• Mariana Schreiber – @marischreiber
  • Da BBC News Brasil em Brasília

Crédito, Reuters

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Principal rosto da Lava Jato, Sergio Moro foi considerado parcial contra Lula pelo STF

Contrariando o senso comum, que costuma associar os escândalos de corrupção revelados pela Lava Jato principalmente ao PT, um estudo da Universidade de São Paulo (USP) indica que as investigações e processos da operação atingiram de forma proporcional os grandes partidos do país.

A pesquisa analisou a filiação partidária de todas as pessoas processadas na primeira instância judicial e das que sofreram investigações no Supremo Tribunal Federal (STF). A conclusão foi que o partido mais atingido foi o MDB, maior sigla do país em quantidade de filiados, seguido do PT, segunda maior sigla (confira os números ao longo da reportagem).

Na sequência, aparecem PSDB e PP, respectivamente o terceiro e o quarto maiores partidos em número de filiados.

Ao identificar uma distribuição proporcional dos réus nos grandes partidos, os autores consideram que a Lava Jato revelou uma “estrutura de corrupção disseminada em compras públicas, especialmente em obras de engenharia pesada”. Avaliação que, segundo os pesquisadores, é reforçada pelo fato de a operação ter atingido executivos de praticamente todas as grandes construtoras.

Outra conclusão da pesquisa é que a variada filiação partidária dos réus indica não ter havido perseguição a uma outra agremiação política no âmbito geral da Lava Jato.

“A pesquisa procurou responder uma pergunta comum: a Lava Jato é um complô das elites contra a ascensão do PT e uma reforma estrutural (implementada pelo partido) ou não? E, aparentemente, não é, porque a gente identifica todos os partidos (entre os alvos da operação) e o PT só aparece em segundo lugar”, disse à BBC News Brasil uma das autoras do estudo, Maria Paula Bertran, professora da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP.

No entanto, ao analisar a distribuição dos processos, o levantamento identificou um concentração aumentada de casos contra petistas na jurisdição de Curitiba (números ao final da reportagem), vara judicial que foi comandada por Sergio Moro do início da Lava Jato, em 2014, até o final de 2018, quando o então juiz deixou a magistratura para se tornar ministro da Justiça e Segurança Pública no governo de Jair Bolsonaro (PL).

Ele ocupou o cargo de janeiro de 2019 a abril de 2020, quando pediu demissão acusando Bolsonaro de tentar interferir na Polícia Federal, o que o presidente nega. Hoje, Moro está filiado ao União Brasil e é candidato ao Senado pelo Paraná.

O réu petista mais famoso, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, hoje candidato novamente ao Palácio do Planalto, enfrentou quatro processos na vara de Curitiba, e chegou a ser condenado em dois deles. Em 2021, todos foram anulados pelo STF por dois motivos: a maioria dos ministros entendeu que os processos não deveriam ter tramitado na Justiça do Paraná e que Moro atuou com parcialidade contra o petista.

Crédito, Ricardo Stuckert/Divulgação

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Lula durante entrevista concedida à BBC News Brasil em 2019, quando estava preso na Superintendência da PF em Curitiba

O artigo com a pesquisa da USP lembra que, em 2019, uma série de reportagens do portal The Intercept Brasil conhecida como Vaza Jato revelou supostos diálogos privados da força-tarefa da operação, inclusive conversas entre o procurador Deltan Dallagnol e Sergio Moro, que indicavam uma espécie de conluio entre Ministério Público e o juiz nos processos contra Lula e outros acusados.

Dallagnol, que chefiou a força-tarefa em Curitiba, hoje é candidato a deputado federal pelo Podemos do Paraná.

Na avaliação dos pesquisadores, a concentração de casos contra o PT em Curitiba identificada pelo levantamento pode indicar uma possível parcialidade da Lava Jato naquela jurisdição em relação a outros petistas, além do ex-presidente.

Após as conclusões desse estudo, os autores pretendem continuar a pesquisa sobre a neutralidade ou a existência de algum viés na Lava Jato investigando outros aspectos, como a velocidade de tramitação dos processos e a determinação das penas.

“Será que ações contra filiados do PT, por exemplo, tramitaram mais rápido? Será que entre o oferecimento da denúncia e a existência de uma sentença de primeiro grau é possível identificar um viés para alguns partidos políticos? A gente ainda não tem dados para responder isso. É um próximo desafio”, disse Bertran à reportagem.

O que dizem os números?

O levantamento da USP identificou um total de 1.503 réus em processos da Lava Jato iniciados na primeira instância judicial, sendo 923 o número total de pessoas processadas, já que alguns dos investigados se tornaram réus em mais de um processo. Desse universo, os pesquisadores conseguiram confirmar que ao menos 169 (18%) tinham filiação partidária, ao analisar os registros do Tribunal Superior Eleitoral.

Esses processos transcorreram em varas de Curitiba, Rio de Janeiro e São Paulo — as três subseções judiciárias que concentraram os casos da operação que tramitaram originalmente na primeira instância da Justiça Federal.

