- Martha Henriques – @Martha_Rosamund
- BBC Future
A flecha do tempo começou sua jornada no Big Bang e, no dia em que o universo morrer, não haverá mais passado e futuro. Mas, até lá, o que impulsiona o tempo sempre para frente?
Quando Isaac Newton publicou seus famosos Princípios Matemáticos da Filosofia Natural em 1687, suas três elegantes leis do movimento responderam uma série de questões. Sem elas, não teríamos conseguido levar pessoas à Lua 282 anos depois.
Mas essas leis trouxeram um novo problema para a física, que só foi totalmente percebido séculos depois de Newton e continua intrigando os cosmólogos até hoje.
A questão é que as leis de Newton funcionam duas vezes mais do que poderíamos esperar.
Elas descrevem o mundo em que vivemos todos os dias — o mundo das pessoas, o movimento dos ponteiros do relógio e até a queda apócrifa de certas maçãs — mas também representam muito bem um mundo no qual as pessoas andam para trás, os relógios andam no sentido inverso, da tarde para a manhã, e as frutas sobem do chão para os seus galhos na árvore.
“A característica interessante das leis de Newton, que somente foi apreciada muito mais tarde, é que elas não fazem diferença entre o passado e o futuro”, afirma o físico teórico e filósofo americano Sean Carroll, que discute a natureza do tempo no seu livro mais recente, The Biggest Ideas in the Universe (“As maiores ideias do universo”, em tradução literal).
“Mas a direcionalidade do tempo é a sua característica mais óbvia, certo?”, questiona ele. “Eu tenho fotografias do passado, mas não tenho fotografias do futuro.”
E o problema não se restringe às teorias de Newton, de séculos atrás.
Virtualmente todas as teorias básicas da física desde então funcionaram tão bem quando avançamos no tempo quanto no sentido inverso, segundo o físico italiano Carlo Rovelli, do Centro de Física Teórica de Marselha, na França. Ele é autor de vários livros, incluindo A Ordem do Tempo (Ed. Objetiva, 2018).
“Desde Newton, passando pela teoria do eletromagnetismo de James Clerk Maxwell, pelos trabalhos de Einstein, até a mecânica quântica, a teoria do campo quântico, a relatividade geral e até a gravidade quântica, não há distinção entre o passado e o futuro”, afirma Rovelli.
“O que é uma surpresa, já que a distinção é muito evidente para todos nós. Se você fizer um filme, fica óbvio qual é o caminho do futuro e qual é o passado.”
Parte da resposta está no Big Bang, cerca de 14 bilhões de anos atrás. Outra indicação vem do extremo oposto – a eventual morte do universo.
Mas, antes de embarcar nessa jornada épica, para frente e para trás, ao longo da flecha do tempo do universo, vale a pena fazer uma parada em 1865, quando a primeira lei da física verdadeiramente relacionada à direção do tempo chegou deslizando pelos trilhos da Revolução Industrial.
O acúmulo de vapor
No século 19, enquanto as pás retiravam o carvão para alimentar as fornalhas que geravam a energia do vapor, cientistas e engenheiros tentavam desenvolver motores melhores. Para isso, eles adotaram um conjunto de princípios que descreviam a relação entre o calor, a energia e o movimento.
Esses princípios ficaram conhecidos como as leis da termodinâmica.
Em 1865, na Alemanha, o físico Rudolf Clausius (1822-1888) afirmou que o calor não pode passar de um corpo frio para um corpo quente, a menos que haja alguma mudança em torno deles. Clausius criou o conceito que chamou de “entropia” para medir esse comportamento do calor.
Outra forma de dizer que o calor nunca flui de um corpo frio para outro quente é dizer “a entropia apenas aumenta, nunca diminui”.
Como Rovelli salienta em A Ordem do Tempo, esta é a única lei básica da física que pode separar o passado do futuro. Uma bola pode rolar montanha abaixo ou ser chutada de volta para o pico, mas o calor não pode fluir do frio para o quente.
Para ilustrar a questão, Rovelli deixa cair sua caneta de uma mão para a outra.
“A razão por que ela para na minha mão é porque ela tem um pouco de energia e a energia é transformada em calor e aquece a minha mão”, explica ele. “E a fricção impede o seu retorno. Caso contrário, se não houvesse calor, ela ficaria pulando para sempre e eu não diferenciaria o passado do futuro.”
