Em um momento, o vale era um pântano tranquilo. Gramíneas e palmeiras lançavam sombras difusas na água abaixo. Os peixes espreitavam cautelosamente nas margens dos manguezais. Os orangotangos procuravam frutas com os dedos. Daí um gigante adormecido acordou de seu sono.
Isso aconteceu por volta de 72 mil a.C., na ilha de Sumatra, na Indonésia. O supervulcão Toba entrou em erupção, no que se acredita ter sido o maior evento desse tipo nos últimos 100 mil anos. Uma série de explosões estrondosas explodiu 9,5 quatrilhões de quilos de cinzas, que se espalharam em nuvens que escureceram o céu e se arrastaram por cerca de 47 km na atmosfera.
Na sequência, uma vasta área em toda a Ásia foi coberta por uma camada de poeira maciça de 3 a 10 centímetros de espessura. Ela sufocou as fontes de água e grudou na vegetação como cimento —depósitos da erupção foram encontrados tão longe quanto a África Oriental, a 7,3 mil km de distância.
Mas, crucialmente, alguns cientistas acreditam que o evento extremo mergulhou o mundo em um inverno vulcânico que durou décadas — e quase extinguiu nossa espécie.
Em 1993, uma equipe de pesquisadores americanos estudou o genoma humano em busca de pistas sobre o passado profundo e descobriu uma assinatura reveladora de um grande “gargalo populacional” — um momento em que a humanidade encolheu tão drasticamente que todas as gerações subsequentes que surgiram fora da África se tornaram significativamente mais próximas.
Estudos posteriores revelaram que nesta era precária, que pode ter ocorrido entre 50 mil e 100 mil anos atrás, a população pode ter se reduzido a apenas 10 mil pessoas — o equivalente aos habitantes do sonolento assentamento de Elkhorn em Wisconsin, nos Estados Unidos, ou o número de indivíduos que participaram de um único casamento coletivo na Malásia, em 2020.
A parte menos afetada do mundo pelo vulcão foi a África, onde a diversidade genética permanece alta até hoje — neste único continente, existem diferenças genéticas maiores entre certos grupos locais do que entre africanos e europeus.
Alguns acham que esse momento não é uma coincidência — eles acreditam que foi a erupção vulcânica que fez isso. A ideia é muito contestada, mas não há dúvida de que grande parte da humanidade descende de um número relativamente modesto de ancestrais super-resistentes.
Um avanço rápido de 74 mil anos na história e nossa espécie, outrora um obscuro primata sem pelos corporais, sofreu uma explosão populacional, colonizando quase todos os habitats do planeta e exercendo uma influência até nos cantos mais remotos — em 2018, os cientistas encontraram um saco plástico a 10,8 mil metros abaixo da superfície do oceano no fundo da Fossa das Marianas, enquanto outra equipe descobriu recentemente “produtos químicos eternos” feitos pelo homem no Monte Everest.
Nenhuma parte do mundo é intocada — todos os lagos, florestas e cânions já tiveram algum tipo de contato com a atividade humana.
Ao mesmo tempo, nossos números e engenhosidade permitiram à humanidade realizar feitos que nenhum outro animal poderia sonhar — dividir átomos, enviar equipamentos complexos a quase 1,6 milhão de km para observar planetas se formando em galáxias distantes e contribuir para uma impressionante diversidade de arte e cultura.
Todos os dias, coletivamente tiramos 4,1 bilhões de fotografias e trocamos entre 80 e 127 trilhões de palavras.
Na data estranhamente específica de 15 de novembro de 2022, as Nações Unidas preveem que haverá oito bilhões de humanos vivos ao mesmo tempo — até 800 mil vezes mais do que os sobreviventes da catástrofe daquela erupção vulcânica.
Hoje, nossa população é tão enorme, com tão pouca diversidade genética fora da África, que um pesquisador observou recentemente que não é tão surpreendente que algumas pessoas pareçam semelhantes a perfeitos estranhos — há um pool genético limitado que está sendo constantemente reciclado, e acontecem cerca de 370 mil novas oportunidades (na forma de bebês nascidos) para que essas coincidências “apareçam” todos os dias.
Mas com a população em expansão, veio um grande cisma. Alguns veem os números em alta como uma história de sucesso sem precedentes — na verdade, há uma escola emergente de pensamento de que defende precisarmos de mais pessoas.
Em 2018, o bilionário da tecnologia Jeff Bezos previu um futuro em que nossa população atingirá um novo marco decimal, na forma de 1 trilhão de humanos espalhados pelo Sistema Solar — e anunciou que está planejando maneiras de tornar isso realidade.