A pessoa se torna ré quando o Ministério Público apresenta uma denúncia e o juiz decide que há elementos suficientes para iniciar um processo. Ao final desse processo, o magistrado avalia se há provas suficientes para condenar o acusado ou se ele deve ser absolvido.

Dos 1.503 réus da Lava Jato na primeira instância, a pesquisa identificou 311 com alguma filiação partidária — esse número leva em conta todos os casos em que uma mesma pessoa se tornou ré, como Lula e o ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral (MDB), que enfrentaram múltiplos processos na Lava Jato.

Ou seja, o levantamento apontou que integrantes de partidos políticos foram processados ao menos 311 vezes em varas de primeira instância a partir de denúncias da Lava Jato.

Desse total, filiados ao MDB aparecem como réus 117 vezes (37,6% dos casos com filiação), com destaque para o ex-governador do Rio de Janeiro Sergio Cabral, que enfrentou 23 processos.

O PT aparece como segundo partido mais atingido, já que petistas foram processados pela Lava Jato em primeira instância 54 vezes (17,3%), sendo alguns deles enfrentaram múltiplos processos, como Lula e o ex-tesoureiro do partido João Vaccari Neto.

A terceira sigla mais atingida foi o PSDB, com 31 réus (10%), seguida do PP, com 26 (8,4%).

Crédito, REUTERS/Rodolfo Buhrer

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Vazamento de mensagens atribuídas a Dallagnol levantou suspeitas sobre a legalidade da condução de investigações pelo Ministério Público Federal no Paraná

A quantidade de réus identificada na pesquisa segue o tamanho dos partidos no país. Considerando todas as pessoas filiadas no Brasil em 2018 (16,8 milhões), o MDB aparecia como a maior legenda, com 2,392 milhões de integrantes, o que representa 14,2% do total.

Já o PT tinha naquele ano 1,591 milhão de filiados (9,5%), sendo a segunda maior sigla, seguido de PSDB, com 1,459 milhão (8,7%), e PP, com 1,44 milhão (8,6%).

Os principais alvos no STF

A pesquisa também analisou a filiação das autoridades com foro privilegiado que foram alvo da Lava Jato no STF. Como apenas um dos inquéritos abertos no Supremo deu origem a uma ação penal, os autores do estudo optaram por analisar a filiação partidárias de todos que foram objeto de investigação, em vez de considerar apenas os réus, como fez nos casos que tramitaram em primeira instância.

Segundo esse levantamento, inquéritos abertos no STF atingiram 111 vezes pessoas com filiação partidária, sendo as quatro legendas mais atingidas o MDB (26), o PT (22), o PSDB (17) e o PP (9).

Esses números também contabilizam todas as vezes que uma mesma pessoa foi alvo de investigação.

Segundo o levantamento, apenas 25 inquéritos continuam em andamento no Supremo, outros 28 foram arquivados, enquanto o restante foi redistribuído para outras instâncias judiciais, conforme os investigados perderam direito a foro especial.

O estudo também não identificou um tratamento diferenciado no andamento dessas investigações, a depender do partido de filiação dos suspeitos.

“Os andamentos/remessas dos inquéritos mantêm razoável homogeneidade entre si, a despeito de o pequeno tamanho da amostra não autorizar maiores afirmações. Como regra, metade dos inquéritos foi remetida a outras jurisdições, um quarto se mantém no STF e um quarto foi arquivado pelo STF, ao menos nos três partidos com sujeitos mais recorrentes: MDB, PT e PSDB”, diz o artigo.

PT no foco de Curitiba

Dos 54 processos da Lava Jato contra petistas em primeira instância, 45 foram abertos na Justiça de Curitiba, mostra o levantamento da USP. Ou seja, a antiga vara de Moro concentrou 83% dos processos contra filiados ao PT. Outras quatro denúncias foram oferecidas e aceitas contra petistas no Rio de Janeiro, e cinco em São Paulo.

“Essa distribuição não se repete, proporcionalmente, para nenhum partido político, em nenhuma outra Subseção Judiciária. Os filiados ao MDB foram denunciados eminentemente no Rio de Janeiro, por exemplo. Ainda assim, o número de denúncias contra os filiados do MDB no Rio de Janeiro (80, de um total de 117), corresponde a apenas 57% do total”, ressalta o artigo.

Segundo o estudo, profissionais que atuaram na Operação Lava Jato entrevistados para a pesquisa argumentaram que teria havido uma “especialização informal” das varas de primeira instância, em que Curitiba teria priorizado os réus envolvidos “com a Petrobras”, mas não necessariamente os filiados ao PT.

Já São Paulo teria concentrado os casos contra tucanos (o Estado é governado pelo PSDB há mais de duas décadas), e o Rio de Janeiro teria focado em casos contra filiados ao MDB, partido que governou o Estado entre 2006 e 2018 com Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão.

Crédito, Fernando Frazão/Agência Brasil

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Ex-governador Sérgio Cabral foi condenado a penas que, somadas, ultrapassam 180 anos de prisão

Os números levantados na pesquisa, porém, não confirmam completamente esse argumento: a Justiça Federal em São Paulo abriu processou contra dezoito réus com filiação partidária, dos quais apenas cinco eram filiados ao PSDB (menos de um terço do total).

