- André Biernath – @andre_biernath
- Da BBC News Brasil em Londres
O vírus monkeypox, causador da doença conhecida popularmente como varíola dos macacos, é estudado há décadas e já foi detectado em pelo menos onze países africanos desde os anos 1970. Mas por que ele começou a se espalhar por outras partes do mundo justamente agora?
Até o momento, não existem respostas certeiras para essa pergunta. Mas os cientistas listam ao menos cinco hipóteses que ajudariam a entender porque a doença virou uma emergência de saúde pública internacional.
Entre os fatores levantados por especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, estão o descaso com doenças negligenciadas, o aumento da mobilidade de pessoas com o fim das restrições relacionadas à covid, a falta de imunidade da população contra os vírus dessa família, um padrão de transmissão e uma mistura de todos esses fatores.
‘Sinais eram claros’
A virologista Clarissa Damaso, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), dedicou os últimos 35 anos de carreira a estudar os orthopoxvirus, uma família de agentes infecciosos da qual fazem parte o monkeypox e o causador da varíola humana, entre outros.
Ela também é assessora da Organização Mundial da Saúde (OMS) e integra comitês sobre a pesquisa e as políticas públicas relacionadas a esses agentes infecciosos.
De acordo com a avaliação da cientista, era questão de tempo para que o espalhamento do monkeypox acontecesse.
“Uma hora ou outra uma situação dessas ia estourar. A questão é que não damos atenção aos indícios que vêm dos países menos desenvolvidos”, analisa.
“E os sinais eram claros: o número de casos vinha aumentando pouco a pouco. Primeiro, por meio do contato do ser humano com animais infectados em áreas silvestres. Depois, nas regiões próximas das cidades maiores.”
“Para completar, cada vez mais pessoas vão trabalhar ou passear nas áreas onde esse vírus é endêmico”, completa.
“Vale lembrar que essa doença nunca desapareceu do radar, e já tivemos outros surtos menores, de poucos casos, registrados fora da África em anos recentes”, concorda a infectologista Mirian Dal Ben, do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo.
Todo esse processo significa que o contato das pessoas com o monkeypox foi se tornando cada vez mais comum — até os casos começarem a ser “exportados” para outros continentes com mais frequência e gerarem as cadeias de transmissão observadas nos últimos três meses.
Hora errada
Damaso acrescenta um segundo fator que ajuda a entender a crise sanitária atual: ela se desenrola num momento em que a maioria das restrições relacionadas à pandemia de covid-19 foram completamente abandonadas pelos países.
“O surto de monkeypox acontece na hora errada, num período logo após a crise da covid, em que as pessoas se sentiram mais livres, foram se divertir e se aglomeraram”, contextualiza a virologista.
Pelo que foi divulgado por autoridades no final de maio, a primeira leva de casos de monkeypox parece estar relacionada a festas que ocorreram na Espanha e na Bélgica.
Possivelmente, uma ou várias pessoas que participaram desses eventos estavam infectadas, tiveram contato com muita gente e passaram o vírus adiante.
Isso, por sua vez, criou cadeias de transmissão do patógeno na comunidade que, num cenário de aumento de viagens internacionais e encontros presenciais pós-covid, rapidamente se disseminou por cidades, países e continentes.
Mas isso ainda não responde completamente porque essa doença se espalhou justamente agora — e não em outros momentos do passado, quando deslocamentos, aglomerações e festas também aconteciam.
“Por que o monkeypox demorou tanto para afetar outros lugares? Isso ainda é um mistério para nós”, admite o médico Alexandre Naime Barbosa, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia.
Um vírus modificado?
Uma das primeiras hipóteses que ajudariam a explicar o surto atual seria alguma nova mutação do monkeypox, que o tornaria mais transmissível entre as pessoas, por exemplo.
O cenário, porém, é considerado muito improvável pelos especialistas. Este patógeno possui DNA como código genético, o que significa que ele é muito mais estável e carrega mecanismos internos para reparar erros genômicos — ao contrário do que acontece com o coronavírus, que é constituído de RNA e apresenta mutações numa frequência bem maior.
O sequenciamento genético de amostras colhidas de pacientes nas últimas semanas também ajuda a descartar essa teoria: o vírus em circulação agora não parece apresentar alterações significativas no genoma quando comparado a versões do patógeno analisadas em anos anteriores.
Damaso explica que o subtipo do monkeypox que está atuando em vários países tem uma menor letalidade e, apesar de não ter sofrido grandes mutações no código genético, pode ter adquirido uma espécie de “padrão de passagem”.