Outros, na contramão — incluindo o apresentador e historiador natural Sir David Attenborough — rotularam as massas humanas de “praga na Terra”.
Segundo essa visão, quase todos os problemas ambientais que enfrentamos atualmente, desde mudanças climáticas até perda de biodiversidade, estresse hídrico e conflitos por terra, podem ser ligados com a nossa reprodução desenfreada nos últimos séculos.
Em 1994 — quando a população global era de apenas 5,5 bilhões — uma equipe de pesquisadores da Universidade Stanford, nos EUA, calculou que o tamanho ideal de nossa espécie variaria entre 1,5 e 2 bilhões de pessoas.
Será que o mundo está superpovoado atualmente? E o que o futuro reserva para o domínio global da humanidade? O debate sobre o número ideal de pessoas no planeta está desde sempre fragmentado e emocionalmente carregado — mas o tempo está se esgotando para decidir qual é a melhor direção.
No final da década de 1980, na região central do Iraque, uma equipe de arqueólogos da Universidade de Bagdá estava escavando uma biblioteca em ruínas na antiga cidade de Sippar.
Em meio à areia, poeira e paredes antigas, eles encontraram 400 tábuas de argila pequenas — registros que estavam esquecidos num túmulo acadêmico por mais de 3.500 anos, ainda nas mesmas prateleiras onde haviam sido organizados por mãos babilônicas.
Mas quatro dessas tábuas em particular eram especiais. Elas continham as seções que faltavam de uma história encontrada em fragmentos em tabuletas separadas espalhadas pela Mesopotâmia, o que intriga os historiadores até hoje.
“Ainda não haviam se passado 1.200 anos [desde a criação da humanidade], quando a terra se estendia e as pessoas se multiplicavam…”, diz o Atra-hasis — o poema épico estampado no barro por um escriba anônimo por volta do século 17 a.C.
É a versão mesopotâmica da onipresente história do Grande Dilúvio, encontrada em inúmeras formas em várias culturas ao redor do mundo, na qual a civilização é destruída por uma divindade — e pode conter uma das primeiras menções de superpopulação no registro histórico.
No conto antigo, os deuses se aborrecem com todo o “barulho” criado pelas hordas humanas, bem como com as “terras que rugem feito um touro” devido ao estresse a que foram submetidos pelas demandas de nossa espécie.
O deus da atmosfera, Enlil, decide desencadear alguns perigos para reduzir os números novamente — ele planeja pragas, fomes e secas em intervalos regulares a cada 1.200 anos. Felizmente, outro deus salva o dia. Mas então Enlil planeja uma grande inundação… E o conto clássico da construção de barcos e arcas segue em frente.
Na época em que o Atra-hasis foi escrito, estima-se que a população global tinha entre 27 e 50 milhões de pessoas, o equivalente ao número que atualmente habita países como Camarões ou Coréia do Sul — ou de 0,3% a 0,6% do total de indivíduos vivos hoje.
Durante o milênio que se seguiu, os estudiosos parecem ter ficado relativamente quietos sobre qualquer preocupação populacional. Até que, na Grécia Antiga, eles começaram a refletir sobre o assunto novamente.
O filósofo Platão tinha algumas opiniões fortes sobre o tema.
Após um período de rápido crescimento, em que a população de Atenas duplicou, ele lamentou: “O que resta agora é como o esqueleto de um corpo devastado pela doença; o solo rico foi levado e resta apenas a estrutura nua do distrito.”
Ele não apenas acreditava no controle estrito da população, administrado pelo Estado, como também acabou concluindo que a cidade ideal não deveria ter mais de 5.040 cidadãos. O filósofo ainda achava que a instalação de colônias era uma boa maneira de “descarregar” qualquer excesso.
Na obra-prima de Platão, A República, escrita por volta de 375 a.C., ele descreve duas cidades-estado imaginárias — regiões administrativas governadas quase como pequenos países. Uma é saudável e a outra é “luxuosa” e “febril”.
Nesta última, a população gasta e devora excessivamente, entregando-se ao consumismo até “ultrapassar o limite de suas necessidades”.
Infelizmente, esta cidade-estado moralmente decrépita eventualmente recorre à tomada de terras vizinhas, o que naturalmente se transforma numa guerra — o local simplesmente não consegue sustentar a grande e gananciosa população sem obter recursos extras.
Platão se deparou com um debate que ainda hoje é intenso: a população humana é o problema? Ou a questão está nos recursos que ela consome?
