• Edison Veiga
  • Da Eslovênia para a BBC News Brasil

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Largo de São Francisco será palco da divulgação oficial da Carta aos Brasileiros em Defesa da Democracia

O Largo de São Francisco, em São Paulo, estará no centro das atenções nesta quinta-feira (11/08) com a divulgação oficial da Carta aos Brasileiros em Defesa da Democracia. Mas é preciso ressaltar que não é novidade para a instituição que ali funciona estar em destaque no debate político nacional.

Também se celebram neste ano os 45 anos da Carta aos Brasileiros, célebre documento redigido pelo jurista Goffredo da Silva Telles Júnior (1915-2009) repudiando o regime autoritário da ditadura militar brasileira (1964-1985).

Em texto publicado em seu site oficial, a Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da Universidade de São Paulo, frisa que “não há episódio histórico — desde os tempos da Independência do Brasil — em que não tenha havido a contribuição” de alunos ou egressos da entidade.

A divulgação da carta ocorre em data especial, considerada o Dia do Estudante, justamente por conta da fundação dos primeiros cursos jurídicos em terras brasileiras. Na data de amanhã, serão 195 anos do decreto imperial que criou as duas faculdades de direito pioneiras, a de São Paulo e a de Olinda.

A Faculdade de Direito do Largo de São Francisco foi criada dentro do projeto de independência. “Era um contexto de pensar a nação. Para Dom Pedro e seu ministério, as pessoas envolvidas no governo, havia a questão da importância de se ter uma universidade no Brasil”, explica o pesquisador Paulo Rezzutti, biógrafo de diversos personagens do período imperial brasileiro e autor de, entre outros, Independência: A História Não Contada.

“Uma academia de ciências jurídicas e sociais serviria para que o Brasil não tivesse de mandar mais os seus filhos, os jovens filhos da elite, para estudar fora do país, geralmente em Coimbra (Portugal)”, explica. “Dentro do processo de independência era melhor o próprio Brasil contar com instituições de ensino para formar a elite intelectual, diplomática e política do império.”

“Com a criação dos cursos jurídicos, em 1827, o Brasil passou a ter uma independência intelectual”, define Rezzutti.

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Ditadura: carta aos brasileiros de Goffredo da Silva Telles Júnior foi lida durante o governo do general Ernesto Geisel (foto)

Projeto de independência

“No Brasil colônia a ausência de curso de direito demonstrara uma estratégia de garantia e dominação política e jurídica no território brasileiro, pois durante essa carência jurídica, a justiça era mantida pela ordenações de Portugal no modelo de base legal única e uniformizado. Os magistrados brasileiros eram originários da Faculdade de Coimbra”, contextualiza a advogada e cientista política Elian Pereira de Araujo, professora na Faculdade Presbiteriana Mackenzie Rio.

“Após a independência do Brasil, tornou-se evidente e necessária a criação de Escola de Direito. Os acontecimentos políticos diante das dificuldades da população em lidar com o novo momento de independência, isto é, buscar uma identidade política própria e autonomia social e intelectual, passaram a hostilizar os estudantes de direito que foram buscar formação na Universidade de Coimbra”, complementa ela.

Para a advogada Patricia Peck, formada e pós-graduada no Largo de São Francisco e atualmente professora na Escola Superior de Propaganda e Marketing, a criação dos cursos jurídicos “estava ligada ao processo de consolidação da Independência nacional”, pois havia a necessidade “de um aparato legislativo próprio, diferente da legislação portuguesa e influenciado pelas ideias liberais da época”.

“E foi importante também porque o estudante precisava aprender sobre direito na perspectiva brasileira, adequado ao panorama brasileiro, pois nos cursos jurídicos europeus se aprendia sobre a legislação portuguesa, francesa, inglesa e esse conhecimento ficava, de certa forma, distante. Aquele estudante que se formava fora do país voltava com um conhecimento que não era aplicável ao nosso território”, comenta Peck. “Então, os estudos das leis do Brasil e para o Brasil seriam a base jurídico-legal do Brasil independente.”

A ideia não era exatamente uma novidade. Conforme detalha o pesquisador Rezzutti, há registros em cartas arquivadas na Torre do Tombo, em Portugal, de que Dom João VI pretendia instalar uma universidade em terras brasileiras já em 1809.

O projeto não foi adiante, mas acabou retomado por Dom Pedro quando ainda era príncipe-regente, antes da Independência.

“Em 1821, José Bonifácio, então vice-presidente da Província de São Paulo, escreve apontamentos para que os deputados paulistas criem um curso jurídico em São Paulo”, afirma Rezzutti, citando o fato de que esse grupo de deputados foi debater com Portugal por conta da criação da Constituinte.

