• Bruna Alves
  • De São Paulo para a BBC Brasil

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Camila Fabro demorou dois anos para ser diagnosticada corretamente com agnosia e prosopagnosia adquirida

Imagine você enxergar um sapo em vez de um abacate, gatos em vez de sacolas plásticas e pelicanos passeando em alas hospitalares. Essas confusões visuais acontecem com pessoas que sofrem de agnosia visual, que, em resumo, é a perda da capacidade de reconhecer pessoas, objetos ou cores, mesmo enxergando normalmente.

Em maio de 2019, a designer educacional Camila Fabro da Silveira teve um ataque isquêmico transitório (AIT) e em seguida dois Acidentes Vasculares Cerebrais (AVCs): um hemorrágico e outro isquêmico.

Dois anos depois, ela foi diagnosticada com agnosia visual, como sequela dos AVCs. Na época, Camila estava com 34 anos. Ela conta que enquanto ainda estava na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) começou a confundir objetos que tinham alguma similaridade e a ver coisas inexistentes.

“Na UTI, eu vi a bota marrom de uma mulher que estava visitando um paciente ao meu lado e enxerguei uma galinha ciscando. Daí eu comecei a pedir para tirar aquele “bicho” dali. Mas o técnico de enfermagem disse para eu me acalmar, que não havia bicho nenhum e que, provavelmente, eu estava tendo uma reação adversa dos medicamentos. Mas a “galinha” apareceu novamente, e eu gritei apontando para ela. Então, uma das enfermeiras falou no meu ouvido que eu estava apontando para a bota de franjas da visitante”, recorda-se, agora, com bom humor.

A partir daí, as confusões visuais não pararam mais e uma enxurrada de bichos começou a aparecer. “Teve uma vez que o meu pai veio aqui em casa e colocou frutas na geladeira e, entre elas, tinha um abacate. Mas quando abri a geladeira eu vi um sapo, fiquei desesperada e bati nele. Daí ele caiu embaixo da pia e foi um dos maiores pavores da minha vida, porque eu tentei matar o abacate, e depois coloquei ele num saco de lixo chorando de nervoso, porque eu estava vendo um sapo”, conta.

Nesse caso, ela ficou assustada, mas, em outras situações, ela toca e, aos poucos, vai percebendo o que é. “Outra vez eu estava com a minha tia e vi algumas joaninhas grandes na salada, mas eu fui virá-las e percebi que eram tomates cerejas. E também já confundi pera com maçã”, conta.

De todas as coisas, porém, o que a deixa mais confusa e bastante aflita são sacolas plásticas brancas sem nenhum logo. Camila tem dois gatos brancos e enxerga seus animais de estimação por todos os cantos da cidade.

“É até engraçado falar isso, mas eu já vi meus gatos em vários locais, e se a sacola está ‘meio que voando’, daí eu vejo pássaros e outras coisas, menos o que realmente é”, conta, aos risos, pois é com bom humor que decidiu encarar sua condição.

E para Camila, o pior não são as visões, mas sim o julgamento de quem não sabe da sua condição, pois ela já encontrou maneiras de driblar suas dificuldades, como apertar o gato, e, se miar, é porque realmente é ele.

A face das pessoas, ela também não identifica naturalmente, condição chamada de prosopagnosia, um déficit neurológico que deixa o indivíduo com dificuldade para reconhecer especificamente rostos. “Mas eu tento reconhecer pelos detalhes em volta, o movimento do cabelo e pela voz”, comenta.

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Camila Fabro quase foi encaminhada para um tratamento psiquiátrico, quando, na verdade, ela tem agnosia visual e prosopagnosia

Beatriz Baldivia, neuropsicóloga e especialista em reabilitação neuropsicológica, diz que o impacto da prosopagnosia na vida adulta é muito difícil, porque, até então, a pessoa tinha uma vida comum e, do dia para a noite, precisa lidar com mudanças radicais.

Camila conta que costuma ver animais no lugar de objetos de forma aleatória. Ela também chegou a conversar com uma pessoa achando que era o seu amigo, mas na verdade era o irmão dele.

Por fim, o diagnóstico foi possível graças à ajuda de um amigo, que levantou a hipótese de agnosia para o seu neurologista. No ano passado, ela passou com uma neuropsicóloga, realizou vários testes e o diagnóstico de agnosia visual e prosopagnosia foi confirmado.

“Eu fiz tratamento psicológico e quase fui encaminhada para a psiquiatria. Um diagnóstico psíquico anterior dizia que eu não poderia mais nem trabalhar normalmente. Se não fosse meu amigo médico dizer que eu não tinha doença mental, possivelmente, eu não teria mais a minha vida”, desabafa a designer educacional.