Demorou mais de cinco séculos depois de Platão para que a escala global de nossa explosão populacional se tornasse clara.
O autor Tertuliano, que viveu na cidade romana de Cártago, antecipou-se às observações modernas sobre nossas multidões destrutivas.
Em 200 d.C., quando a população humana total atingiu entre 190 e 256 milhões — algo próximo do número de indivíduos que atualmente habita a Nigéria ou a Indonésia — ele acreditava que o mundo inteiro já havia sido explorado e as pessoas se tornaram um fardo para o planeta.
“A natureza não pode mais nos sustentar”, escreveu.
Nos próximos 1.500 anos, a população humana global mais que triplicou. Eventualmente, essa preocupação isolada de alguns se transformou em pânico generalizado.
É justamente aí que entra Thomas Malthus, um clérigo inglês com tendência ao pessimismo. Em seu famoso trabalho, Um Ensaio sobre o Princípio da População, publicado em 1798, ele começou com duas observações importantes: todas as pessoas precisam comer e gostam de fazer sexo.
Quando levados à sua conclusão lógica, explicou, as demandas da humanidade levariam à superação dos suprimentos do planeta.
“A população, quando não controlada, aumenta em uma proporção geométrica. A subsistência aumenta apenas em uma proporção aritmética. Um leve conhecimento dos números mostrará a imensidão da primeira potência em comparação com a segunda”, escreveu Malthus.
Em outras palavras, um grande número de pessoas leva a um número ainda maior de descendentes, em uma espécie de ciclo de feedback positivo — mas nossa capacidade de produzir alimentos não necessariamente se acelera da mesma maneira.
Essas palavras simples tiveram um efeito imediato, acendendo um medo apaixonado em alguns e raiva em outros, que continuariam a reverberar esses conceitos na sociedade por décadas.
O primeiro grupo achava que algo precisava ser feito para impedir que nossos números saíssem do controle. O segundo, por sua vez, defendia que limitar o número de pessoas era absurdo ou antiético, e todos os esforços deveriam ser feitos para aumentar a oferta de alimentos.
O campo que adotou a ideia de menos pessoas foi particularmente crítico às Leis dos Pobres feitas na Inglaterra, introduzidas centenas de anos antes, que envolviam pagamentos a pessoas que viviam na pobreza para ajudá-las a cuidar dos filhos. Especulou-se que estes aportes financeiros encorajavam as pessoas a ter famílias maiores.
Na época em que o ensaio de Malthus foi publicado, havia 800 milhões de pessoas no planeta.
Não foi até 1968, no entanto, que as preocupações modernas sobre a superpopulação global ganharam terreno, quando um professor da Universidade Stanford, Paul Ehrlich, e sua esposa, Anne Ehrlich, foram coautores do livro The Population Bomb (“A Bomba Populacional”, em tradução livre).
A cidade indiana de Delhi foi a inspiração. O casal estava voltando para o hotel em um táxi e passou por uma favela, onde ficou assustado com a quantidade de atividade humana nas ruas. Eles escreveram sobre a experiência de uma forma que foi fortemente criticada, especialmente porque a população de Londres à época era mais que o dobro da de Delhi.
O casal escreveu o livro por causa de preocupações com a fome em massa que eles acreditavam que estava chegando, principalmente nos países em desenvolvimento, mas também em lugares como os Estados Unidos, onde muitos começavam a perceber o impacto no meio ambiente.
O trabalho foi amplamente creditado — ou acusado, a depender do ponto de vista — de desencadear muitas das ansiedades atuais sobre a superpopulação.
É claro que as discussões sobre quantas pessoas deveriam existir nunca foram puramente acadêmicas. Às vezes, elas foram sequestradas para justificar perseguição, limpeza étnica e genocídio.
Em cada caso, os perpetradores pretendiam diminuir as populações de grupos específicos de pessoas, como aqueles de uma determinada classe social, religião ou etnia — em vez da humanidade como um todo. Mas, mesmo assim, às vezes esses episódios são vistos como exemplos dos perigos que o próprio conceito de superpopulação pode representar.
Já em 1834, apenas três décadas e meia após a publicação do ensaio de Malthus, as Leis dos Pobres foram descartadas e substituídas por outras regras mais rígidas.
Isso foi em parte devido às preocupações malthusianas de que essa classe social (que ele chamava de “camponeses”) estava se reproduzindo demais e tinha o resultado de levar crianças órfãs a asilos sombrios e insalubres, como o retratado no romance de Charles Dickens, Oliver Twist.
