- Matheus Magenta*
- Da BBC News Brasil em Londres
Considerado o primeiro deputado evangélico do Brasil, o pastor da Igreja Metodista Guaracy Silveira chegou à Assembleia Constituinte nos anos 1930 para defender os interesses dos protestantes e a participação deles na política numa época em que eram uma pequena minoria.
Mas as bandeiras que ele defendia podem causar estranheza para quem acompanha atualmente a bancada evangélica no Congresso Nacional.
Silveira era a favor do divórcio (para proteger as mulheres), tentou impedir que as escolas públicas tivessem aula de religião (por temer serem só de catolicismo) e foi contra inserir o nome de Deus na Constituição (por considerar desnecessário).
Mais de 90 anos depois, os evangélicos se tornaram centrais nas eleições brasileiras, somando 30% dos eleitores e 20% da Câmara dos Deputados.
Um exemplo representativo desse avanço no campo político é que o governo Bolsonaro chegou a ter seis ministros protestantes ao mesmo tempo: Onyx Lorenzoni (luterano), André Mendonça (presbiteriano), Milton Ribeiro (presbiteriano), Damares Alves (do Evangelho Quadrangular), Luiz Eduardo Ramos (batista) e Marcelo Antonio (da igreja Cristã Maranata).
Só que esse avanço da população evangélica (que deve superar numericamente a de católicos na década de 2030) vem sendo acompanhado de desconhecimento, preconceito e desinformação sobre quem são, o que pensam e por que votam em determinados candidatos.
Para entender melhor sobre essa população cada vez mais importante na política e na sociedade brasileiras, a BBC News Brasil vai responder a algumas perguntas fundamentais sobre os evangélicos.
Primeiramente, é importante entender as diferenças e as semelhanças entre evangélicos, protestantes e outras vertentes do cristianismo.
Em seguida, vamos explorar as origens do protestantismo no século 16 e a inserção dos evangélicos no Brasil até se tornarem uma força política que teve um enorme impacto na eleição de Bolsonaro, em 2018.
Evangélicos, protestantes, crentes…
Para começar, qual é a diferença entre evangélicos, protestantes, pentecostais e neopentecostais?
Em geral, o termo protestante é usado para descrever pessoas que seguem todas as denominações derivadas da Reforma Protestante, movimento ocorrido há mais de 500 anos que deu origem ao principal desdobramento da Igreja Católica desde o cisma entre as igrejas do Ocidente e do Oriente em 1054.
Isso incluiria então todas as igrejas cristãs criadas a partir das ideias de Martinho Lutero, dos luteranos à Igreja Universal do Reino de Deus.
O antropólogo Juliano Spyer resume o protestantismo no livro Povo de Deus da seguinte forma: “O foco da experiência religiosa deve ser o próprio cristão, seu contato particular com Deus mediado pela leitura e interpretação da Bíblia, e pelo trabalho de cumprir a vontade de Deus sendo parte das ações evangelizadoras”.
Teoricamente, não há diferenças entre protestantes e evangélicos, mas segundo Spyer, muitas vezes “evangélico” é usado para se referir ao protestante pobre, enquanto “protestante” é geralmente adotado para se referir a pessoas das camadas médias e alta — alguns deles rejeitam a classificação de “crente” ou mesmo de “evangélico”, preferindo se identificar como cristãos.
Além disso, os protestantes costumam ser divididos em três grupos: os protestantes históricos, os pentecostais e os neopentecostais.
O primeiro trata das principais correntes protestantes que surgiram na Europa no século 16, como os calvinistas, os luteranos e os anglicanos. O segundo e o terceiro são ligados a desdobramentos protestantes no século 20 que defendem uma experiência mais pura e simples do cristianismo, num contato com Deus menos formal e mais emocional.
As origens dos protestantes
A corrente religiosa conhecida no Brasil como evangélica deriva de um movimento que começou oficialmente em 1517.
Naquele ano do século 16, o monge católico e teólogo alemão Martinho Lutero pregou na porta de uma igreja em Wittenberg (Alemanha) suas “95 Teses”.
