- Giulia Granchi
- Da BBC News Brasil em São Paulo
Em 2015, Vitor Ramos, na época estudante de administração, começou a sentir sintomas gripais. “Era só uma garganta inflamada e um mal-estar leve. Quem seria capaz de associar isso com HIV?”, indaga ele, que só recebeu o diagnóstico três anos depois.
Vitor conta que a hipótese demorou muito a passar pela sua cabeça. “Eu achava que nunca tinha me relacionado sexualmente com alguém portador do vírus, porque na minha cabeça essa pessoa seria acamada e estaria muito fraca”, diz.
Dois anos depois do aparecimento dos sinais mais genéricos, em 2017, Vitor teve quadros intensos de diarreia que o fizeram perder cerca de 20 quilos e passar por oito hospitais em busca de um diagnóstico na cidade de Araçariguama, onde morava no interior de São Paulo, e em municípios próximos.
“O gastroenterologista pediu uma colonoscopia que voltou inconclusiva para doença de Crohn [uma doença inflamatória do trato gastrointestinal], a principal suspeita do médico. Mesmo assim, ele decidiu me tratar como se eu tivesse o quadro”, lembra.
“Na ocasião, minha mãe chegou a perguntar: ‘Doutor, não pode ser HIV?’, e ele respondeu que não era ‘comum em homens’. Entendi aquilo como uma suposição equivocada de que eu seria um homem hétero, já que o HIV ainda é muito associado aos homossexuais.”
A infecção pelo vírus, na realidade, pode acontecer com qualquer pessoa, independentemente da sua orientação sexual. O HIV está presente em secreções (fluidos) como sangue, esperma, secreção vaginal e leite materno. Por isso recomenda-se sempre o uso de preservativos no sexo, e que mães soropositivas alimentem seus bebês com fórmula infantil.
Além do diagnóstico incorreto, o médico que atendeu Vitor receitou um medicamento imunossupressor, efetivo para o tratamento de doença de Crohn, mas extremamente nocivo para quem vive com HIV.
“Os medicamentos imunossupressores podem atuar enfraquecendo diferentes partes do sistema imune a depender de qual é o remédio receitado. Considerando um paciente que já estava com imunidade celular baixa, se usar medicação que piora a imunidade, há o risco de deixá-lo muito suscetível às infecções oportunistas, que às vezes somente o HIV não seria suficiente para causar”, aponta o médico infectologista acreano Dyemison Pinheiro, que não acompanhou o caso de Vitor.
“A partir do dia que comecei a tomar o medicamento, a piora foi muita rápida. Eu digo que fui ladeira abaixo, e uma ladeira bem íngreme. Comecei a andar devagar, as diarreias não paravam, eu só ficava em casa porque poderia precisar do banheiro a qualquer momento. Precisei trancar a faculdade”, lembra Vitor.
Com o quadro cada vez mais grave, sua família insistia para que ele procurasse um pronto-socorro. “Eu tentava disfarçar dizendo que estava bem. Mas um dia, minha irmã chegou decidida a me levar. Eu fui até o carro andando, e quando chegamos no hospital, já não sentia minhas pernas. Precisei ser tirado por um segurança e fiquei na cadeira de rodas. Ali, senti que algo estava muito errado.”
Foi neste dia, 8 abril de 2018, que Vitor recebeu o diagnóstico de HIV.
A contagem de das células imunológicas CD4 em seu corpo estava extremamente baixa. Para comparação, o índice em uma pessoa saudável deve ser acima de 500. Quando está abaixo de 350, indica que a pessoa sofre de Aids. A contagem de CD4 de Vitor no momento do diagnóstico era 2.
“Com tratamento, é possível melhorar o número, mas o índice não leva em conta a recuperação imunológica. Algumas pessoas apresentam falhas qualitativas importantes nas células de defesa, e por isso, há pesquisadores que advogam que, uma vez que o número esteve abaixo de 350, a pessoa sempre terá Aids”, explica Pinheiro.
Na primeira semana de internação, Vitor só lembra de flashes. Algo que o marcou foi uma conversa que ouviu dos médicos, que falaram que não tratariam o HIV no primeiro momento, já que haviam outras doenças oportunistas deixando seu corpo fraco.
Além do vírus da Aids, exames constataram neurotoxoplasmose (infecção no sistema nervoso central), sarcoma de Kaposi (câncer que acomete as camadas mais internas dos vasos sanguíneos) e as infecções sexualmente transmissíveis sífilis e HPV.