Ao longo dos séculos seguintes, a eugenia foi continuamente disfarçada de controle populacional — ou recebeu apoio do movimento — como durante as esterilizações forçadas de pessoas de grupos étnicos minoritários na América dos anos 1970.
O conceito também foi usado para restringir as liberdades individuais. Em 1980, a China introduziu a controversa política do filho único, que foi amplamente vista como uma violação invasiva dos direitos sexuais e reprodutivos da população.
Um futuro controverso
Como resultado de toda essa história , a engenharia populacional é uma área profundamente dividida.
Hoje, quaisquer políticas que envolvam cotas ou metas para aumentar ou diminuir a população humana são quase universalmente condenadas, exceto por um punhado de organizações extremistas.
O risco desses incentivos levarem à coerção ou outras atrocidades é visto como muito alto. Mas há pouco acordo além disso.
As baixas taxas de natalidade
Em uma extremidade do espectro estão aqueles que veem as taxas de fertilidade mais baixas em algumas áreas como uma crise. Um demógrafo está tão preocupado com a queda na taxa de natalidade no Reino Unido que sugeriu taxar as famílias sem filhos.
Em 2019, havia 1,65 crianças nascidas no país por mulher em média. Isso está abaixo do nível de reposição — o número de nascimentos necessários para manter o mesmo tamanho populacional — de 2,07, embora a população ainda esteja crescendo em geral devido aos imigrantes que chegam de outros países.
A visão oposta é que desacelerar e eventualmente interromper o crescimento populacional global não é apenas eminentemente gerenciável e desejável, mas pode ser alcançado por meios inteiramente voluntários — métodos como simplesmente fornecer contracepção para aqueles que gostariam e educar as mulheres.
Dessa forma, os defensores dessa posição acreditam que poderíamos não apenas beneficiar o planeta, mas melhorar a qualidade de vida dos cidadãos mais pobres do mundo.
Uma organização que acredita nessa abordagem é a instituição de caridade Population Matters, com sede no Reino Unido, que faz campanha para alcançar uma população global sustentável.
Eles defendem o enfrentamento das pressões que o consumismo está colocando no planeta, ao mesmo tempo em que destacam o papel que o tamanho da população tem que desempenhar nisso.
“Deploramos qualquer forma de controle populacional ou coerção, restrição de escolha”, diz o diretor, Robin Maynard. “Trata-se então de permitir o acesso, garantir a escolha e cumprir os direitos. E essa é realmente a maneira mais eficaz de as pessoas tomarem decisões que são boas para elas e para o planeta.”
Por outro lado, alguns apostam numa mudança do foco: a ideia passa de ajustar o número de pessoas no mundo para refletir sobre nossas atividades.
Os defensores argumentam que a quantidade de recursos que cada pessoa usa tem mais impacto em nossa influência coletiva e apontam que o consumo é significativamente maior em países mais ricos e com menores taxas de natalidade.
Reduzir nossas demandas individuais no planeta poderia diminuir a “pegada” da humanidade sem sufocar o crescimento nos países mais pobres.
De fato, o interesse em reduzir o crescimento populacional em partes menos desenvolvidas do mundo foi acusado de ter conotações racistas, quando a Europa e a América do Norte são mais densamente povoadas em geral.
Finalmente, há a “solução” fatalista para a perene questão da população: simplesmente não faça nada. Essa visão se baseia na dinâmica altamente instável de nossa população global — ela deve crescer significativamente, mas depois encolherá. Cada um pode conseguir o que quer no final, embora isso não seja garantido para sempre.
As estimativas variam, mas espera-se que cheguemos o “pico populacional” por volta de 2070 ou 2080, quando haverá entre 9,4 bilhões e 10,4 bilhões de pessoas no planeta. Pode ser um processo lento — se chegarmos a 10,4 bilhões, a Organização das Nações Unidas (ONU) espera que a população permaneça nesse nível por duas décadas — mas, eventualmente, depois disso, a previsão é de que esse número comece a diminuir.
No livro Empty Planet: The Shock of Global Population Decline (“Planeta Vazio: o Choque do Declínio da População Global, em tradução livre), os autores apresentam uma visão de futuro muito diferente daquela a que estamos acostumados, em que o mundo lida com os novos desafios e oportunidades que o despovoamento pode apresentar.
Em meio a toda a controvérsia e incerteza, pode ser difícil saber o que pensar. Mas como o número de pessoas no planeta pode afetar alguns aspectos-chave de nossas vidas no futuro — o meio ambiente, a economia e nosso bem-estar coletivo?