Seus escritos atacavam, entre outros pontos, abusos e fraudes de lideranças católicas e a venda de “indulgências” (uma espécie de “lugar no paraíso” ou “perdão” dos pecados de quem estava vivo, morto ou na fase intermediária na crença católica, o purgatório).
Para Lutero, as pessoas deveriam ser salvas por meio de sua fé em um contato direto e individual com Deus. E não por meio de perdões concedidos por líderes católicos, de indulgências vendidas ou de intermediários para entender a mensagem de Deus (como a tradição escolástica elaborada pelos teólogos católicos).
Uma das principais medidas práticas de Lutero foi a tradução da Bíblia do latim para o alemão. Isso não apenas permitiu que as pessoas tivessem acesso direto ao texto bíblico em sua própria língua como também quebrou o monopólio das lideranças católicas sobre a interpretação desses escritos sagrados.
As ideias e ações de Lutero se espalharam como pólvora pela Europa. De um lado, ele acabou condenado por heresia e excomungado pela Igreja Católica. De outro, começou a ganhar seguidores que viriam a ser conhecidos como luteranos ou protestantes (nome dado por causa do protesto que fizeram contra a política religiosa do catolicismo).
“Ele [Lutero] não foi a primeira pessoa que se levantou contra o poder papal e contra os poderes imperiais [do Sacro Império Romano Germânico]. Mas, sem dúvida nenhuma, as consequências [de seu movimento] ocorreram de forma nunca antes vistas para a cristandade ocidental, porque daí de fato começa um desenrolar político, econômico e religioso”, explica a historiadora Jaquelini de Souza, professora na Universidade Regional do Cariri e pesquisadora nas Faculdades EST (antiga Escola Superior de Teologia), instituição da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil.
“Nasceu uma nova divisão para a cristandade ocidental, com a necessidade de se trabalharem questões sobre liberdade religiosa, já que Lutero defendia que não era bom — nem são — ir contra a consciência. Questões sobre a ideia de liberdade de expressão, de resistência ao Estado, tudo isso será desdobramento daquilo”, diz Souza.
Esse movimento de separação da Igreja Católica (que começou com o objetivo de questionamento e não de cisão) ficaria conhecido como Reforma Protestante, com três grandes vertentes: luteranismo, anglicanismo e calvinismo.
Esse protestantismo histórico, de forma geral, é centrado numa volta à Bíblia como elemento essencial da fé e da prática religiosa.
O calvinismo tem esse nome por causa do teólogo francês João Calvino, que tinha um foco especial no trabalho.
“Calvino e também o calvinismo [ou seja, as interpretações posteriores da teologia dele] entendem que o trabalho deve ser visto como uma bênção, pois deve ser realizado para glorificar a Deus”, explicou à BBC News Brasil o historiador, filósofo e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Outro ponto que se destaca no calvinismo é a ideia da escolha, da predestinação. “A partir do século 17, o calvinismo passa a ser visto como uma religiosidade que enaltece a predestinação: só os eleitos são salvos. Mas essa é uma marca do calvinismo [ou seja, dos seguidores] e não do próprio Calvino”, explica Moraes.
E isso acabou se tornando muito forte em países como a Inglaterra — com os chamados puritanos — e, em seguida, com os colonos que chegaram aos Estados Unidos imbuídos da ideia de que eram os predestinados ao Novo Mundo. No Brasil, a principal denominação ligada ao calvinismo é a Igreja Presbiteriana do Brasil.
“No meio protestante, os calvinistas são reconhecidos como um grupo religioso muito apegado à Bíblia, à tentativa de fidelidade, ao viver segundo a tradição”, explica Sonia Mota, pastora da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil e diretora executiva da Coordenadoria Ecumênica de Serviço
Mas Mota ressalta que há diferenças ainda mais profundas dentro dessas próprias correntes. “A distância que separa os calvinistas liberais, fundamentalistas e carismáticos é maior do que a distância entre os tradicionais princípios teológicos calvinistas e os de outras denominações protestantes históricas”.
Chegada e expansão do protestantismo no Brasil
Essas e outras correntes protestantes começariam a chegar ao Brasil ainda no século 16, mas só se consolidariam mesmo no século 19.