Hoje Camila faz tratamento de reabilitação, é colunista de um jornal local e no Instagram (@camiladesmiolada) publica diversos conteúdos sobre os riscos e possíveis sequelas do AVC. “Eu zoo eternamente de tudo”, conclui.

‘A minha infância foi triste, mas a adolescência foi muito pior’

A cientista, bióloga e doutora em ciências pelo Instituto de Ciências Médicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP) Ana Bonassa, de 33 anos, tem prosopagnosia congênita, ou seja, nasceu com essa condição.

Desde criança ela era tachada como uma pessoa muito tímida e não tinha amigos, e durante a adolescência chegou a ser diagnosticada apenas com fobia social.

“Eu fui uma pessoa muito solitária na infância, mas na adolescência eu não ia para festas, ninguém me chamava para nada, eu não fiz nada além de estudar. Foi bem triste, eu pensava que as pessoas não gostavam de mim e talvez não gostavam mesmo, mas se soubessem da minha condição, talvez eu conseguiria explicar isso e seria melhor aceita”, lamenta a cientista, ressaltando a importância do diagnóstico precoce.

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Ana Bonassa sofreu bullying na escola durante anos por não saber que tinha prosopagnosia

Na adolescência, ela lembra que tinha pavor de sair na rua e chegava a tremer e a suar frio porque iria encontrar pessoas. “Às vezes, voltando da escola para casa, eu atravessava a calçada vinte vezes se fosse preciso só porque via pessoas no quarteirão à frente e pensava que não queria passar por elas”, recorda-se.

Hoje, ela pensa que o medo não era exatamente de encontrar aquelas pessoas, mas sim de não reconhecer. “Na adolescência eu sofria bullying, tinha meninas que me batiam. Eu não sabia o que estava encontrando na frente, se eram pessoas que seriam hostis, se iriam me ignorar ou ser legais comigo, então, eu sempre evitava pessoas”, relembra.

A neuropsicóloga afirma que a prosopagnosia do desenvolvimento é muito subnotificada, e isso faz com que a pessoa cresça sabendo que tem alguma coisa de diferente, mas não consegue distinguir exatamente o que é.

“O efeito psicológico disso pode ser a sensação de estranheza em relação aos outros, o distanciamento social, ansiedade. E as pessoas ao redor tentam justificar o comportamento dela dizendo que é metida e arrogante. Por isso, essa pessoa cresce com rótulos que não pertencem a ela, mas sim à sua condição”, explica Baldivia, que também é professora de pós-graduação do Instituto Brasileiro de Neuropsicologia e Ciências Cognitivas (IBNeuro) e do Instituto de Pós-graduação e Graduação do (IPOG).

Anos depois, Ana leu em uma reportagem sobre a prosopagnosia, e a partir daí veio a suspeita. Em 2016, já com 26 anos, ela procurou um médico, fez os testes e confirmou o diagnóstico.

No início, a cientista não sabia como explicar sua condição para as pessoas, e foi apenas depois de criar o canal no Youtube Nunca vi 1 cientista que ela começou a falar a respeito. “Um dia fiz um vídeo no canal, chorei, falei das experiências e das coisas que sinto. Eu fiz esse vídeo tentando ajudar pessoas”, conta.

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Ana Bonassa diz que o seu canal no Youtube é a prova de que ela nunca foi tímida, o problema era a falta de diagnóstico da prosopagnosia

Ela explica que mesmo se for uma pessoa da família bem próxima, dependendo da situação, não a reconhece pelo rosto e usa o contexto e características físicas para facilitar o reconhecimento.

“Se eu vou para a casa da minha mãe e lá eu vejo uma mulher loira e com certa voz, eu vou saber que é minha mãe. Então, todas essas outras informações que os não prosopagnosíacos usam, eu também uso, só que muito mais. Mas se, por acaso, a minha mãe cortar o cabelo e vir para São Paulo sem eu estar esperando, ela pode passar do meu lado na rua que eu não vou reconhecer”, descreve. “Até eu mesma posso não me reconhecer numa foto, se estiver com o cabelo mais escuro, por exemplo”, acrescenta.

Octavio Marques Pontes Neto, neurologista e professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP), alerta que pessoas têm prosopagnosia (na forma congênita) e se adaptaram para reconhecer os outros usando outras características físicas da face ou do corpo, como o som da voz ou o formato do nariz podem mascarar o problema, caso ainda não tenham sido diagnosticadas.

Agnosia visual e a prosopagnosia são condições pouco faladas

A agnosia não é uma doença, mas sim um sintoma que impede as pessoas de reconhecer as coisas através da visão. Ela pode ser identificada através de testes de imagem e da função cerebral. Estima-se que até 3% da população mundial agnosia.

Na maioria das vezes, esse distúrbio é causado por uma lesão no lobo parietal, temporal ou occipital do cérebro. Essas áreas armazenam memórias dos usos e importância dos objetos, visões, sons familiares. Para simplificar: elas são responsáveis pela associação das imagens aos seus respectivos significados.