Um desafio ambiental
Uma câmera percorre a floresta de Madagascar. O local é cheio de árvores e traz o mistério emocionante de um ambiente desconhecido.
Então, de repente, lá está: um borrão branco salta pela lente e desaparece. O animal é um sifaka — um lêmure tímido e indescritível com membros longos, pele clara e um rosto preto, como um ursinho de pelúcia esguio.
O breve encontro faz parte de um documentário da BBC, Oceano Índico com Simon Reeve, e o apresentador logo revela uma advertência surpreendente sobre o achado da equipe.
Afinal, esta não é a natureza selvagem — eles estão na reserva Berenty no sul de Madagascar, um pequeno pedaço de floresta cercado de plantações comerciais, um dos últimos lugares que essa criatura rara pode chamar de lar.
No centro de visitantes, Reeve diz que foi informado de forma confiável que quase todos os cinegrafistas da vida selvagem que filmam na área instalam os equipamentos num local exato, onde os lêmures são mais abundantes.
Os equipamentos ficam de costas para a floresta, para não capturar nenhum edifício atrás. Embora os espectadores possam pensar que estão vislumbrando o desconhecido selvagem, dá para argumentar que o que eles realmente estão recebendo é uma ilusão cuidadosamente selecionada de uma natureza pretensamente indomável.
O documentário destaca o “mito da natureza intocada” — um mal-entendido que pode ocorrer quando as pessoas são apresentadas a imagens majestosas do mundo natural que excluem os seres humanos inteiramente, ou minimizam drasticamente a nossa onipresença, sugerindo que ainda existem vastas extensões de terra intocadas por aí.
As imagens de satélite são uma ferramenta particularmente poderosa para quebrar essa noção: do ar, muitos países revelam-se fortemente adaptados para o uso humano.
Até onde a vista alcança, a terra é uma colcha de retalhos de campos agrícolas, entremeados de estradas e fileiras e mais fileiras de prédios. Algumas paisagens foram tão transformadas em apenas algumas décadas, por obras de engenharia ou desmatamento, que quase não são reconhecíveis.
Essas mudanças vêm com algumas estatísticas surpreendentes. De acordo com a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), 38% da superfície terrestre do planeta é usada para cultivar alimentos e outros produtos (como combustível) para humanos ou o gado — são cinco bilhões de hectares no total.
E, embora nossos ancestrais vivessem entre gigantes, caçando mamutes e pássaros elefantes de 450 kg, hoje somos a espécie de vertebrados dominante em terra — um grupo que inclui tudo, de lagartixas a lêmures. Em peso, os humanos representam 32% dos vertebrados terrestres, enquanto os animais selvagens são apenas 1% do total. A pecuária responde pelo resto.
A organização de preservação da natureza selvagem WWF descobriu que as populações de animais selvagens diminuíram em dois terços entre 1970 e 2020 — nesse período, a população global mais que dobrou.
De fato, à medida que nosso domínio aumenta, muitas mudanças ambientais vêm ocorrendo em paralelo — e vários ambientalistas proeminentes, desde a primatologista Jane Goodall, famosa por seu estudo sobre chimpanzés, até o naturalista e apresentador de TV Chris Packham, expressaram preocupações.
Em 2013, Sir David Attenborough explicou seus pontos de vista em uma entrevista ao Radio Times: “Todos os nossos problemas ambientais se tornam mais fáceis de resolver com menos pessoas e mais difíceis — e, em última análise, impossíveis — de solucionar com cada vez mais pessoas.”
Para alguns, o alarme sobre a pegada ambiental da humanidade os levou a decidir ter menos ou nenhum filho — incluindo o duque e a duquesa de Sussex, que anunciaram em 2019 que não teriam mais do que dois herdeiros pelo bem do planeta. No mesmo ano, Miley Cyrus também declarou que ainda não teria filhos porque a Terra está “com raiva”.
Um número crescente de mulheres está se juntando ao movimento antinatalista e aderindo ao BirthStrike (ou greve da gestação, em tradução livre), até que a emergência climática e a crise da extinção de espécies sejam tratadas.
A tendência foi impulsionada por uma pesquisa de 2017, que calculou que simplesmente ter um filho a menos no mundo desenvolvido poderia reduzir as emissões anuais de carbono de uma pessoa em 58,6 toneladas — um valor 24 vezes superior a economia de não ter um carro.