Muitos fatores favoreceram a chegada delas, como a abertura dos portos brasileiros às nações amigas, em 1808, e a crescente liberdade religiosa para além da Igreja Católica.
O luteranismo e o anglicanismo foram trazidos principalmente por imigrantes alemães e ingleses, respectivamente. O calvinismo, em seguida, se espalhou graças ao trabalho de missionários de correntes como a presbiteriana e a metodista.
O marco fundador do calvinismo no país, por exemplo, é considerado a chegada do pastor americano Ashbel Green Simonton, em 12 de agosto de 1859. Três anos depois, ele fundaria a Igreja Presbiteriana do Brasil, hoje com cerca de 650 mil adeptos. Estima-se que, no total, sejam 1,2 milhão os praticantes do calvinismo no Brasil.
Como dito acima, o protestantismo é dividido em três vertentes: os protestantes históricos (calvinistas, luteranos, anglicanos etc.), os pentecostais e os neopentecostais.
No Brasil, os protestantes históricos incluem as igrejas Luterana, Batista, Presbiteriana, Metodista, Episcopal, entre outras.
O segundo grupo (pentecostal) tem entre seus integrantes Assembleia de Deus, Deus é Amor, Evangelho Quadrangular e Congregação Cristã do Brasil.
O terceiro grupo (neopentecostal), uma subdivisão dos pentecostais, inclui denominações como Renascer em Cristo, Igreja Universal do Reino de Deus, Sara Nossa Terra, Igreja Internacional da Graça de Deus e Igreja Mundial do Poder de Deus.
Segundo estimativa do Datafolha em 2016, a cada 100 evangélicos no Brasil, 34 são da Assembleia de Deus, 17 são de igrejas que não pertencem a nenhuma grande denominação, 11 da Igreja Batista, oito da Universal, seis da Congregação Cristã do Brasil, cinco da Quadrangular, três da Deus é Amor, dois da Adventista e dois da Presbiteriana, entre outros. E a cada 100 evangélicos, 44 são ex-católicos.
Vale lembrar que, no Brasil, a face típica do evangélico é feminina, negra e jovem: 58% são mulheres, 59% são pretos ou pardos e mais de 60% têm entre 14 e 44 anos. Os dados são de uma pesquisa Datafolha de 2020, a mais ampla feita até agora sobre o perfil dos evangélicos brasileiros.
Surgido entre pessoas mais pobres e menos favorecidas no início do século 20 nos EUA, o pentecostalismo é uma forma de cristianismo que também enfatiza a experiência direta da presença de Deus por aquele que crê.
Em linhas gerais, os pentecostais acreditam que a fé precisa ser uma experiência poderosa, e não apenas algo ligado a rituais ou reflexões, e que os crentes são movidos pelo poder de Deus.
Um aspecto pentecostal importante na conversão é o batismo no Espírito Santo, que acredita-se preencher a vida do crente com o Espírito Santo e conceder a ele a força para viver uma vida verdadeiramente cristã.
A maioria dos pentecostais acredita que esse movimento representa um retorno do cristianismo à forma pura e simplificada, como o que era praticado nos primeiros anos da própria Igreja Católica. A forma de orar pentecostal, por exemplo, é menos formal e mais emocional do que a tradição católica.
Esse movimento pentecostal (que não é uma igreja em si, mas várias denominações que discordam em diversos aspectos) chega ao Brasil ainda no início do século 20. Especialistas falam em três ondas de expansão no país.
A primeira onda tem um de seus marcos em 1911, ano em que missionários suecos fundam a Assembleia de Deus no país.
O trabalho deles começa em Belém direcionado aos indígenas, mas décadas depois se volta para o restante da população. Hoje, a Assembleia de Deus é a mais popular denominação pentecostal, reunindo cerca de um terço dos evangélicos.
A segunda onda pentecostal ganha força nos anos 1950 e 1960 por meio de denominações como Brasil para Cristo e Deus é Amor.
