- Edison Veiga
- De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
Padres mais antigos, que viveram o catolicismo pré e pós-Concílio Vaticano 2º, costumavam dizer que antes as pessoas assistiam à missa. Depois, passaram a participar dela. É uma verdade que ilustra, do ponto de vista do católico participante, a dimensão do que foi esse encontro da cúpula da Igreja Católica ocorrido de 11 de outubro de 1962 a 8 de dezembro de 1965.
Até então, as missas eram celebradas em latim, com o padre de costas para os fiéis. Só a partir dali é que os rituais passaram a ser na língua local, com o padre virado para o povo, como se todos estivessem ao redor de uma mesma mesa — no caso, o altar.
Mas esta foi apenas uma das mudanças proporcionadas pelo encontro, que buscou alterar significativamente a mentalidade da instituição religiosa milenar.
“Ao promover um diálogo intra e extra-muros, o concílio significou a passagem da Igreja Católica, então medieval, para a modernidade”, define o teólogo, historiador e filósofo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Para o filósofo e teólogo Fernando Altemeyer Junior, professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o encontro foi importante “porque abriu a Igreja para dialogar com o mundo e sair das masmorras onde havia se encerrado”.
“O Vaticano 2º foi orientado pela palavra ‘atualização’. Atualização diante dos desafios do mundo, com as mudanças, com o avanço da ciência e da tecnologia, com a mudança das questões morais e com as questões sociais exigindo respostas, no clima da guerra fria”, destaca o vaticanista Filipe Domingues, vice-diretor do Lay Centre em Roma. Ele ressalta que fazia “muito tempo” que a Igreja não fazia uma reforma profunda e o concílio foi a oportunidade de revisar paradigmas.
Não foi algo simples, nem de uma hora para outra, é claro. Na história da igreja, são chamados de concílios os encontros convocados pelo papa para deliberar sobre o futuro da organização, a partir de paradigmas de fé, costumes e doutrinas. Reúnem a cúpula hierárquica da Igreja e atravessam intensos debates.
Fiéis
O Vaticano 2º foi realizado por meio de quatro sessões — de outubro de 1962 a dezembro de 1965. No total, participaram 3.060 membros com voz e voto, entre eles dois papas — João 23 (1881-1963), que convocou o sínodo, e seu sucessor, Paulo 6º (1897-1978) —, 129 superiores gerais, 12 patriarcas, dois vigários patriarcais, 122 cardeais, 398 arcebispos, 1.980 bispos, 91 prelados, entre outros cargos eclesiásticos.
Dentre todos os participantes do encontro, há apenas seis vivos, nenhum brasileiro. “O Brasil enviou ao encontro 221 bispos e prelados, além de nove peritos e um leigo”, pontua Altemeyer Junior.
No total, o concílio resultou na publicação de quatro constituições, nove decretos e três declarações.
De forma geral, é possível delimitar em quatro eixos o impacto do evento.
“A nova liturgia em línguas vernáculas, a retomada da palavra de Deus como central na fé católica, a ação em favor da transformação do mundo, e a nova consciência da Igreja como instrumento de diálogo com as realidades do mundo e as outras religiões”, descreve Altemeyer.
Em outras palavras, o catolicismo pós-concílio se tornou mais próximos dos fiéis, mais profundo biblicamente, mais perto dos pobres e mais aberto às outras manifestações religiosas.
“É como se a Igreja Católica estivesse se reconciliando com a modernidade”, comenta Moraes. “Após o Vaticano 2º, podemos falar em renovação, em reflorescimento do catolicismo.”
“Demorou para isso acontecer? Demorou. Mas é preciso lembrar que a Igreja Católica é um transatlântico: virar esse negócio é muito difícil, manobrar é muito difícil”, acrescenta o teólogo.
Opção pelos pobres
Ao longo de três anos, os padres conciliares reafirmaram que a Igreja precisava estar junto aos pobres. “A Igreja reafirmou a opção preferencial pelos mais pobres, e isso teve um eco enorme, por exemplo, na teologia da América Latina, a teologia da libertação”, comenta Moraes.