Um estudo de 2019, liderado por Jennifer Sciubba, professora associada de Estudos Internacionais do Rhodes College, nos EUA, analisou os níveis de crescimento populacional em mais de 1.000 regiões em 22 países europeus entre 1990 e 2006 e os comparou com as mudanças nos padrões de uso do solo urbano e das emissões de dióxido de carbono.
A equipe concluiu que um grande número de pessoas teve um “efeito considerável” sobre esses parâmetros ambientais na Europa Ocidental, mas esses não foram os fatores mais importantes no lado oriental do continente.
Esse suporte sutil para a ideia de que o crescimento populacional leva à degradação ambiental é apoiado por muitos outros estudos — como também o impacto da demanda crescente por recursos naturais, especialmente entre os países mais ricos.
De fato, muitos ambientalistas agora acreditam que os problemas que enfrentamos atualmente têm a ver em grande parte com o consumo, e não com a superpopulação. Dessa perspectiva, as preocupações com o número de habitantes do planeta transferem injustamente a culpa para os países mais pobres.
Em 2021, um estudo descobriu que nos EUA, o crescimento populacional e o uso de fontes de energia não renováveis estão degradando o meio ambiente, enquanto outro revelou que o crescimento econômico e o uso de recursos naturais na China de 1980 a 2017 levou a um aumento nas emissões de dióxido de carbono.
Curiosamente, outras pesquisas descobriram que, embora o uso de recursos naturais e a urbanização na China aumentem a taxa de destruição ambiental, estes são parcialmente compensados pela disponibilidade de “capital humano” — essencialmente, o conhecimento e a habilidade da população humana.
Hoje em dia, é amplamente aceito o conceito que as pessoas estão colocando uma pressão insustentável sobre os recursos finitos do mundo — um fenômeno que é destacado pelo “Dia da superação da Terra”, a data em que se estima que a humanidade tenha usado todos os recursos biológicos que o planeta pode sustentar naquele ano. Em 2010, essa data era 8 de agosto. Este ano, ela foi reduzida para 28 de julho.
Quer o problema seja o excesso de humanos, os recursos que usamos ou ambos, “não consigo nem imaginar como mais humanos poderiam ser melhores para o meio ambiente”, diz Jennifer Sciubba, autora do livro 8 Billion and Counting: How Sex, Death, and Migration Shape our World (“8 Bilhões e Contando: Como Sexo, Morte e Migração Moldam Nosso Mundo”, em tradução livre).
Ela sugere que uma maneira de se argumentar envolve o exercício de encarar os humanos e o meio ambiente como a mesma entidade, “embora esse seja um argumento muito difícil”.
No entanto, Sciubba faz questão de salientar que a ideia de uma iminente “bomba populacional” vindo para destruir o planeta está ultrapassada.
“No passado, havia cerca de 127 países no mundo onde as mulheres tinham em média cinco ou mais filhos ao longo da vida”, calcula. Naquela época, as tendências populacionais realmente pareciam exponenciais — e ela sugere que isso incutiu um pânico populacional em certas gerações que estão vivas até hoje.
“Mas atualmente existem apenas oito [países com taxas de fecundidade acima de cinco]”, diz Sciubba. “Então, acho importante percebermos que essas tendências mudaram.”
Uma oportunidade econômica
Em 2012, o governo de Singapura criou uma maneira incomum para os cidadãos comemorarem sua independência — e divulgou as instruções importantes por meio de um novo rap.
O hit pretendia incentivar os jovens casais a terem mais filhos e misturava insinuações animadas com referências patrióticas à cultura e aos pontos turísticos que o país abriga.
“Vamos fazer um pequeno humano que se pareça com você e eu. Explorando seu corpo como um safári noturno, eu sou um marido patriota, você é uma esposa patriota. Deixe-me entrar em seu acampamento e fabricar uma vida…”, dizia um trecho da letra.
A música foi lançada em meio a temores sobre a taxa de fertilidade superbaixa de Singapura, que era de apenas 1,1 nascimento por mulher em 2020.
Trata-se de um exemplo extremo do que se tornou uma tendência comum em países ricos, onde as pessoas se casam mais tarde e optam por ter menos filhos. Nesta nação asiática, os números provocaram preocupações sobre quais poderiam ser as consequências para a economia do país, levando o governo de lá a pedir aos cidadãos que fizessem a parte deles.
Esse é um conceito-chave em economia: quanto mais pessoas você tem, mais bens ou serviços elas podem produzir e mais podem consumir. Logo, o crescimento populacional é o melhor amigo do crescimento econômico.