A terceira onda, a partir dos anos 1970 estaria mais ligada a um desdobramento do pentecostalismo chamada de neopentecostalismo. Um dos marcos é a fundação da Igreja Universal do Reino de Deus, em 1977.
Não há consenso sobre o que diferencia o neopentecostalismo em relação ao pentecostalismo e nem se de fato há uma unidade entre essas denominações que não seja apenas temporal (ou seja, neopentescostais, por essa classificação, seriam todas as que tenham surgido a partir dos anos 1970).
“O neopentecostalismo transformou as tradicionais concepções pentecostais acerca da conduta e do modo de ser do cristão no mundo. Propagou a ideia de que ser cristão constitui o meio primordial para permanecer liberto do Diabo e obter prosperidade financeira, saúde e triunfo nos empreendimentos terrenos. ‘Ter um encontro com Cristo’ passou a significar gozar de uma vida próspera e feliz, ou a certeza de poder contar com a efetiva intervenção divina em toda circunstância, até para satisfazer ambições materiais”, escreve o sociólogo e professor Ricardo Mariano (USP) em artigo sobre o tema.
Mas, se a história dos protestantes no Brasil começa em meados do século 19 e avança no século 20, por que só no século 21 os evangélicos se tornaram uma potência política e social?
O sociólogo peruano José Luis Pérez Guadalupe aponta no livro Novo ativismo político no Brasil: os evangélicos do século 21 alguns fatores importantes para essa transformação evangélica:
O primeiro foi a percepção, com o amadurecimento das igrejas evangélicas, de que era válido reivindicar um lugar legítimo na sociedade, defender a liberdade religiosa e atuar como cidadãos imbuídos da mensagem cristã.
O segundo foi uma mudança teológica significativa, segundo Guadalupe. Antes, a mentalidade dominante (pré-milenarismo) rejeitava participar de coisas “mundanas”, como a política, porque a vida era vista como uma “sala de espera” da segunda vinda de Jesus Cristo.
“Houve (na época) grande pressão nas comunidades evangélicas para abandonar as coisas mundanas e se dedicar inteiramente à evangelização, uma vez que a segunda vinda do Salvador poderia ocorrer a qualquer momento”, escreve. Era quase como uma “greve social” contra o que chamavam de “mundo”.
Mas, a partir dos anos 1990, o pós-milenarismo começa a ganhar força na América Latina. Essa doutrina afirma que o milênio atual é “tempo de colheita”, ou seja, que os cristãos protestantes deveriam não apenas esperar a segunda vinda de Cristo, mas trabalhar ativamente pelo usufruto da vida e pela restauração do Reino de Deus na Terra.
Um exemplo dessa mudança de uma fuga do mundo para uma conquista do mundo é a Teologia do Reino Presente, pregada por algumas denominações neopentecostais.
“É uma escatologia (doutrina que trata do destino final do homem e do mundo) da vitória, que torna os devotos verdadeiros herdeiros do poder, da autoridade e do direito divino de conquistar as nações em nome de Deus. O Reino de Jesus Cristo não se refere mais a uma promessa de bênçãos futuras, mas ao tempo presente do fiel e de sua igreja”, explica o sociólogo argentino Joaquín Algranti na obra Política e Religião nas Margens: Novas formas de participação social das megaigrejas evangélicas na Argentina.
Especialistas apontam outros três teologias influentes na transformação da atuação política de evangélicos no Brasil: a Teologia da Prosperidade (desfrutar o mundo criado por Deus), a Teologia da Guerra Espiritual (purificar o mundo dos demônios do mal) e a Teologia do Domínio (conquistar o poder e comandar o mundo segundo a palavra de Deus).
Segundo Juliano Spyer, na teologia da prosperidade pregada no neopentecostalismo, por exemplo, “a conversão e adoção da prática religiosa são recompensadas por Deus via ascensão financeira”.
Nessa vertente, o fiel é “estimulado a atuar de maneira empreendedora para enfrentar as adversidades da vida”, e prosperidade não se trata apenas de uma questão financeira, mas de viver melhor.
“A disciplina e o esforço para abraçar valores e ideais cristãos se fortalecem quando a pessoa está menos vulnerável socialmente, tem casa, está empregada, pode estar e tem comida em casa.”
