- André Biernath – @andre_biernath
- Da BBC News Brasil em Londres
Rafael A.* lembra das três últimas vezes que saiu de casa como se fosse hoje.
“Eu passeei com o cachorro na quadra do meu condomínio, fui tirar cópias de documentos numa lojinha e tive que ir até um shopping center”, conta.
Esses episódios aconteceram em março de 2020. Desde então, ele nunca mais deixou o apartamento de 45 metros quadrados em que mora na Zona Norte do Rio de Janeiro.
Para Rafael, a necessidade de ficar em lockdown por causa da pandemia de covid-19 fez com que a própria casa se transformasse numa prisão, da qual ele não consegue sair até hoje, pelo medo de se infectar com o coronavírus e desenvolver as formas mais graves da doença.
“Eu tenho muita saudade de sentir o sol, de passar no supermercado, de ir ao shopping…”, diz.
Como provas vivas desse período, ele guarda várias garrafas de álcool que comprou para higienizar os alimentos ou os objetos — e mantém uma bolsa onde acumula a maioria dos fios de cabelo que começaram a cair da cabeça com muita frequência durante este período.
Ao procurar a BBC News Brasil para contar sua história, Rafael esperava fazer uma espécie de desabafo, além de ajudar outros indivíduos espalhados pelo mundo, que estão em situações parecidas.
“Quantas pessoas podem estar presas em casa nesse momento, se sentem sozinhas e não têm o apoio necessário para sair desta?”, questiona.
Mudança de hábitos
Aos 38 anos, Rafael relata que já fazia acompanhamento psicológico muito tempo antes de a pandemia estourar — e conseguia sair de casa normalmente.
Outras crises sanitárias recentes — como a gripe H1N1 em 2009 e o zika em 2015 — não chegaram a impactar tanto a rotina ou a mudar hábitos dele.
Rafael trabalha como freelancer: dá assistência e suporte a um indivíduo com autismo, a quem ajuda em questões burocráticas e nos afazeres do dia a dia. Com a pandemia, todas as tarefas passaram a ser feitas por meio remoto, com trocas de mensagens e ligações.
Aliás, com a necessidade de lockdown a partir do espalhamento do vírus, o próprio indivíduo com autismo passou a ajudar bastante o próprio Rafael, ao dar suporte emocional e auxiliá-lo com tarefas básicas, como na entrega de algumas compras de supermercado.
Antes do espalhamento da covid, Rafael dividia o apartamento com a mãe e dois sobrinhos.
Porém, o agravamento da pandemia, a necessidade de ficar em casa e as exigências de redobrar os cuidados com a higiene geraram alguns conflitos entre eles, o que fez os outros três familiares eventualmente mudarem de endereço ainda em 2020.
No período, Rafael desenvolveu todo um sistema para adaptar o dia a dia. No hall de entrada do apartamento, que dá acesso à sala, ele colocou um pequeno baú que delimita até onde entregadores e familiares podem entrar.
Ao lado do baú, ele instalou uma mesa. É ali que as encomendas do mercado e da farmácia são deixadas. No local, também ficam os sacos de lixo reciclável que se acumulam e só são descartados quando algum conhecido passa pelo local.
No momento dessas visitas, porém, Rafael nunca fica no mesmo ambiente. Ao saber que alguém está chegando, ele deixa a porta de entrada aberta e se tranca no quarto até a pessoa ir embora.
No início, a preocupação com a higiene era tão grande que ele até pedia refeições por aplicativos de entrega, mas, com medo do coronavírus, colocava a comida no forno novamente.
“Várias vezes comi lanches e batatas fritas queimadas porque deixava a temperatura muito alta ou por tempo demais”, relata.
“Hoje, já melhorei um pouquinho e não sinto mais necessidade de chegar nesse ponto”, complementa.
Ao longo desses dois anos e meio de pandemia, alguns episódios reforçaram ainda mais os temores de Rafael.
Um dos principais foi a morte por covid-19 do humorista Paulo Gustavo, em maio de 2021.
“Eu sempre fui muito fã do trabalho dele e pensei: ‘Se um cara rico desses morreu, imagina o que pode acontecer comigo, que não tenho dinheiro?'”, se recorda.