Essa é uma das razões pelas quais as preocupações com o aumento da população nas partes em desenvolvimento do mundo às vezes são vistas como problemáticas — muitos países desenvolvidos já são densamente povoados e, em parte, é assim que eles conquistaram a riqueza. Negar a outros países essa oportunidade é visto como algo injusto e até racista.
No entanto, o crescimento populacional mais lento nem sempre é seguido por uma queda econômica. Veja o Japão, que antecipou as tendências globais de nações ricas e alcançou taxas de fertilidade abaixo do nível de reposição já em 1966, quando de repente esse número caiu de cerca de dois para 1,6 por lá.
“Não acho que a economia do Japão tenha declinado à medida em que as pessoas às vezes a retratam, se você observar os padrões de vida”, diz Andrew Mason, professor emérito do Departamento de Economia da Universidade do Havaí, nos EUA. “Eles investiram muito em capital humano — por isso têm menos filhos, mas enfatizam a educação e têm sistemas de saúde muito bons.”
Mason também aponta que poupança e investimento são comuns no Japão: “Então, houve aumentos no capital [monetário] e maior produtividade . Se você combinar essas coisas, acho que o Japão é um bom estudo de caso sobre por que não precisamos ter pânico [sobre o declínio das taxas de natalidade].”
E há outras formas de fazer crescer a economia de um país. Mason ressalta que a imigração muitas vezes fornece uma fonte útil de novos trabalhadores.
Para melhorar, a chegada de estrangeiros pode ajudar a resolver problemas econômicos sem adicionar mais pessoas ao total da humanidade. Mas a imigração também continua sendo um assunto controverso e altamente politizado em alguns países — portanto, sem mudanças culturais na forma como isso é percebido, alguns países não terão essa opção.
“Pense particularmente em países como Japão e Coréia do Sul, que [historicamente] têm sido muito resistentes à imigração. Eles vão achar cada vez mais vantajoso [mudar essa política]”, acredita Mason.
Da mesma forma, as vantagens que a imigração pode oferecer são inerentemente desiguais — um país obtém um impulso em sua economia às custas de outro, cujos trabalhadores saíram.
Há um sentimento crescente de que a obsessão global em perseguir o crescimento econômico a todo custo está ultrapassada e deve ser totalmente abandonada.
“Uma das coisas que me frustra no debate sobre a superpopulação é que muitos comentários saem da boca das mesmas pessoas — parece que não queremos que haja muitas pessoas, e também desejamos ter certeza de que a economia está sempre crescendo”, diz Sciubba.
“Em um mundo onde há menos indivíduos, realmente precisamos de uma mudança completa de mentalidade, longe do conceito em que crescimento é igual a progresso”, propõe.
Um futuro mais feliz
No entanto, a demografia influencia mais do que apenas o meio ambiente e a economia, que também são poderosas forças ocultas na formação da qualidade de vida das pessoas em todo o mundo.
Segundo Alex Ezeh, professor de Saúde Global da Universidade Drexel, nos EUA, o número absoluto de pessoas em um país não é o fator mais importante. Em vez disso, a taxa de crescimento ou declínio da população é fundamental para as perspectivas futuras de um país. Na visão dele, é isso que determina a rapidez com que as coisas estão mudando.
Ezeh explica que, na África, existem taxas radicalmente diferentes de crescimento populacional atualmente, dependendo de onde você olha.
“Em vários países, particularmente na África Austral [uma das cinco regiões definidas pelas Nações Unidas], as taxas de fecundidade realmente caíram e o uso de contraceptivos está aumentando — a taxa de crescimento da população está diminuindo, o que é de certa forma uma boa notícia”, aponta.
Ao mesmo tempo, alguns países da África Central ainda apresentam altas taxas de crescimento populacional, como resultado da fecundidade elevada e da maior expectativa de vida.
Em alguns lugares, ela está bem acima de 2,5% ao ano, “o que é enorme”, na visão de Ezeh. “A população dobrará a cada 20 anos em vários países”, estima o professor.
Mesmo dentro de uma única região, diferentes países podem estar em caminhos surpreendentemente diferentes — Ezeh dá o exemplo dos vizinhos Burundi e Ruanda. Enquanto o primeiro ainda apresenta altos níveis de crescimento — com 5,3 nascimentos por mulher — no segundo, o aumento está desacelerando, com 3,9 nascimentos por mulher em 2020, ante 4,5 em 2010.
“Acho que a conversa sobre tamanhos e números é equivocada”, entende. “Pense em uma cidade que está dobrando a cada 10 anos — e isso é o que acontece em algumas partes da África — cujo governo realmente tem recursos para melhorar toda a infraestrutura que existe atualmente a cada década, a fim de manter o nível correto de cobertura desses serviços?”, questiona.