Isso se tornou mais simbólico ainda no chamado Pacto das Catacumbas — oficialmente Pacto da Igreja Servidora e Pobre —, um documento produzido e assinado por 42 participantes do concílio.
O pacto recebeu esse nome porque foi assinado em um encontro realizado nas catacumbas de Santa Domitila, em Roma. Depois, mais de 500 religiosos também se tornaram signatários do documento.
Entre os pontos do texto, há o compromisso em dar “tudo o que for necessário ao serviço apostólico e pastoral das pessoas e dos grupos laboriosos e economicamente fracos e subdesenvolvidos”, a recusa a privilégios e títulos e o ensejo de colocar “tudo em obra para que os responsáveis pelo nosso governo e pelos nossos serviços públicos decidam e ponham em prática as leis.”
“A Igreja Católica, ao entrar de fato na modernidade, ela faz uma opção pelos pobres combatendo as estruturas geradoras de injustiça social”, analisa Moraes.
Com 13 pontos, o texto foi apresentado no dia 16 de novembro de 1965 e contou com a participação de cinco brasileiros: o então arcebispo de Vitória, João Mota e Albuquerque (1909-1984); o bispo de Afogados de Ingazeira, Francisco de Mesquita Filho (1924-2006); o bispo auxiliar do Rio de Janeiro, José Castro Pinto (1914-2007); o bispo de Botucatu, Henrique Golland Trindade (1897-1974); e o então bispo de Crateús, Antônio Fragoso (1920-2006).
O acordo teve como um dos mentores principais o arcebispo Helder Câmara (1909-1999), um dos fundadores da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e já conhecido como defensor dos direitos humanos. De acordo com pesquisa de Altemeyer, Câmara não esteve presencialmente no evento porque no mesmo dia precisou participar de uma reunião, junto à cúpula do Vaticano, relacionada ao concílio.
Comunidade e ecumenismo
Outro ponto relevante do concílio foi a melhora da comunicação com os próprios fiéis. Não só pelo fato de que as missas deixaram de ser em latim e com o padre de costas, mas também porque a liturgia passou a prever uma participação mais ativa da comunidade.
“E os leigos passaram a ser valorizados, com uma participação maior dentro das estruturas da igreja. O Vaticano passa a olhar para os leigos de uma forma diferente”, diz Moraes.
Eram questões, contextualiza ele, que estavam represadas há mais de um século, com um anseio cada vez maior de participação. “Havia um anseio de uma série de movimentos dentro da Igreja, que já vinham acontecendo e deságuam no Vaticano 2º”, pontua o teólogo.
Segundo o especialista, esse movimento leigo acabou trazendo sua peculiaridade para a própria aproximação da Igreja com a comunidade. “Porque a Igreja é feita de pessoas, e esse movimento refletiu as transformações e exigências socioculturais do período, mostrando que a força do laicato é fundamental para a vida da igreja”, afirma. “E isso veio com muita força ao Brasil, com presença em todos os segmentos da sociedade.”
“O concílio entendeu que hierarquia eclesiástica existe, mas precisa ser equilibrada com a participação popular. A devoção popular precisa ser valorizada, mas ao mesmo tempo orientada. Tudo isso foram coisas amadurecidas, que já vinham de antes do concílio, já vinham sendo faladas e até praticadas em alguns grupos”, argumenta o vaticanista Domingues.
Moraes recorda ainda que o concílio demarca um esforço de diálogo ecumênico, principalmente com outras religiões cristãs, mas sem deixar de lado também outros credos.
“Era algo que alguns grupos já praticavam, mas não era uma política da Igreja”, analisa Domingues. “Tornou-se um ensinamento. Não se pode ser católico sem ser a favor do ecumenismo, da unidade dos cristãos. Um católico que é contra outros cristãos não é essencialmente católico.”
O vaticanista explica que é um princípio do concílio que os membros da Igreja Católica rezem e busquem amizade com os de outras denominações. E isso é visível na postura dos papas, que não raras vezes se encontram com líderes de outras religiões.
