- André Biernath – @andre_biernath
- Da BBC News Brasil em Londres
Para muitos brasileiros, a escolha dos próximos governantes trouxe um efeito colateral importante: o rompimento de laços com familiares e amigos que têm uma visão política oposta.
Mas será que existem maneiras de resgatar essas relações?
Terapeutas ouvidos pela BBC News Brasil destacam que, sim, as eleições até podem ser um elemento de ruptura, mas é possível restaurar a proximidade com boas doses de paciência, boa vontade e diálogo.
Para o psicanalista Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), o primeiro passo está em deixar de lado aquela ideia de que as famílias são perfeitas.
“Muita gente enxerga a família como um lugar de santificação. Precisamos encará-la de uma forma mais humana, onde as pessoas cometem erros e são capazes de se desculpar e voltar atrás”, diz.
O especialista entende que o seio familiar nunca foi um lugar de serenidade e concordância, mas, sim, de conflitos.
“Por que será que todo mundo fica receoso antes da festa de Natal? Nós sabemos que ali, quando todos os parentes estiverem reunidos, surgirão conversas desagradáveis, ressentimentos antigos, histórias não resolvidas…”, lista.
“Nas fotos, até parece que todos se dão bem, mas sabemos no fundo que se trata de um barril de pólvora recheado de ciúmes, invejas, traições, dificuldades conjugais e disputas geracionais”, complementa.
Dunker também destaca que dois acontecimentos recentes no Brasil influenciaram a forma como lidamos com pessoas próximas: a votação presidencial de 2018 e a pandemia de covid-19.
“Há quatro anos, as eleições nos pegaram de surpresa e não estávamos preparados para lidar com tantas posições extremadas. Com isso, muitas brigas e rupturas aconteceram”, analisa.
“Dois anos depois, tivemos a pandemia, em que a necessidade de ficar em isolamento em casa reforçou a importância dos laços sociais e da interação com o outro.”
Na visão do psicanalista, esses dois eventos antagônicos fizeram com que as pessoas criassem maneiras de manter certas relações e ignorar comportamentos ou posições políticas contrárias.
“A gente vê mais claramente agora o papel das ‘tias do deixa disso’, que são aquelas figuras que intervém nos debates antes que eles se transformem em brigas”, observa o professor da USP.
Mas será que esse pacto de silêncio é suficiente para evitar males maiores?
Relações exigem empenho
Para a psicóloga Paula Regina Peron, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), jogar a sujeira para debaixo do tapete até evita conflitos no momento, mas pode postergar ou até ampliar problemas futuros.
“O que fica sem conversar na hora se torna difícil de falar depois”, acredita.
“Se você deixa passar todos os incômodos que aparecem, isso só aumenta as dificuldades na relação entre as pessoas”, conta.
A recomendação dela, portanto, é sempre buscar o diálogo, às vezes até com a ajuda de um mediador neutro, ou alguém que conte com o respeito de todas as partes envolvidas no conflito.
“Sempre vai ter aquele parente mais bem humorado, que consegue acalmar os ânimos ou julgar a situação de forma imparcial, apontando os erros de um e de outro”, observa Peron.
A professora da PUC-SP lembra que qualquer relação entre dois indivíduos depende de um investimento mútuo.
“As pessoas precisam se empenhar para estabelecer e fortalecer os laços. Sem o interesse das partes envolvidas, isso não se mantém.”
Nessas horas, outro exercício relevante é pensar em duas questões-chave. Em primeiro lugar, quais são aqueles que você realmente gosta e quer ter por perto? Segundo, quais são as visões de mundo e posicionamentos políticos inegociáveis para conviver com alguém?
“Nem sempre a família consanguínea é a mais saudável para um sujeito. Ele pode encontrar o apoio e a intimidade em outros grupos”, lembra Peron.
“E há situações em que as diferenças são tão disruptivas que o melhor a ser feito é nem reconstruir certos laços”, acrescenta.
A psicóloga chama a atenção para o fato de as famílias representarem, num plano limitado, as relações sociais de poder típicas do próprio país.
“A família não costuma ser uma ilha isolada do resto da cultura do lugar onde a gente vive”, explica.
“Por isso vemos que muitos desses grupos reproduzem o racismo, o machismo e outras intolerâncias.”
Dunker concorda. “A família pode ser o espaço em que os racismos se reforçam ou são tratados e resolvidos.”
Viva as diferenças
Nos casos em que as discordâncias não são tão dramáticas assim e é possível pensar em curar as feridas abertas, uma saída envolve entender que é normal as pessoas pensarem de forma diferente.
“Esse é um bom momento para a família refletir sobre as diferenças e, se os conflitos não forem fundamentais, abrir espaço para negociações”, sugere Peron.
“O grupo inteiro pode crescer com essa experiência, ao entender que não há necessidade de um pensamento homogêneo em tudo”, acredita.
Dunker também aponta que pode ser uma boa separar a política pública da vida privada.
“Muitas vezes, usamos os candidatos como uma maneira de extravasar frustrações e conflitos que vêm desde a infância”, destaca.
“Uma maneira de evitar as brigas agora é reforçar os sentimentos de urbanidade, da educação e do bom trato entre as pessoas, mesmo com aquelas que você discorda”, diz.
Dentro desse contexto, dar tempo ao tempo é outra medida sensata.
“Não adianta ficar forçando uma relação que foi desgastada e nem tudo precisa ser dito no calor da hora”, afirma o professor da USP.
“Pode ser necessário esperar mais um tempinho até que a temperatura esfrie e você consiga estabelecer um diálogo novamente.”
Ainda dentro dessa questão, a forma como vencedores e perdedores vão se comportar durante as próximas semanas pode ser absolutamente decisiva.
“Aprender a ganhar e a perder é uma tarefa básica da educação que nossa sociedade parece ter esquecido”, pontua Dunker.
“Na história brasileira, o lado vitorioso costuma usar o sarcasmo e a humilhação como ferramentas diante do derrotado.”
E isso, por sua vez, gera uma reação de vingança, raiva e rancor entre quem perdeu.
Dunker também lembra que, não raro, o derrotado não aceita os resultados ou não consegue admitir os erros que foram cometidos durante o processo — e isso cria instabilidades e tensões permanentes, que prejudicam os relacionamentos e até o desenvolvimento do país.
“Pode até parecer um clichê, mas só ganha no futuro quem aprende a perder no presente.”
Por fim, Peron lembra que cada família tem uma dinâmica própria e, por mais que as recomendações e dicas ajudem, é preciso analisar caso a caso.
“As eleições podem até fazer com que os familiares evidenciem diferenças e rompam relações”, admite.
“Mas precisamos lembrar que dependemos uns dos outros e tudo fica mais difícil quando estamos completamente sozinhos”, conclui.
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