anotações no momento do flagrante, por exemplo, ou estiver próxima de um local de venda de drogas, isso faz com que ela seja enquadrada como traficante”, diz Ribeiro.
Pesquisa do Núcleo de Estudos da Violência da USP, de 2012, apontou que 74% das prisões por tráfico em São Paulo tinham como únicas testemunhas os policiais militares. Só 4% das detenções ocorreram depois de investigações.
“Quem define se uma pessoa é traficante ou usuário é o policial. E isso é um poder muito grande. Se você tiver 5 gramas de maconha e R$ 20 no bolso, ele pode dizer que você é um traficante, e não usuário. Claro que essa decisão pode depender se você é branco ou negro, se você foi preso em um bairro de classe média ou na periferia. A Justiça costuma validar a decisão policial e condenar”, diz o juiz Luis Carlos Valois.
Para Rodrigo Murad do Prado, criminólogo e defensor público de Minas Gerais, a ação policial “não é imune a erros e preconceitos, como o racismo.”
“Quem o policial prende com mais facilidade? Pessoas de bairros pobres, ou que na rua. O preso mais comum é o pequeno traficante, que atua no varejo, não ganha muito dinheiro e é facilmente substituído. Você prende um hoje, , amanhã já tem outro no lugar. E quem o substitui primeiro? A mulher dele. Ajuda a explicar a alta de prisões de mulheres por crimes de tráfico”, diz Prado.
“São raros os casos de pessoas de classe média ou ricas condenadas por tráfico. E por que isso acontece? Primeiro porque elas têm mais acesso a bons advogados. Depois, porque o policial não entra em um apartamento de classe média sem mandado judicial, mas muitos fazem isso na periferia”, diz o defensor, que atua na área há 16 anos.
Apreensões de drogas funcionam?
Não existem dados oficiais sobre a quantidade média utilizada pela Justiça para condenações por tráfico. Há apenas pesquisas de amostragem sobre apreensões.
Uma delas, do Instituto de Segurança Pública (ISP) do Rio de Janeiro, apontou que, em 2014, o volume de maconha apreendido não passou de 6 gramas em 50% das 24 mil prisões em flagrante analisadas. Em 75% dos casos, o peso máximo não passava de 42,6 gramas.
Outro levantamento, do Instituto Sou da Paz, analisou milhares de ocorrências entre 2015 e setembro de 2017 no Estado de São Paulo. A pesquisa concluiu que as grandes apreensões de droga são minoria.
Nas 80 mil ocorrências de maconha compiladas, cada ação policial confiscou 39,8 gramas da planta, na mediana. Esse peso equivale a dois bombons da marca Sonha de Valsa.
Já em ações envolvendo cocaína, cada operação apreendeu 21,6 gramas da substância, também considerando a mediana de 71 mil ocorrências. O volume é o mesmo de dois sachês de ketchup.
Em alguns países, como o Reino Unido, usuários e pequenos traficantes não são punidos criminalmente porque entende-se que isso não causa grandes efeitos ao narcotráfico, que atua globalmente e em escala de milhares de toneladas.
Já o plano de governo de Bolsonaro celebra um aumento de 131% nas apreensões de cocaína e de 172% nas de maconha entre 2018 e o ano passado.
Neste ano, por exemplo, a Polícia Federal acredita que vai bater o recorde histórico de apreensões de cocaína. Até agosto, foram 72 toneladas. O recorde atual é de 2019, quando 104 toneladas foram confiscadas pela PF.
Em entrevista à Agência Brasil, o delegado Fabrício Martins, da Coordenação-geral de repressão a drogas, armas, crimes contra o patrimônio e facções criminosas, disse acreditar que apenas as apreensões não causam muito efeito na contabilidade das facções.
“A apreensão de drogas por si é eficiente? Não. Dentro do quadro de perdas da organização criminosa já está computado o quanto ela vai perder para as apreensões. A empresa vai continuar lucrando, porque o lucro é muito grande”, disse.
O delegado afirmou que, desde 2012, a Polícia Federal adota outra abordagem: a partir das apreensões e de investigações de lavagem de dinheiro, traficantes e facções são “descapitalizados” – nos últimos três anos, foram sequestrados ou apreendidos R$ 2,8 bilhões em bens de membros de grupos criminosos.
O Brasil tem 15 mil quilômetros de fronteiras, além de ser vizinho de países produtores de maconha e cocaína, como Paraguai, Colômbia, Peru e Bolívia.