E isso vale, de certa maneira, também para as igrejas não cristãs. “Embora a Igreja Católica continue acreditando que não há salvação sem Cristo, ela se abre para a ideia de que o espírito de Deus pode se manifestar de alguma forma por meio de outras religiões e até mesmo de pessoas que não acreditam. Em outras palavras, não quer dizer que aquelas pessoas não batizadas ou que não creem em Deus são blindadas pela ação do Espírito Santo”, contextualiza o vaticanista. “Isso muda completamente a presença da Igreja no mundo.”
Por fim, a Igreja também fez o que é chamado de “movimento patrístico”, ou seja, um mergulho em suas próprias bases teológicas. “Foi uma redescoberta dos santos padres, as fontes referenciais da tradição católica. Isso foi fundamental”, acredita Moraes. Na mesma toada, a bíblia recupera o centro, com aprofundamentos de estudos. “Nesse sentido, há avanços, inclusive porque a ciência bíblica católica fez uma exegese profunda do texto, um trabalho muito sério, contando com a colaboração da linguística, da arqueologia…”, exemplifica o professor.
Para Moraes, foi inaugurada uma “nova teologia” levando em consideração “os pais da igreja e os avanços exegéticos nessa ‘volta à bíblia'”.
Francisco
No atual pontificado, papa Francisco dá sinais de que intensificar cada vez mais o que ficou decidido no Vaticano 2º, inclusive demonstrando não tolerara aqueles que negam tais avanços. “Todos os papas foram 100% a favor do concílio, nenhum deles foi resistência. Mas cada qual abordou a seu modo”, analisa Domingues. “Francisco está sendo mais duro com aqueles que não reconhecem o concílio.”
Recentemente, por exemplo, ele restringiu a chamada missa tridentina, ou seja, as celebrações em latim. Ele entende que os que assim o fazem pretendem reforçar divergências. “Para Francisco, ele já falou, para ser católico é preciso reconhecer o concílio. Isso não é opcional”, explica Domingues.
“Não tem como ser membro da Igreja sem aceitar os ensinamentos dela de forma integral”, diz o vaticanista. “E as decisões tomadas em concílio têm poder máximo do ponto de vista moral da Igreja.”
O rito litúrgico romano, embora não seja o único do catolicismo, é o principal da Igreja ocidental. “A Igreja tem sido mais ou menos flexível com aqueles que seguem o tridentino, mas Francisco tem buscado inibir isso, limitando a alguns grupos, para que isso não cresça. Porque o concílio foi muito claro sobre como deve ser celebrada a missa. E difundir a missa tridentina é, de certa maneira, não aceitar o magistério do concílio”, acrescenta Domingues.
Essa posição de Francisco é ainda mais interessante porque, se analisarmos à luz da história, ele é o primeiro papa pós-concílio que não participou do encontro. O então bispo Albino Luciani, depois papa João Paulo 1º (1912-1978), atuou como padre conciliar. João Paulo II (1920-2005), então bispo Karol Wojtyla, também. Papa Bento 16, na época padre Joseph Ratzinger atuou nos bastidores, como consultor.
“Francisco é o primeiro que não participou diretamente, mas segue colocando em prática muita coisa”, conclui Domingues. Um exemplo está nos documentos. O método consagrado pelo Vaticano 2º, o “ver-julgar-agir” está visivelmente presente nas publicações do atual pontificado, sobretudo nas encíclicas.
“Antes, primeiro havia já as respostas, depois a ideia de mudar a realidade para fazer com que ela se encaixasse nas respostas”, comenta Domingues. “Agora não é mais assim: a Igreja olha para a realidade, procura entendê-la e bater com as verdades da fé, então vê o que faz com que isso.”
Segundo Domingues, o Concílio Vaticano 2º deixou aberta a porta para a Igreja “assumir uma voz profética sobre questões sociais e humanas mais latentes”.
E é por isso que atualmente Francisco pode se posicionar sobre os mais diversos temas, com inegável autoridade política e moral. “Desde então, o mundo para ouvir o papa sobre questões gerais, não só sobre questões de fé. Francisco toca muito em assuntos assim, em temas cruciais para a humanidade, questões sociais, familiares, temas importantes para a vida em sociedade.”
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