Até aqui, tudo bem. Mas agora começamos a analisar o calor em nível molecular.
A diferença entre os objetos quentes e os frios é a agitação das moléculas. Em um motor a vapor quente, as moléculas de água estão muito agitadas, movendo-se e colidindo umas com as outras rapidamente. Essas mesmas moléculas de águas ficam menos agitadas quando se condensam sobre uma vidraça.
Mas aqui é que mora o problema. Quando você amplia a imagem até o nível, digamos, em que uma molécula de água colide e ricocheteia em outra, a flecha do tempo desaparece.
Se você assistisse a um vídeo microscópico dessa colisão e quisesse retrocedê-lo, não ficaria óbvio qual era o sentido do vídeo, se para frente ou para trás. Na menor escala possível, o fenômeno que produz calor — a colisão de moléculas — é simétrico no tempo.
Isso significa que a flecha do tempo do passado para o futuro surge apenas quando você se afasta um passo do mundo microscópico em direção ao macroscópico. Isso foi observado pela primeira vez pelo físico e filósofo austríaco Ludwig Boltzmann (1844-1906).
“A direção do tempo é consequência do fato de que olhamos para as coisas grandes e não para os detalhes”, afirma Rovelli. “Desse passo, da visão microscópica fundamental do mundo para a descrição aproximada e grosseira do mundo macroscópico, é que vem a direção do tempo.”
“Não é que o mundo seja fundamentalmente orientado no espaço e no tempo”, explica Rovelli.
A questão é que, quando olhamos à nossa volta, vemos uma direção na qual os objetos do dia a dia, com tamanho médio, têm mais entropia – como a maçã madura que cai da árvore ou as cartas de um baralho.
A entropia, de fato, parece estar indissociavelmente ligada à direção do tempo, mas parece um tanto surpreendente — talvez até desconcertante — que a única lei da física que possui forte direcionalidade do tempo perca essa característica quando você observa as coisas muito pequenas.
“O que é a entropia?”, questiona Rovelli. “Entropia é simplesmente o quanto nós nos esquecemos da microfísica, o quanto nos esquecemos das moléculas.”
A entropia e o aumento da desordem
Quando você compra um baralho, as cartas costumam estar em ordem. Cada naipe é reunido e as cartas seguem a ordem do ás até o rei (ou o contrário). Mas, quando você o embaralha bem pela primeira vez, o que você tem? Provavelmente, um baralho completamente fora de ordem.
Agora, embaralhe uma segunda vez. O que podemos esperar agora? Aposto que não será “o baralho em perfeita ordem que comprei originalmente”. A melhor resposta pode ser “um baralho completamente fora de ordem, apenas uma confusão diferente da que eu tinha antes”.
Uma forma de pensar na entropia é considerá-la uma medida da desordem. O baralho novo tem baixa entropia. Quando você o embaralha, você aumenta a entropia do sistema, ou sua aparente aleatoriedade.
Da mesma forma, quando um objeto se aquece, sua entropia aumenta. Em um bloco de gelo, as moléculas de água são intimamente reunidas e ordenadas. À medida que o gelo se aquece e derrete, tornando-se água no estado líquido, as moléculas se movimentam umas contra as outras com mais liberdade — elas estão em maior desordem. E, no vapor, as moléculas de água estão ainda mais desordenadas.
O início e o fim
Se existe uma flecha do tempo, de onde ela veio, para começar?
“A resposta está ligada ao início do universo”, segundo Carroll. “Porque o Big Bang tinha baixa entropia. E, até hoje, 14 bilhões de anos depois, estamos enfrentando as consequências daquele tsunami que começou perto do Big Bang. É por isso, que, para nós, o tempo tem uma direção.”
Na verdade, a entropia extraordinariamente baixa do universo durante o Big Bang é, ao mesmo tempo, uma resposta e uma enorme pergunta.
“A questão que menos entendemos sobre a natureza do tempo é por que o Big Bang tinha baixa entropia e por que o universo, no seu começo, era daquela forma”, explica Carroll.
“E acho, sinceramente, como cosmólogo profissional, que meus colegas cosmólogos desistiram de responder a essa questão. Eles realmente não levam esse problema a sério.”
Carroll publicou um estudo em 2004, em conjunto com sua colega Jennifer Chen, tentando explicar por que o universo tinha entropia tão baixa perto do Big Bang, em vez de simplesmente aceitar que esta fosse simplesmente a realidade.
