• André Biernath – @andre_biernath
  • Da BBC News Brasil em Londres

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Números da vacinação em cidades brasileiras menores esbarra na burocraria e na falta de estrutura

Não há dúvidas entre os profissionais de saúde e pesquisadores que as taxas de vacinação vêm caindo de forma consistente no Brasil durante os últimos anos. Na avaliação deles, porém, há um problema pouco discutido nesse setor que complica ainda mais as coisas: a falta de dados confiáveis e atualizados sobre quantos brasileiros realmente tomaram as doses dos imunizantes disponíveis na rede pública de cada município.

Na base de dados do Sistema Único de Saúde, o DataSUS, é possível encontrar mais de uma dezena de cidades cuja cobertura vacinal nem chega aos 10% — em mais de 900 delas, o indíce não alcança os 50%.

Os gestores de saúde desses locais, porém, argumentam que as estatísticas oficiais não correspondem à realidade e que essa taxa, na prática, é bem maior.

O problema, dizem eles, está no excesso de burocracia, na falta de equipes e nas falhas de conexão com a internet ou acesso aos sistemas de informática mais modernos e conectados.

“É pouco provável que um município brasileiro tenha apenas 3 ou 5% de cobertura vacinal. O registro de dados simplesmente não funciona nesse país”, atesta a médica Isabella Ballalai, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).

Os especialistas apontam que esse descompasso entre os números oficiais e a realidade prejudica a tomada de decisões e a criação de políticas públicas mais certeiras na área de saúde — o que aumenta a ameaça de surtos de doenças erradicadas, controladas ou com poucos casos, como poliomielite, sarampo e febre amarela.

“Sem esses dados consolidados, não conhecemos a realidade do país e não é possível fazer o planejamento ou elaborar o orçamento”, pontua Wilames Freire, presidente do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems).

Ou seja: se os dados sobre a cobertura vacinal das cidades não batem, fica mais difícil para os governos municipais, estaduais e federal reforçarem as campanhas de comunicação, enviarem mais doses para um lugar específico, conversarem com os profissionais daquele local…

“Sem informações fidedignas, não temos condições de tomar decisões em tempo hábil”, ele chama a atenção.

E um apagão de dados, por sua vez, abre a possibilidade de doenças que estão erradicadas, como a poliomielite, ou relativamente controladas, como o sarampo, voltem a representar uma ameaça.

O processo

O presidente do Conasems explica os detalhes do processo de vacinação no país.

“A pessoa chega no posto, é acolhida e conferimos se ela possui o Cartão Nacional de Saúde. Se tem, segue em frente. Se não, esse documento precisa ser produzido ali na hora.”

“Após a vacinação, os dados daquele indivíduo e das vacinas que ele tomou devem ser inseridos no sistema”, continua Freire.

E é justamente aí que começa o problema. “Às vezes, pelo acúmulo de trabalho, a equipe deixa para atualizar todos os dados só no final do dia”, relata.

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Equipes dos postos de saúde são responsáveis por preencher e digitalizar as fichas de indivíduos vacinados

Segundo o presidente do Conasems, muitos postos de saúde também têm dificuldades nessa etapa por falta de internet ou conexão lenta.

“Daí todas aquelas fichas de papel são encaminhadas para a sede da secretaria de saúde, e um técnico fica responsável por inserir os dados, paciente por paciente, no sistema”, diz.

“E isso quando ele consegue fazer esse trabalho. Não raro, o sistema trava, não abre no tempo adequado, não se comunica com outras bases…”, lista.

Willames diz que, “como a prioridade das equipes é vacinar”, muitas vezes essa tarefa burocrática de compilar os dados fica em segundo plano e não é feita a tempo.

“Nas primeiras fases da vacinação contra a covid-19, vi alguns municípios com mais de 100 mil fichas paradas que precisavam ser digitalizadas”, lembra.

A realidade

A BBC News Brasil fez uma consulta ao sistema do DataSUS, disponível online, para conferir a cobertura vacinal dos mais de 5.500 municípios do país em 2021.

Foram considerados todos os imunizantes disponíveis na rede pública, que protegem contra doenças como poliomielite, sarampo, caxumba, rubéola e pneumonia, por exemplo.

No dia 7 de setembro de 2022, os dez municípios que apareciam com as piores taxas de imunização no ano passado eram:

  • Trajano de Moraes (RJ) – 3,1% de cobertura vacinal
  • Jucuruçu (BA) – 5,2%
  • Murici dos Portelas (PI) – 5,6%
  • Belford Roxo (RJ) – 6,3%
  • Santiago (RS) – 6,9%
  • Taquara (RS) – 7,2%
  • Bom Jardim (RJ) – 7,3%
  • Crisólita (MG) – 7,6%
  • Curuá (PA) – 8,5%

A BBC News Brasil entrou em contato com os gabinetes de prefeitos, as secretarias de saúde ou as assessorias de comunicação dos dez municípios listados acima para checar essas porcentagens e saber se, na visão dessas autoridades públicas, elas representam a realidade.