Segundo o delegado, o Brasil é “um grande consumidor de drogas, mas também um ponto de trânsito” para cargas com destino à Europa, Ásia e África.
Ele afirmou que um quilo de cocaína é comprado por cerca de R$ 13 mil na fronteira do Brasil e revendido por R$ 53 mil nas grandes cidades do país. Se chegar à Europa, o mesmo volume pode render até R$ 210 mil às facções.
Distribuição de renda
Para Isabel Figueiredo, conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, as polícias brasileiras “estão estruturadas para cumprir metas de abordagens e apreensões de drogas, mas há pouco foco na resolução de crimes mais graves, como homicídios”.
Entre 2005 e 2019, o Brasil registrou 51 mil homicídios por ano, em média. Mas esse tipo de crime representa 11,3% das condenações no sistema prisional, segundo o Infopen.
Boa parte dessas mortes violentas estão relacionadas a disputas entre facções e operações policiais de combate ao tráfico. “Há Estados com índice de resolução de homicídios menor que 20% dos casos”, diz.
Para Figueiredo, o país também deveria criar políticas de distribuição de renda e de oportunidades para adolescentes e jovens pobres que são alvo de cooptação pelo crime organizado.
“A palavra é disputar esses jovens mesmo, oferecer alternativas, oportunidades de vida. Muitos entram para o tráfico porque economicamente é mais vantajoso para ele, mesmo que o futuro possa ser a cadeia ou morte”, diz Figueiredo.
Para Valois, esses jovens são seduzidos pelo crime porque têm vantagens financeiras e sociais no contexto do local onde vivem. “Há uma imagem de prestígio do traficante em alguns pontos. O moleque quer aquele poder da função, porque ali ele será valorizado, vai ter roupa de marca, tênis caro, namorada…”, diz o juiz.
Política de drogas
Como ocorreu em muitos países, a política de drogas do Brasil foi importada dos Estados Unidos: a chamada guerra às drogas, que, desde os anos 1960, propõe o combate bélico e o encarceramento de quem vende e usa substâncias ilícitas.
O presidente Jair Bolsonaro, por exemplo, costuma dizer que as drogas “destroem muitas famílias no Brasil” em relação ao uso problemático, ressoando o discurso de ex-presidentes americanos que apostaram na guerra às drogas como plataforma política, como Ronald Reagan.
“Nós sabemos que a liberação das drogas é uma desgraça para o país, não pretendo admitir isso”, afirmou ele à Agência Brasil.
Nos últimos anos, os Estados Unidos estão mudando sua política na direção contrária: está legalizando e apostando no mercado de maconha e de outras substâncias, como psicodélicos.
Neste mês, o presidente Joe Biden anunciou perdão judicial a todos os americanos condenados por posse e uso de maconha na Justiça federal – e pediu que os governadores façam o mesmo nos Estados.
“Ninguém deveria estar preso apenas por usar ou possuir maconha. Mandar pessoas para a prisão por portar maconha arruinou muitas vidas e prendeu pessoas por condutas que muitos estados não proíbem mais”, escreveu Biden no Twitter.
A legislação americana permite que cada Estado decida individualmente como regula as drogas em seu território.
Hoje, 19 deles permitem o uso medicinal e adulto da maconha. Outros 26 autorizam apenas o consumo medicinal.
No entanto, a legalização não resolveu o problema da mercado ilegal em alguns locais, como na Califórnia. A polícia da região vêm promovendo ações contra as fazendas de plantio ilegais – dezenas de toneladas foram apreendidas no ano passado, além de centenas de armas.
Outros países, como Uruguai, Canadá e Portugal, também revisaram sua legislação e legalizaram a maconha.
Mercado de maconha legal no Brasil
Nos últimos anos, o Brasil flexibilizou o uso medicinal de maconha por meio de decisões judiciais e de regulamentações da Anvisa. Atualmente, 5.500 médicos prescrevem produtos oriundos da planta no país.
Eles são usados no tratamento de epilepsia, Parkinson, autismo, depressão, entre outros.
Esse precedente fez florescer um mercado legalizado: farmacêuticas, start-ups, consultorias, agências de emprego e fundos de investimentos de grande bancos colocam e ganham dinheiro no setor.
Um estudo da Kaya Mind, consultoria de dados sobre o mercado canábico, estima que apenas o setor de medicamentos movimentou R$ 130 milhões no Brasil em 2021 – alta de 124% em relação ao ano anterior.
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