“Apesar do HIV ser perigoso, ele pode não ser o quadro principal responsável pelo óbito. Pelo excesso de medicações, em um caso com diferentes infecções oportunistas, é preferível focar no que oferece mais risco”, aponta Pinheiro.
Ao todo, Vitor passou quatro meses internado, incluindo dois períodos na unidade de tratamento intensivo (UTI).
“Perdi os movimentos das pernas e dos braços e fiquei dependente dos outros para tudo. Meu corpo doía muito, e em uma das noites comecei a enxergar tudo vermelho. Foi quando me levaram para a UTI pela segunda vez. Lá, fiquei sem visitas, olhando para o teto e sem me mexer. Só ouvindo barulhos de gente morrendo ou aparelhos apitando. Foram dias extremamente difíceis”, lembra.
A primeira alta aconteceu depois de cerca de três meses, mas, após uma semana em casa tomando remédio para uma suposta conjuntivite, Vitor perdeu a visão de um olho.
De volta ao hospital, uma oftalmologista especialista em Aids diagnosticou a presença de citomegalovírus ocular (infecção causa por vírus da família da herpes) e recomendou internação urgente.
“Eu não queria voltar de jeito nenhum, chorei muito, mas fui internado. Também segui fazendo fisioterapia, e, para me ajudar a recuperar os movimentos, minha mãe colocava uma toalha embaixo do prato de comida e me pedia para tentar fazer a refeição sozinho. Eu parecia uma criança sujando tudo, mas, aos poucos, fui conseguindo”, diz.
“Nos meses que passei internado, perdi autonomia, liberdade e privacidade. Meu pai me perguntou: ‘Qual é a primeira coisa que você quer fazer quando sair daqui? Viajar, ir ao shopping…’ E eu respondi que queria tomar um banho em pé, sozinho. Ele ficou surpreso.”
Vitor conta que toda sua família foi muito carinhosa e essencial no período de tratamento. “Se hoje falo abertamente sobre viver com HIV nas redes sociais e incentivo outras pessoas a fazerem o teste, é só porque tive rede de apoio muito forte.”
As sessões de fisioterapia para recuperar os movimentos eram dolorosas. “Quando as enfermeiras entravam, fingia estar dormindo para não ter passar pelos exercícios, que, ao meu ver, não ajudavam em nada. Foi só quando me emocionei ao ver meu polegar do pé se movimentar sutilmente que fiquei mais motivado.”
Da cadeira de rodas, Vitor passou a usar um andador, depois um par de muletas e, por fim, andava com o auxílio de uma bengala – uma evolução que levou um ano.
Quando recebeu alta, o CD4 de Vitor era de 40, um número considerado ainda bastante baixo. Por isso, a condição para voltar para casa foi que ele retornasse ao hospital todos os dias para receber medicamentos na veia.
“Diziam que eu não passaria de 200, que meu caso era muito grave. Foram dias muito difíceis. Os medicamentos tiravam minhas forças.” Nos últimos dois exames feitos, seu CD4 passava de 470.
Apesar de a taxa não representar que ele está curado, mostra uma boa resposta ao tratamento, que Vitor diz que segue à risca até hoje, com medicamentos que obtém no SUS.
Além disso, pouco tempo depois de iniciar o tratamento, Vitor chegou ao estágio de HIV indetectável, ou seja, ele não transmite o vírus sexualmente (mesmo que sem proteção).
De acordo com o infectologista Dyemison Pinheiro, é plenamente possível que, mesmo em quadros graves como foi o de Vitor, nos quais as pessoas têm sua imunidade parcialmente comprometida irreversivelmente, ainda se possa chegar ao nível de HIV indetectável conforme o tratamento avança – um fator não está atrelado ao outro.
Ele pratica exercícios físicos regularmente, na academia ou jogando vôlei com a família, terminou a faculdade e conseguiu um emprego recentemente.
“Por conta do diagnóstico tardio, que levou quase três anos, a Aids me fez perder a visão do olho direito, parte da audição, e me causou sequelas de um certo atraso de movimento na perna esquerda. Mas me sinto ótimo, considero que minha recuperação foi muito boa, e, hoje, vivo bem.”
Nas redes sociais, Vitor incentiva outros homens e mulheres a procurar um teste antes que o vírus avance no organismo. “Se eu pudesse voltar no tempo, esse seria o conselho que eu daria a mim mesmo. Falaria também para pesquisar sobre o vírus e não ser influenciado pelo que qualquer pessoa diz. Há vida depois do diagnóstico”, diz.
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