Spyer ressalta que parte do crescimento das igrejas evangélicas se dá justamente porque entrar para uma dessas denominações geralmente melhora as condições de vida dos brasileiros mais pobres e conduz à ascensão socioeconômica. Por quê?
Segundo ele, o conjunto de causas inclui tanto questões religiosas quanto práticas, como o “fim do alcoolismo e consequentemente da violência doméstica (associada ao vício), fortalecimento da autoestima, da disciplina para o trabalho e aumento do investimento familiar em educação e nos cuidados com a saúde”, além de “conforto emocional, dinheiro em momentos de dificuldade, acesso a empregos, consultas com profissionais da saúde, encontros com advogados ou com representantes do poder público e até vagas em clínicas de desintoxicação”.
Spyer menciona também o papel como nova rede de relacionamentos que igrejas pentecostais tiveram para milhares de trabalhadores rurais que migraram do interior do Nordeste para a periferia de grandes centros urbanos e se afastaram de “redes de ajuda mútua dentro dos espaços familiares” em suas terras natais.
Já no caso do protestantismo histórico, o progresso econômico “resulta de um estilo de vida austero” que se relaciona com o mundo por meio do trabalho e da produção de riqueza.
Segundo Spyer, “pentecostais e especialmente protestantes históricos frequentemente rejeitam a ideia de que a conversão possa ser justificada por uma ambição de prosperidade material. Muitos entendem que a melhora de condições pode acontecer como consequência de uma vida mais regrada e pela influência da igreja, por exemplo, na promoção da educação formal”.
Segundo Spyer, o incômodo em relação à teologia da prosperidade, mais ligado a setores médios e altos da sociedade (incluindo os protestantes históricos), “seria uma desaprovação a que o pobre ambicione para si aquilo que faz parte da vida dos brasileiros mais ricos, como viajar de avião, fazer turismo para o exterior e consumir produtos caros”.
O terceiro fator apontado por Guadalupe para a transformação evangélica no Brasil seria ligado à política.
O pano de fundo era uma crise de ideologias e dos partidos políticos tradicionais, cujo auge foi o declínio do comunismo, gerando “vácuos e bolsões de poder que foram deixados sem uma representação política viável na região”.
Assim, a política se mostraria um meio de evangelização das massas e de grupos de influência na sociedade, como políticos, empresários e comunicadores.
Um dos marcos na participação política de evangélicos no Brasil se deu nos anos 1980, simbolizada na mudança do lema dominante “crente não mexe com política” pelo avanço do slogan “irmão vota em irmão”.
Preconceito e atuação no debate público
Por causa desse conjunto de características, o evangélicos costumam ser alvo de preconceito de diversos lados. Em algumas situações, são pejorativamente chamados de fanáticos, hipócritas (por supostamente praticarem o oposto do que pregam), alienados e preconceituosos.
Parte disso acontece porque evangélicos não aceitam a posição passiva de vulneráveis, submissos ou humildes, na visão do antropólogo Juliano Spyer, em seu livro Povo de Deus. “(O evangélico) é acusado de ser manipulado ou de ser avarento por querer ter as mesmas coisas que seus críticos desfrutam: viajar, se vestir bem e ir a restaurante.”
Para além de ataques com ou sem fundamento, o antropólogo e professor Ronaldo Almeida, da Unicamp, identifica quatro eixos na atuação da camada evangélica mais conservadora no debate público.
São eles: a defesa da moral (antiaborto, antieducação sexual em escolas, etc.), o discurso da ordem (redução da maioridade penal, endurecimento das lei penais etc.), a defesa de um Estado menos intervencionista nas relações sociais e econômicas e a demonização de adversários políticos e religiosos (esquerda e religiões fora da tradição judaico-cristã).
Mas a brasilianista e cientista política americana Amy Erica Smith (Iowa State University) lembra, em artigo sobre o tema, que a atuação política de religiosos em direção aos eleitores mais conservadores nos últimos anos não se resumiu aos evangélicos.