A agnosia pode ser adquirida como sequela de um AVC, tumores ou lesões cerebrais, abscessos (bolsas de pus) cerebrais e doenças degenerativas, como o Alzheimer, ou congênita. Entre as principais agnosias estão:

  • Agnosia visual: é a incapacidade de reconhecer objetos simples do dia a dia, uma cor, um rosto e por aí vai. Por exemplo, pode ter um talher em cima da mesa e a pessoa enxergar uma caneta, ou vice-versa. Esses pacientes enxergam normalmente, o problema é a dificuldade de identificar o que se vê. Nesses casos, o reconhecimento pode ser feito através de outros sentidos, como o tato.
  • Agnosia auditiva: dificuldade de identificar objetos por meio do som, como um telefone tocando.
  • Agnosia gustativa: sente os sabores, mas não consegue identificá-los.
  • Agnosia olfativa: sente os cheiros, mas não consegue discerni-los.
  • Agnosia tátil: é a incapacidade de reconhecer um objeto pelo toque.

Além disso, em alguns tipos de agnosia, apenas processos específicos de um sentido são afetados. Desses, a prosopagnosia (cegueira facial) é a mais comum.

A marca registrada desse distúrbio específico é o não reconhecimento de rostos. Estudos reforçam que a prosopagnosia é amplamente subdiagnosticada e apontam que cerca de 3% da população sofre com ele.

“A prosopagnosia pode se desenvolver precocemente ainda nos primeiros meses de vida porque, por algum motivo, determinadas áreas do cérebro não se desenvolveram adequadamente”, diz Pontes Neto, neurologista e professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

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Mesmo com suas dificuldades, Ana Bonassa (à esquerda) ingressou na faculdade de biologia aos 18 anos e hoje é mestre e doutora em Ciências pela Universidade de São Paulo

Há duas formas de prosopagnosia. A primeira e mais rara é a forma adquirida, isto é, quando a pessoa tinha a habilidade de reconhecer faces e a perdeu. Esses casos ocorrem quando há alguma lesão cerebral e o sintoma surge como uma sequela. Estudos apontam que o quadro pode melhorar ou não, dependendo da doença de base. Mesmo assim, os médicos não falam em cura, mas sim em reabilitação.

Também existe a prosopagnosia congênita. “Cerca 2,5% da população tem algum grau de prosopagnosia congênita, que é quando a pessoa tem dificuldade para reconhecer faces, mas sabe dizer que vê dois olhos, um nariz e outras partes do rosto. O que ela não sabe é capturar toda a imagem da face e juntar para reconhecer a pessoa”, diz o neurologista e professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

O livro O Homem Que Confundiu Sua Mulher com um Chapéu (título original, em inglês: The Man Who Mistook His Wife for a Hat) é uma boa maneira de entender melhor a prosopagnosia. Ele foi escrito pelo neurologista britânico Oliver Sacks (1933-2015), que descreveu 24 casos clínicos.

Em particular, o estudo do caso de um homem com prosopagnosia que tenta pegar seu chapéu, mas pega a cabeça de sua esposa e tenta colocá-la na cabeça, sem conseguir perceber o que estava fazendo de errado, chama atenção de especialistas do mundo inteiro.

Segundo os especialistas, o diagnóstico de prosopagnosia congênita deve ser feito com cautela, pois as agnosias na infância podem ser confundidas com autismo. “É claro que as duas condições podem acontecer juntas, mas nós devemos diminuir esses equívocos”, pontua Baldivia, neuropsicóloga e especialista em reabilitação neuropsicológica.

Além da prosopagnosia, também há outros tipos de agnosias, como:

  • Agnosia ambiental: não reconhecer locais familiares;
  • Acromatopsia: não reconhecer as cores;
  • Anosognosia: nesses casos, as pessoas insistem que não há nada de errado ou ignoram o problema, mesmo quando um dos lados do seu corpo está paralisado;
  • Simultanagnosia: não consegue ver mais de um objeto, quando na verdade há vários.

Breno Barbosa, professor adjunto de Neurologia do Hospital das Clínicas, vinculado à rede Ebserh, da Universidade Federal de Pernambuco UFPE e Vice-coordenador do Departamento Científico de Neurologia Cognitiva da Academia Brasileira de Neurologia, diz que para uma boa reabilitação, o paciente deve ter acesso a uma equipe multidisciplinar composta, em especial, por neurologista, terapeuta ocupacional e neuropsicólogo.

“O paciente vai precisar fazer as terapias de reabilitação para estimular as áreas do cérebro para que aos poucos consiga reaprender as coisas usando os sentidos que não foram afetados. Às vezes, a casa precisa ser adaptada, o trabalho, o teclado do computador”, conclui Barbosa.

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