Ezeh explica que é difícil apoiar o desenvolvimento do capital humano em condições de crescimento extremo — pesquisas recentes descobriram que isso desempenha um papel importante na felicidade das pessoas, superior à quantidade de dinheiro que elas ganham.
Esses fatores também são considerados como um importante mecanismo de predizer crescimento econômico, além do grande número de moradores de um país.
“Quando os economistas pensam sobre isso, uma grande população é ótima para muitos resultados diferentes. Mas você alcançará essa grande população em 10, 100 anos ou mil anos? E qual sistema dará suporte a essa população?”, pergunta Ezeh.
Um fator com um papel bem documentado na desaceleração dessa taxa de crescimento é a educação das mulheres, que tem o efeito colateral de aumentar a idade média em que elas dão à luz.
“Com o tempo, as mulheres têm acesso à educação, ocupam empregos e possuem tarefas fora da família, elementos que competem com a maternidade”, diz Ezeh.
No entanto, o professor faz questão de enfatizar os méritos da educação independentemente do impacto que a escolaridade tem no tamanho da população — falamos aqui em um dos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU.
Isso chega ao cerne de uma visão moderna sobre engenharia populacional: as políticas precisam ser implementadas em benefício da sociedade e, se por acaso levarem a mudanças demográficas benéficas, devem ser encaradas apenas como um bônus.
“Acho que uma das coisas que não queremos fazer é instrumentalizar a educação feminina. Não queremos que elas frequentem a escola porque desejamos que elas tenham menos filhos…”, pondera Ezeh.
De fato, os efeitos colaterais em cascata das políticas implementadas por outras razões destacam uma realidade impressionante da ciência populacional: o quão imprecisas são as previsões.
Em todo o mundo, as decisões tomadas pelos governos nas próximas décadas serão extremamente decisivas para determinar quantas pessoas habitarão o planeta — com o poder de nos levar para um futuro em que haverá 10 ou 15 bilhões de pessoas.
“Acho que uma das coisas que sabemos com certeza é que, [quando as pessoas dizem que] a população da África é projetada para ser X no ano Y, [isso] não é um destino”, destaca Ezeh.
“Se você olhar para a região da África Austral, a população pode ser três a quatro vezes maior do que é hoje em 2100, mas também pode ser 50% maior. Ou seja, falamos de uma faixa tão grande de possibilidades e precisamos fazer os investimentos necessários para chegar a uma taxa de crescimento consistente com o objetivo dos países. Essa é a magnitude da oportunidade que existe.”
Uma presença em expansão
Embora o grau em que a humanidade continuará a se expandir pelo planeta ainda não tenha sido decidido, algumas trajetórias já foram definidas.
Uma delas envolve o conceito que a população humana provavelmente continuará a crescer por algum tempo, independentemente de quaisquer possíveis esforços para diminuí-la.
Esse futuro se deve a um fenômeno conhecido como momentum demográfico, em que uma população jovem com taxa de fecundidade abaixo do nível de reposição continuará a crescer, enquanto a taxa de mortalidade e os níveis de migração permanecerem os mesmos.
Isso ocorre porque a mudança populacional não diz respeito apenas às taxas de natalidade — a estrutura de uma população também tem impacto, principalmente o número total de mulheres em idade fértil. Tudo isso significa que, em países onde as taxas de fecundidade são altas, o impacto total desse crescimento não é sentido até que as mulheres dessa população atinjam a idade reprodutiva décadas depois.
Um estudo de 2014 descobriu que, mesmo no caso de uma grande tragédia global, como uma pandemia mortal, uma guerra mundial catastrófica ou uma política draconiana de filho único implementada em todos os países do planeta — nenhuma delas desejável, claro — nossa população ainda crescerá para até 10 bilhões de pessoas em 2100.
Mesmo um desastre em tal escala que deixe dois bilhões de pessoas mortas em um período de cinco anos no meio do século ainda permitiria que a população crescesse para 8,5 bilhões de pessoas nas próximas oito décadas. Aconteça o que acontecer, concluem os autores, é provável que haja muitas, muitas pessoas por aí até pelo menos o próximo século.
Com a humanidade prestes a se tornar ainda mais dominante nos próximos anos, encontrar uma maneira de viver em sociedade e proteger o meio ambiente pode ser o maior desafio que a nossa espécie enfrentou até agora.
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Future.
Já assistiu aos nossos novos vídeos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!
Você precisa fazer login para comentar.