Já o predomínio dos processos contra filiados do MDB na Justiça do Rio de Janeiro, avaliam os pesquisadores, está relacionado a dois aspectos: o protagonismo do partido naquele Estado e o fato de os crimes investigados terem ocorrido em território fluminense.

“No Rio de Janeiro, a Operação Lava Jato ganhou contornos regionais, processando inúmeros casos de corrupção local (como a organização social Pró-Saúde, responsável pela administração de hospitais, ou a Átrio Rio, empresa de limpeza urbana e serviços de vigilância, por exemplo)”, nota o artigo.

O cenário, porém, é diferente da situação do PT em Curitiba, ressaltam os pesquisadores.

O artigo nota que o PT é apenas o quarto partido com mais filiados no Paraná, não tendo destaque especial no Estado. Além disso, ressaltam os autores, os supostos crimes investigados nos processos contra petistas não ocorreram no Estado do Paraná, contrariando a “lógica da competência territorial”, segundo a qual os réus são julgados no Estado em que os crimes teriam sido cometidos.

Por que casos foram julgados em Curitiba?

Inicialmente, os casos da Lava Jato estavam concentrados na vara do então juiz Sergio Moro. Isso ocorreu porque a operação, que teve sua primeira fase em março de 2014, começou a partir de desdobramentos de investigações contra organizações criminosas que atuavam no Paraná, envolvendo doleiros, como Alberto Youssef, e o ex-deputado federal do PP José Janene.

Com o avançar das investigações e as informações obtidas em acordos de delação dos primeiros investigados, a operação passou a apurar crimes em outras regiões do país, nem sempre relacionados à Petrobras. A Lava Jato, porém, argumentou que havia uma conexão entre esses crimes e que todos deveriam ser investigados pela operação e julgados por Moro.

Desde o início, as defesas de vários investigados contestaram essa decisão e pediram que os casos fossem redistribuídos para outras varas de outros Estados. Alguns casos foram direcionados para Rio de Janeiro e São Paulo. No entanto, o STF determinou que todos os casos que envolvessem a Petrobras deveriam ser mantidos com Moro.

Por isso, os processos contra Lula, por exemplo, foram mantidos em Curitiba, já que o ex-presidente era acusado de ter sido beneficiado com recursos desviados da Petrobras para empreiteiras por meio do recebimento de um tríplex na cidade do Guarujá (SP) e de obras em um sítio que ele frequentava na cidade de Atibaia (SP), o que o petista nega.

“O protagonismo dos filiados ao PT na Subseção Judiciária de Curitiba exige a construção de hipóteses mais complexas. A lógica da competência territorial exigiria que os crimes julgados em Curitiba tivessem sido consumados em Curitiba. O próprio Lula, porém, não tinha nenhuma ligação especial com a localidade. O argumento geral era o de atração de competência a partir do processamento de Alberto Youssef, réu acusado, entre outros crimes, de mascarar a origem dos recursos oriundos do pagamento de propina. Todavia, a regra geral no processo penal é a da competência territorial”, diz trecho do artigo da USP.

Apenas em março de 2021, o ministro do STF Edson Fachin acolheu o argumento da defesa de que os casos não deveriam ter sido julgados em Curitiba. Ele entendeu que não havia elementos concretos na acusação comprovando que o petista teria interferido diretamente em contratos da Petrobras para favorecer empreiteiras em troca do tríplex ou das obras no sítio. Sua decisão depois foi confirmada pela Segunda Turma do STF.

Logo depois, o Supremo também declarou que Moro agiu com parcialidade nos processos contra Lula, o que reforçou a anulação dos processos contra o ex-presidente. O Supremo decidiu, então, que os quatro processos que tramitaram em Curitiba deveriam ser refeitos do zero na Justiça Federal de Brasília. No entanto, os casos acabaram arquivados, porque os crimes dos quais Lula era acusado prescreveram (terminou o prazo para julgamento).

“Nesse sentido, as alegações de parcialidade enunciadas contra Lula possam, talvez, ser ampliadas para um comportamento parcial em relação a todos os réus com filiação partidária ao PT e que foram processados na Subseção Judiciária de Curitiba. Os filiados ao PT não foram alvo privilegiado da Operação Lava Jato como um todo. Todavia, os filiados ao PT foram denunciados predominantemente em Curitiba”, conclui o artigo.

Os autores ressaltam, porém, que a Lava Jato não teria conseguido manter processos contra o PT em Curitiba se não houvesse uma autorização do STF, que inicialmente determinou que todos os casos relacionados à Petrobras fossem mantidos com Moro.

O artigo diz ainda que Moro não pode ser responsabilizado isoladamente pela prisão de Lula, já que o petista só foi preso em 2018 porque havia sido condenado também pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) e porque o STF autorizou naquele ano o cumprimento da pena após condenação em segunda instância.

O petista foi solto no final de 2019, após 580 dias preso, quando o Supremo reviu sua decisão e passou a proibir o cumprimento da pena antes do trânsito em julgado (fim dos recursos disponíveis no processo).

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