“Existem muitas falhas na teoria, muitos aspectos que não foram totalmente respondidos. Mas também acho que ela é, de longe, a melhor teoria do mercado”, afirma Carroll. “Ela não engana ninguém.”
Já outros cosmólogos concordam que, de fato, está na hora de pensar seriamente na baixa entropia das origens do universo.
“A probabilidade de que o nosso universo atual tivesse condições iniciais desta natureza, e não de qualquer outra forma, é de cerca de uma em 10 à 10ª à 124ª potência [1:10^10^124]”, segundo Marina Cortês.
Outra forma de indicar esse número é dizer que o evento tinha probabilidade de ocorrer de 0,00…01 – omitindo 10^(10^124) zeros, um número tão grande que é difícil de expressar na matemática convencional.
“Acho que posso dizer com certeza que este é o maior número da física moderna, fora da filosofia ou da matemática”, afirma ela.
Por isso, considerar simplesmente essas improváveis origens com baixa entropia como uma certeza é um caso típico de “varrer o problema para baixo do tapete”, segundo Cortês.
“Se os físicos continuarem fazendo isso, em breve haverá uma pilha enorme embaixo do tapete. Nós, cosmólogos, precisamos explicar por que o tempo só se move para frente.”
Embora ainda não saibamos o porquê, a baixa entropia do universo no passado é uma origem plausível da flecha do tempo. Como a maioria das coisas que têm um começo, a flecha também terá seu fim. E a primeira pessoa a identificar esta questão, novamente, foi o físico austríaco Ludwig Boltzmann.
“Boltzmann pensou, ‘ah, a entropia está crescendo no universo e talvez, em algum momento, ela chegue ao nível máximo'”, explica Rovelli. Nesse momento, o calor estaria distribuído de forma homogênea em todo o universo, sem fluir mais de um lugar para outro.
Não haveria energia útil disponível para fazer trabalhos. Em outras palavras, quase nada de interessante estaria acontecendo em todo o universo.
Como descreve a astrofísica Katie Mack, “à medida que este processo continua, tudo se degrada tanto que sobra apenas o calor residual de tudo o que já existiu no universo”. Este destino é conhecido como a morte térmica do universo, ou a morte pelo calor.
“As estrelas irão parar de queimar e nada mais irá acontecer. Não haverá nada, exceto pequenas flutuações térmicas”, afirma Rovelli.
“Suponha que isso aconteça — e não sabemos ao certo se irá acontecer, mas suponha que sim”, prossegue ele. “Devemos dizer que ali não existe a flecha do tempo? É claro que não existe flecha do tempo, já que todos os fenômenos que aconteceram em uma direção também poderiam ocorrer para um sentido ou para o outro. Nada irá diferenciar as duas direções do tempo.”
Isso talvez seja o mais estranho sobre a flecha do tempo: “Ela dura apenas por pouco tempo”, afirma Carroll.
Qual será o fim do universo?
A morte pelo calor não é a única forma em que o universo como o conhecemos poderá encontrar o seu fim. Diversas outras possibilidades já foram propostas, incluindo o ponto de virada e outros modelos cíclicos.
Mas a morte térmica é, de longe, a principal candidata, segundo o cosmólogo Sean Carroll. “Ela não é definitiva, de nenhuma forma, mas é a extrapolação mais simples que conhecemos, já que não precisamos nos esforçar muito para chegar até ela”, explica ele.
Tudo o que o universo precisa fazer para chegar à morte térmica é continuar exatamente o que está fazendo, indefinidamente. “Não há razão para que ele pare algum dia”, segundo Carroll.
É muito difícil imaginar o que poderá acontecer se, algum dia, a flecha do tempo desaparecer.
“Nós produzimos calor nos nossos neurônios quando pensamos”, afirma Rovelli. “Pensar é um processo no qual o neurônio precisa de entropia para trabalhar. A nossa sensação da passagem de tempo é apenas o que a entropia faz com o nosso cérebro.”
A flecha do tempo decorrente da entropia nos leva para muito mais perto de compreender por que o tempo só anda para frente.
Mas pode haver outras flechas do tempo além desta. Na verdade, provavelmente existe uma enorme quantidade de flechas do tempo levando do passado para o futuro. E, para compreendê-las, precisamos sair da física para entrar na filosofia.