Outro momento decisivo teve a ver com a vacinação contra a covid-19.
Quando as doses estavam disponíveis para a faixa etária dele, Rafael passou por um verdadeiro dilema: por um lado, ele sabia que os imunizantes garantiriam uma melhor proteção contra o coronavírus; por outro, não se sentia nada confortável em sair de casa, se expor e ir até um posto de saúde.
Teve início, então, uma verdadeira epopeia, em que tanto Rafael quanto colegas e familiares tentaram convencer algum profissional de saúde a ir até o apartamento e aplicar a vacina lá mesmo.
Depois de muita procura, em dezembro de 2021, duas enfermeiras de uma clínica de saúde da família do bairro finalmente foram até a moradia de Rafael, que as recebeu vestido com uma roupa especial, daquelas usadas por cientistas em situações emergenciais e com alto risco de contágio.
O processo se repetiu algumas semanas depois, em janeiro de 2022, quando ele precisava tomar a segunda dose.
“Fiquei com medo de ter alguma reação e precisar ir a um hospital, mas felizmente não senti nada”, conta.
E é justamente pelo medo de eventos adversos — somado à dificuldade de convencer a equipe de algum posto de saúde a ir até o apartamento — que Rafael ainda não tomou a terceira dose do imunizante que protege contra a covid.
Qual o limite?
Rafael sente-se agoniado ao ver que as pessoas estão retomando a vida e abandonando todas as restrições que marcaram os últimos dois anos, como o uso de máscara, a higiene das mãos e o distanciamento físico.
“A pandemia não acabou”, constata.
“No carnaval, eu via de longe, pela janela do apartamento, as pessoas festejando, todas muito alegres. Não consigo entender”, admite.
Questionado em que situação ele acha que fará sentido sair de casa e retomar a rotina, Rafael diz que checa as notícias e os gráficos sobre as mortes por covid registradas no Brasil todos os dias.
“Para mim, o número ideal seria zero. Mas acho que talvez me sinta um pouco mais confortável para sair quando ver entre cinco e dez mortes por covid”, estima.
Além do acompanhamento psicológico semanal, ele conta que também chegou a fazer consultas com o psiquiatra, que recomendou o uso de remédios para aplacar a ansiedade.
Mas o medo de sofrer algum efeito colateral — e precisar ir ao pronto-socorro — fez com que ele desistisse da ideia de iniciar um tratamento medicamentoso.
Mais comum do que se imagina
Apesar de chamar a atenção, a história de Rafael se repete, em maior ou menor grau, com outras pessoas, segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.
Embora não exista uma estatística oficial de quantos sentem dificuldade de sair de casa e retomar a rotina num “novo normal”, o psiquiatra Rodolfo Furlan Damiano, que não lida diretamente com Rafael, admite que “essas narrativas aparecem no dia a dia do consultório”.
“São casos muito individuais, ligados a um aumento da prevalência de transtornos mentais ao longo dos últimos anos”, contextualiza o médico, que faz doutorado no Instituto de Psiquiatria (IPq) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Damiano explica que, nos primeiros meses da pandemia, houve até uma diminuição de quadros como ansiedade e depressão. “Quando a gente está diante de um grande problema coletivo, a tendência inicial é esquecermos das demais dificuldades da vida e focarmos só naquilo. Isso de certa maneira agrega e gera uma sensação de pertencimento.”
“Só que, conforme a pandemia vai passando, acontece outro fenômeno. Nós resgatamos as dificuldades anteriores, que ficaram dormentes, e adicionamos todos os dilemas extras relacionados àquele momento”, acrescenta.
E, para indivíduos que já têm algum tipo de vulnerabilidade, isso tudo representa uma carga emocional muito alta, explica Damiano. “Algumas pessoas podem enfrentar uma dificuldade de adaptar-se novamente e desenvolvem quadros como ansiedade, depressão ou fobias”, conclui.
‘Maior confinamento da história’
O professor Paul Crawford, do Instituto de Saúde Mental da Universidade de Nottingham, no Reino Unido, que também não tem nenhum contato com Rafael, concorda que o confinamento prolongado e o isolamento social têm diversos efeitos deletérios no bem-estar — mas existem antídotos que ajudam lidar com essa condição.