Em 2010, por exemplo, o papa Bento 16 instruiu bispos a orientarem os brasileiros católicos que não votassem em candidatos pró-legalização do aborto.
“Católicos e evangélicos se encontram com frequência no mesmo lado de debates ideológicos sobre questões ligadas à sexualidade, ao aborto e aos direitos das mulheres.”
Mas ao longo dos anos, conta Smith, lideranças católicas se tornaram mais cautelosas em se posicionar politicamente, enquanto as evangélicas seguem caminho inverso.
Segundo Smith, em 2014 quase metade dos evangélicos brasileiros ouviram seus pastores falarem sobre campanha eleitoral nas semanas que antecederam o pleito.
Isso não significa, ressalta a pesquisadora, que seja direta e automática a influência de bispos e pastores nos votos dos fiéis. Em geral, o principal efeito é a maior participação política dos eleitores evangélicos, e não o direcionamento deles para votos em rebanho no candidato A ou B.
Há, no entanto, grande influência na pauta legislativa.
“A presença evangélica na crescente direita ideológica só tende a crescer nos próximos anos. Entre os evangélicos brasileiros, a defesa de políticas que promovem posições conservadoras em questões de sexualidade e família parece estar crescendo com fortes ligações à missão teológica”, afirma Smith.
Em quem os evangélicos votam e por quê?
No segundo turno da eleição presidencial de 2018, por exemplo, quase 105 milhões de pessoas foram às urnas.
Dentre eles, estima-se que 31,4 milhões eram evangélicos — 21,7 milhões votaram em Jair Bolsonaro (então PSL) e 9,7 milhões, em Fernando Haddad (PT). Ou seja, quase 70% dos evangélicos votaram em Bolsonaro. Em comparação, entre os católicos Bolsonaro obteve 51% dos votos válidos.
Grande parte das lideranças evangélicas aderiram à campanha de Bolsonaro em 2018, como Edir Macedo, Silas Malafaia (Assembleia de Deus Vitória em Cristo), Valdemiro Santiago e R.R. Soares (Igreja Internacional da Graça de Deus).
“Eu vou votar no Bolsonaro, analisei todos os projetos e o dele é o melhor, principalmente em relação à ideologia de gênero. Estão convencendo que meninos podem ser meninas, e meninas podem ser meninos”, disse à época o missionário R.R. Soares, líder da Igreja Internacional da Graça de Deus.
Mas qual é o peso dos pastores nas escolhas dos fiéis nas urnas? Pesquisas com eleitores apontam que esses líderes influenciam o voto de somente três em cada 10 fiéis evangélicos — a taxa é um pouco maior entre neopentecostais (como as denominações Universal e Renascer), de 31%, do que entre os evangélicos como um todo, de 26%.
“Não é um voto de cabresto. Mesmo quando o pastor é candidato e toda a igreja é mobilizada para votar nele, há casos de derrota fragorosa. Os membros parecem estar obedientes, mas não estão”, disse o sociólogo Paul Freston, que estuda o papel dos evangélicos na política desde os anos 1980, em entrevista à BBC News Brasil sobre o tema.
“Estamos falando de pessoas que são cidadãos comuns, têm sua inserção na sociedade. Elas levam em consideração fatores pessoais, profissionais, de família, de classe.”
Muitos pesquisadores brasileiros investigam o que motiva os votos dos evangélicos, e quão diferentes são esses motivos do restante da população. Como dito antes, é importante ressaltar que os evangélicos não são um grupo uniforme, formado apenas por pessoas com as mesmas posições políticas.
Um exemplo disso é o fato de que o apoio de lideranças neopentecostais populares a Bolsonaro continua forte, mas, segundo pesquisas de intenção de voto, o apoio e a vantagem eleitoral dele entre eleitores deste segmento têm caído em relação a 2018.
O que, então, está por trás do comportamento eleitoral dos eleitores evangélicos? Eles são mais conservadores em média do que outros grupos da sociedade brasileira?
Especialistas apontam que pautas conservadoras têm atraído tanto católicos quanto evangélicos há décadas no país.