Desses, quatro prefeituras enviaram respostas até a publicação desta reportagem.

A enfermeira Sofia Marinho, que é coordenadora de imunização em Trajano de Moraes desde maio deste ano, informou que “o município não inseria as doses aplicadas no sistema, o que influenciou nesses dados baixos das coberturas vacinais”.

Ela também apontou que há uma diferença entre os sistemas de informática de acordo com cada local de vacinação — na sede da prefeitura, por exemplo, se usa um programa de computador, nos distritos mais afastados, outro.

“Estamos com alguns problemas na migração dos dados dos sistemas, o que também pode ser um dos motivos por trás desses números, embora a nossa realidade seja totalmente diferente”, completa.

A Secretaria de Saúde de Taquara informou que “houve um problema técnico no envio de dados de vacinação do município ao Ministério da Saúde e isso já está sendo corrigido”.

A enfermeira Carolline Azevedo Caetano, diretora de Vigilância em Saúde de Bom Jardim, admitiu que o município encontra-se com uma cobertura insatisfatória, “mas por causa dos sistemas de informação, e não da vacinação propriamente dita”.

“Tivemos alguns problemas com os recursos humanos responsáveis pela digitação dos dados, situação que já está sendo resolvida”, respondeu.

Por fim, a enfermeira Glaucimeire Moura, coordenadora de Atenção Primária na cidade de Murici dos Portelas, declarou que as porcentagens que aparecem no DataSUS “não condizem com a realidade”.

“Passamos um tempo com problemas no sistema e as vacinas não puderam ser registradas”, relatou.

Ela também disse que boa parte das informações de cobertura vacinal do município está registrada em livros de papel.

Moura entende que colocar as informações no sistema é relativamente fácil, mas há barreiras na implantação dessa tecnologia e falhas na internet, especialmente nas zonas rurais.

Questionado pela reportagem, o Ministério da Saúde informou que “não foram identificadas divergências nas informações dos dados sobre as coberturas vacinais referentes ao ano de 2021 e os registros nos sistemas do DataSUS”.

“De todo modo, a pasta orienta aos municípios que identificarem inconsistência nos dados que reportem [essas falhas] ao Programa Nacional de Imunizações (PNI).”

Crédito, Marcello Casal Jr/Agência Brasil

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Ministério da Saúde diz não ver inconsistências das taxas de cobertura vacinal reportadas até agora

A solução

Freire, do Conasems, avalia que o PNI “trouxe grandes benefícios à população brasileira”, mas apresenta “problemas históricos”.

“E eles estão principalmente nas bases de dados e na integração entre elas. O Ministério da Saúde possui mais de 300 sistemas de informação”, calcula.

Na avaliação dele, o descompasso entre os dados dos municípios e do Governo Federal “não é surpresa”.

“No momento, as prefeituras estão trabalhando com quatro campanhas de vacinação simultâneas: covid, sarampo, pólio e múltiplas doses”, conta.

“E as equipes das Unidades Básicas de Saúde são pequenas para lidar com tantas demandas.”

Ballalai concorda e vê a situação como “uma antiga pedra no sapato”.

“Esses sistemas já mudaram uma porção de vezes e, mesmo assim, ainda apresentam muitos erros e atrasos”, critica.

“Um processo burocrático desses pode ocupar profissionais que vacinavam as pessoas, mas ficam sentados na frente de um computador preenchendo fichas”, lamenta.

E todo esse cenário, por sua vez, prejudica as políticas de saúde pública, avaliam os entrevistados.

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Compilar os dados de vacinação em locais afastados — e com pouco acesso à internet — é um desafio, segundo especialistas

Uma das faces do problema maior

Ainda que reconheçam esse grande descompasso nos dados, os especialistas entendem que a cobertura vacinal vem caindo de forma consistente no país como um todo.

O número de brasileiros imunizados contra a poliomielite, por exemplo, desabou de 99% em 2010 para 69% no ano passado.

A aplicação da primeira dose da tríplice viral (que protege contra sarampo, caxumba e rubéola) saiu de 100% há dez anos para 73% em 2021.

Em outras palavras, a queda nacional no número de vacinados é real e preocupante — mas não dá pra saber com exatidão como isso está acontecendo nas cidades, especialmente nas de pequeno porte ou com menos estrutura.

“Sabemos que existe tecnologia disponível para acompanhar a cobertura não apenas de Estados e cidades, mas de cada sala de vacinação do país”, complementa Freire.

E, embora a inconsistência nos sistemas de informática ajude a entender parte dessa situação, ela é apenas uma das faces de um problema bem maior.

“Vemos um desabastecimento de doses dos imunizantes em alguns lugares, a falta de campanhas nacionais adequadas e o aumento de notícias falsas ou até de um movimento antivacina no país”, acrescenta Freire.

E, para elevar novamente as coberturas vacinais no país, é preciso lidar adequadamente com todas essas questões, concluem os especialistas.

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