Um desses deputados era o escritor e magistrado José Feliciano Fernandes Pinheiro (1774-1847), que anos depois se tornaria o Visconde de São Leopoldo. “Mais tarde, já como ministro da Justiça, ele propôs a lei para Dom Pedro, que acabaria assinando”, relata Rezzutti, em 11 de agosto de 1827.

Crítica ao português falado em SP

Mas o processo não foi simples. Principalmente pela tarefa de convencer a elite política da época que as faculdades seriam instaladas em locais então tão periféricos como São Paulo e Olinda — e não no Rio de Janeiro, sede da corte, ou em Salvador, por exemplo.

Rezzutti explica que a escolha se deu “no contexto do regime marítimo da época”, sendo que as duas localidades funcionariam como polos regionais relativamente acessíveis para boa parte dos habitantes do império.

“Existia um modelo de atendimento regional e também a ideia de desenvolver as regiões”, aponta ele. “São Paulo era considerada uma vila de caipiras, tanto que atas da Câmara e do Senado registraram discussões, com pessoas do Rio criticando o modo de falar do paulista, algo na linha ‘nós vamos mandar nossos jovens para estudar em São Paulo e eles vão voltar sem nem saber mais o português’.”

Isto porque enquanto na corte se falava um português mais parecido com o de Lisboa — e sob uma influência do francês —, em São Paulo havia uma mistura com idiomas indígenas. “Era um falar muito diferente”, comenta o pesquisador. “Então, havia preconceito.”

Em um dos textos da Câmara do Rio, diz-se que “sempre, em todas as nações, se falou melhor o idioma nacional nas cortes”. “Nas províncias há dialetos, com os seus particulares defeitos. É reconhecido que o dialeto de São Paulo é o mais notável. A mocidade do Brasil, fazendo ali os seus estudos, contrairia pronúncia muito desagradável”, afirma o documento.

A favor de São Paulo contudo, ganharam os argumentos da proximidade ao porto de Santos, do clima ameno e do custo de vida barato para a época. Além, é claro, da facilidade de acesso aos moradores “das províncias do sul e do interior de Minas”.

Araujo acrescenta que pesava a favor de São Paulo o fato de que a cidade já se configurava como “um espaço privilegiado da oligarquia agrária e aristocratas do café”

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Faculdade de direito da USP é palco constante de protestos, como nesse ato de 2013 em memória ao massacre do Carandiru

Momentos-chave

Com o passar dos anos, a Faculdade do Largo de São Francisco passou a assumir um protagonismo intelectual no país. No histórico oficial publicado pela instituição, a criação dos cursos jurídicos é colocada como “pilar de estrutura do estado democrático de direito brasileiro” e a faculdade do Largo de São Francisco como “instituição-chave para o desenvolvimento da nação”, pois “se destinava a formar governantes e administradores públicos capazes de estruturar e conduzir o país recém-emancipado”.

“Tais desígnios não demoraram a se realizar e a presença dos bacharéis logo se fez sentir em todos os níveis da vida pública nacional nos quadros do Judiciário, Legislativo e Executivo”, prossegue o texto.

A faculdade lembra que dali “partiram os principais movimentos políticos da história do Brasil, conduzidos por seus estudantes ou egressos”. E cita o abolicionismo, os ideais republicanos e a luta pela redemocratização durante a ditadura militar.

“Sendo uma das primeiras instituições superiores brasileiras, ela formou os primeiros juristas e profissionais graduados do país. Então, pode-se dizer que uma parte considerável dos intelectuais da época passaram pela faculdade e consequentemente, participaram da história do país”, analisa Peck.

Ela lembra da carta de 1977, “publicada em meio ao período militar e de perseguição a estudantes”, do jurista Gofredo Telles Júnior, situando o documento como “uma carta que representava manifestações do empresariado paulista e um manifesto por liberdade e pelo estado de direito”.

E compara ao atual momento, quando “uma iniciativa de também publicar uma carta aberta aos brasileiros, com palavras em defesa da democracia e do sistema eleitoral” também partiu da faculdade, “em um momento conturbado do cenário político nacional e em ano de eleições”.

Imbuídos de ideais democráticos, estudantes e professores do Largo de São Francisco organizaram manifestações de resistência não só ao regime militar de 1964 a 1985, mas também ao governo de Getúlio Vargas no Estado Novo. Também participaram de forma ativa de movimentos como Diretas Já, que pedia a volta da democracia, e os protestos contra Fernando Collor, então presidente, que acabaria renunciando ao fim de um processo de impeachment, em 1992.

“A Faculdade do Largo de São Francisco acabou assumindo um protagonismo político, por se identificar e ser palco na atuação em defesa de direitos individuais, democracia e políticas sociais”, comenta Araujo.

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