Mas, para os pesquisadores Paulo Gracino Junior e Carlos Henrique Souza, parte dos evangélicos brasileiros aproveita esse novo espaço no debate público para expor suas posições, o que fez com que o grupo se tornasse central na onda conservadora recente no país — que culminou na eleição de Jair Bolsonaro,
Segundo Gracino Junior e Souza, a candidatura de Bolsonaro impulsionou e sintetizou discursivamente o conservadorismo a partir de uma articulação em torno da família, educação, moralidade e segurança.
Os pesquisadores lembram que algo equivalente ocorreu durante a ditadura militar (1964-85) com o catolicismo conservador.
O elo e o combustível da nova onda conservadora, segundo os pesquisadores, foi o antipetismo, que conseguiu sintetizar todos esses diversos afetos difusos na sociedade, como a fobia ante as novas identidades de gênero e outras pautas minoritárias, a nostalgia da ordem militar e o ódio contra a corrupção na política.
Em outro trabalho sobre o tema, Gracino Junior (Iuperj), desta vez em conjunto com as cientistas políticas Mayra Goulart (UFRJ) e Paula Frias (Uerj), afirma que o “ressentimento é o afeto que catalisa os vínculos de identificação entre a candidatura de Bolsonaro e seu eleitorado, sobremaneira, o evangélico”.
Há uma perspectiva de abandono por trás desse ressentimento, explicam os pesquisadores, ligada a uma demanda de eleitores órfãos que acabaria casando com a oferta do populismo de direita de Bolsonaro.
Segundo o trio de estudiosos, isso ocorre principalmente com os evangélicos porque nas últimas três décadas eles passaram de grupo ressentido, que se sentia humilhado cultural e socialmente, para uma camada social organizada, heterogênea, mas com forte representação cultural e política.
E agora esse grupo se vê quase que profeticamente uma variação de um dos versículos bíblicos mais populares no meio evangélico pentecostal: “os humilhados serão exaltados”.
Segundo os pesquisadores Ricardo Mariano e Dirceu André Gerardi, em estudo sobre o tema, o antipetismo evangélico começou em 1989 na política brasileira, perdeu força nos governos Lula e Dilma, mas ganhou novo impulso a partir de 2006, a partir das propostas de combate à homofobia e de descriminalização do aborto.
Em 2015, o afastamento desse grupo político chegou ao auge, com 89% da bancada evangélica votando a favor do impeachment de Dilma.
Por outro lado, a cientista política Ana Carolina Evangelista, diretora-executiva do Iser (Instituto de Estudos da Religião), ressalta que a identidade religiosa pesa menos na escolha eleitoral dos evangélicos do que diversas demandas sociais, políticas, econômicas e também religiosas.
Para Evangelista, a chamada “agenda moral” tem servido menos a demandas e propostas de mudanças e mais ao papel antiesquerda de acionar medos e pânicos no eleitorado em eixos como defesa da moral e da família e força e ordem na segurança pública.
José Luis Pérez Guadalupe, por outro lado, afirma que não há um “voto evangélico” único, mas sim “o voto dos evangélicos” plural e pulverizado.
Em 2018, segundo ele, houve uma maior união (e não unanimidade) desses votos por causa da agenda moral (contra o direito ao aborto e pró-família), que se tornou central na atuação político-eleitoral de lideranças e denominações evangélicas.
Uma das evidências de que o voto dos eleitores evangélicos não é baseado apenas em fatores religiosos, segundo Guadalupe, é a sub-representação eleitoral desse segmento religioso na Câmara dos Deputados.
Em 2019, havia 82 representantes evangélicos na Casa, equivalente a 16% dos 513 deputados — aquém da proporção de evangélicos na população brasileira (cerca de 30%).
Mesmo assim, isso não significa que a Frente Parlamentar Evangélica, conhecida como “bancada evangélica”, tenha pouca influência no Congresso. Pelo contrário. Ao se associar a outros grupos de interesse, como a bancada ruralista, por exemplo, ela consegue avançar ou barrar projetos sem precisar ser majoritária na Câmara.
*Com informações adicionais da BBC, de Rafael Barifouse (BBC News Brasil) e de Edison Veiga (colaboração para a BBC News Brasil)
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