Ainda em 2020, ele escreveu um livro chamado Cabin Fever: Surviving Lockdown in the Coronavirus Pandemic (Febre da Cabana: Sobrevivendo ao Lockdown na Pandemia de Coronavírus, em tradução livre), em que explorou esse tópico em detalhes.
Na obra, ele descreve os momentos que vivemos nos últimos dois anos e meio como “o maior confinamento da história”.
“Para alguns, ficar em casa foi bem-vindo e deu uma oportunidade para aprofundar relacionamentos com pessoas próximas, como parceiros e filhos. Para outros, a falta de contato físico e a comunicação digital sem fim tiveram um impacto emocional muito negativo”, compara.
Ao lembrar de situações e episódios em que as pessoas também ficam isoladas — como em prisões, sequestros, viagens ao redor do mundo ou voos espaciais —, Crawford cita algumas estratégias que podem funcionar e fazem bem à mente.
“Nesses contextos, ter uma estrutura, estabelecer metas e criar propósitos para cada dia são fatores cruciais”, diz à BBC News Brasil.
“Também é importante ter acesso a áreas verdes, aceitar psicologicamente o ‘novo normal’, ajustar as necessidades à realidade, se conectar com outras pessoas, mesmo que nos meios digitais, perceber a própria casa como um santuário — e não como uma prisão —, prestar atenção à saúde, principalmente à alimentação e à prática de exercício físico, e se engajar em atividades criativas e artísticas”, completa.
Sobre o alívio das restrições e o retorno às ruas, Crawford compreende a dificuldade que alguns podem sentir.
“Muitos permanecerão tensos com a possibilidade de ter contato com o vírus, seja por alguma vulnerabilidade de saúde ou pela morte traumática de conhecidos, amigos ou familiares”, descreve.
“Outros, por sua vez, transformaram o lar num santuário tão confortável e duradouro que, talvez, prefiram continuar a viver ali dentro.”
O pesquisador acredita que a “ainda não está estabelecida uma linha clara de quando um comportamento desses, baseado num lockdown voluntário, é compreensível ou patológico”.
“O que a pandemia e ‘o maior confinamento da história’ fizeram foi intensificar e tornar mais palpáveis as maneiras pelas quais o isolamento social pode levar ao declínio mental e à calamidade, e como o sofrimento e os desafios mentais geralmente levam as pessoas a se isolarem ou a se esconderem socialmente”, conclui o especialista.
Não é coisa da sua cabeça
Para Damiano, diante de uma dificuldade de retomar a rotina, o limiar entre saúde e doença é definido pela perda de liberdade.
“Quando a pessoa não consegue mais tomar as próprias decisões e o contexto em que ela vive é fonte de sofrimento e aflição, chegou a hora de buscar um profissional de saúde”, indica.
A consulta com o psiquiatra e com o psicólogo é essencial para diagnosticar o transtorno, investigar as origens do problema e, claro, iniciar o tratamento mais efetivo.
Em alguns casos, a psicoterapia dá conta do recado. O método envolve sessões estruturadas de conversas com um especialista, que vai analisar os comportamentos, as emoções e os pensamentos para modificar aquilo que foge do ideal.
Em outros, a medicação também é primordial para complementar esse processo e estabilizar o quadro.
Damiano reforça que, assim como acontece com qualquer outra doença, os transtornos mentais precisam ser tratados com respeito — ter depressão ou ansiedade não é “só coisa da cabeça” ou “algo que passa com força de vontade”, como alguns insistem em dizer de forma absolutamente equivocada.
“São problemas que qualquer um pode ter, e é importante que as pessoas busquem ajuda quando sentirem necessidade”, pontua.
Entre medos e adaptações, Rafael segue tocando a vida, com a esperança de um dia voltar a sentir o sol.
“Eu não sou louco. Não rasgo dinheiro. Não faço mal às pessoas. Sei conversar direito”, afirma.
“Mas minha situação sempre me faz pensar nas outras pessoas que podem estar numa situação parecida, ou nos portadores de ansiedade, bipolaridade ou esquizofrenia, que podem não ter apoio de ninguém”, finaliza.
*O sobrenome de Rafael foi ocultado para preservar a sua identidade.
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