O tempo humano
As formas como compreendemos e experimentamos intuitivamente o tempo precisam ser levadas a sério, segundo a professora de filosofia Jenann Ismael, da Universidade Columbia, em Nova York, nos Estados Unidos.
Se você analisar sua própria experiência com o tempo, poderá conseguir reconhecer rapidamente diversas flechas psicológicas que fazem parte central da experiência humana. Uma dessas flechas é o que Ismael chama de “fluxo”.
Como uma direção clara do tempo surge dessas descrições do universo, se todas elas omitem sua própria flecha do tempo? Como diz a astrofísica Marina Cortês, da Universidade de Lisboa, em Portugal, “existem muitas implicações que começam com levar a sério a questão ‘por que o tempo passa?'”.
“Se você olhar para o mundo, você não verá uma representação puramente estática do estado instantâneo do mundo”, afirma ela, como em um filme composto de diversos quadros estáticos por segundo. “Nós vemos diretamente que o mundo está mudando.”
Esta experiência do fluxo do tempo está enraizada na nossa percepção. “A visão não é uma câmera cinematográfica”, afirma Ismael.
“Na verdade, o que acontece é que o seu cérebro está coletando informações sobre um certo período de tempo. Ele integra essas informações, de forma que, em um dado momento, o que você vê é uma computação feita pelo cérebro.”
“Por isso, você não vê apenas que as coisas estão se movendo, mas sim a velocidade desse movimento, a direção desse movimento. Todo o tempo, o seu cérebro está integrando informações ao longo de intervalos de tempo e fornecendo a você o resultado. Por isso, de certa forma, você vê o tempo”, explica ela.
Existe uma segunda característica do tempo que Ismael diferencia do fluxo e chama de “passagem”. A ideia da passagem está intimamente ligada a experiências orientadas pelo tempo, como a memória e a antecipação.
Podemos tomar o exemplo do casamento, ou de qualquer outro evento da vida que se aguarda com muita antecipação. Nossa experiência desses momentos tem muitas camadas, que vão desde as etapas turbulentas de planejamento até a intensidade do dia propriamente dito e as lembranças que permanecem conosco por anos.
Existe uma direcionalidade para essas diferentes experiências. A forma em que antecipamos um evento no futuro é fundamentalmente diferente de como nos lembramos dele depois que ele passa.
“Tudo isso é parte do que eu considero a experiência de passagem, uma ideia de que experimentamos todos os eventos como antecipados do passado, experimentados no presente e relembrados em retrospectiva”, segundo Ismael. “Sua densidade é meio que proustiana.”
Estes aspectos da direcionalidade do tempo psicológico — além de muitos outros, como a sensação de abertura que temos sobre o futuro, mas não sobre o passado — podem ter suas raízes traçadas até a flecha do tempo que surgiu com a Revolução Industrial.
“Acho que tudo se resume à entropia”, afirma Ismael. “Não vejo motivo para pensar agora que as setas do tempo envolvidas na psicologia humana não estejam, em última instância, enraizadas na flecha entrópica.”
“Mas é uma questão empírica. Não vejo razão para que este projeto de compreender a experiência humana com relação à linha entrópica possa falhar”, segundo a professora.
Sean Carroll espera realizar esse projeto, tomando diversas características da nossa experiência com o tempo e relacionando-as à entropia. Seu primeiro alvo é a causalidade, outro elemento da flecha do tempo, segundo a qual as causas acontecem antes dos seus efeitos.
Este projeto, para dizer o mínimo, é um empreendimento importante para todos os físicos e filósofos envolvidos. Ainda assim, por trás desses esforços, permanece aquela incômoda questão: por que a entropia era tão baixa no início do universo?
“Acho que entendemos por que temos essa sensação de fluxo”, afirma Carlo Rovelli. “Nós compreendemos por que o passado parece fixo para nós, enquanto o futuro segue em aberto. Nós entendemos por que existem fenômenos irreversíveis e podemos reduzir tudo isso à segunda lei da termodinâmica, ao aumento da entropia.
“Está muito relacionado ao fato de que, se rastrearmos para trás, para trás, para trás, o universo começou muito pequeno, em uma situação muito específica. E, de alguma forma, ele está caindo daquela situação específica”, segundo Rovelli.
“Mas é claro que há uma questão em aberto: por quê? Por que tudo começou daquela forma específica?”
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