Vale lembrar aqui que a principal forma de transmissão acontece por meio do contato direto e prolongado com as feridas características dessa doença — outras possibilidades de infecção são as gotículas de saliva (que podem carregar o vírus) e o compartilhamento de objetos de uso pessoal (como toalhas, roupas de cama, pratos, copos e talheres).
“Até o momento, a maioria dos casos está acontecendo em homens que fazem sexo com outros homens, e eles comumente apresentam lesões na região genital”, descreve.
“O contato com essas feridas costuma ser mais intenso durante a relação sexual. A partir daí, o vírus é transmitido para um outro indivíduo, que também tende a manifestar os sintomas na região genital”, complementa.
Ou seja: o padrão de passagem acontece por conta do contato próximo com as lesões, que no surto atual surgem com mais frequência na região genital. Assim, a pessoa infectada também desenvolve lesões nessa parte do corpo — e pode perpetuar o ciclo ao ter um contato mais íntimo com outros indivíduos.
Mas isso, claro, não descarta a relevância das outras formas de transmissão desse agente infeccioso que vão além da relação sexual, como o compartilhamento de objetos e as gotículas de saliva. Prova disso são os casos recentemente confirmados em crianças.
Proteção desatualizada?
A segunda hipótese que justificaria o espalhamento do monkeypox agora tem a ver com o despreparo das nossas células de defesa para lidar com essa família de vírus.
Isso porque os orthopoxvirus têm uma característica peculiar: se você já teve contato com um deles, fica relativamente bem protegido de ser infectado pelos outros. Trata-se de uma espécie de “imunidade cruzada”.
E é justamente aí que entra a vacinação contra a varíola, uma doença causada pelo smallpox (também um orthopoxvirus) que foi completamente erradicada do planeta.
A aplicação das doses foi suspensa no mundo inteiro a partir do final dos anos 1970 — afinal, esse vírus deixou de circular entre nós e não representava mais uma ameaça.
Alguns estudos revelam que as pessoas que foram vacinadas contra a varíola lá atrás, há mais de 40 anos, possuem alguma proteção contra o monkeypox.
O mesmo não acontece com a faixa etária mais jovem, que não recebeu esse imunizante na infância.
Não à toa, a grande maioria dos casos registrados nas últimas semanas acometeu justamente indivíduos que ainda não alcançaram a quarta década de vida.
Num artigo publicado no periódico Nature, a epidemiologista Raina MacIntyre, da Universidade New South Wales, na Austrália, explica que “a cada ano desde a erradicação do smallpox, a população com pouca ou nenhuma imunidade contra esse grupo de vírus [os orthopoxvirus] só aumentou”.
Pode ser, portanto, que o número de indivíduos vulneráveis a esses agentes infecciosos se tornou suficientemente alto para que um surto de proporções internacionais se tornasse possível.
Ação em cascata
Por fim, não é exagero pensar que todos esses fatores, juntos com uma boa dose de acaso, possam ter contribuído para que o monkeypox se tornasse um problema global.
Ou seja: embora ainda não exista um consenso sobre as causas da emergência de saúde pública, a baixa na imunidade, a volta das aglomerações, o padrão de transmissão e a negligência com o vírus ajudam a entender e montar esse quebra-cabeças complexo.
“Mas ainda precisamos entender melhor tudo o que está acontecendo”, resume Dal Ben.
Se o cenário é considerado nebuloso, existe uma clareza maior sobre o que pode ser feito para diminuir a probabilidade de infecção com esse vírus.
O primeiro passo é evitar as situações de maior risco, ficar atento aos sintomas e buscar a avaliação médica se eles aparecerem.
“Qualquer lesão que comece com um edema ou uma pequena vermelhidão e evolua para uma placa, tenha líquido, forme ferida e crostas, pode ser monkeypox”, descreve Barbosa, que também é professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Essas manifestações podem aparecer no ânus, nos genitais, no rosto e nas mãos.
“A lesão também pode ser acne, herpes, herpes-zóster ou uma série de outras coisas. Mas, na dúvida, é importante procurar atendimento médico e fazer um teste”, complementa.
Caso o exame confirme a presença desse agente infeccioso, os profissionais de saúde recomendam fazer isolamento e evitar o contato próximo com outras pessoas até que as feridas estejam completamente cicatrizadas (mesmo a casquinha delas ainda carrega vírus).
Ao limitar a interação e o compartilhamento de objetos de uso pessoal, o paciente diminui o risco de transmitir o monkeypox adiante e evita a criação de novas cadeias de contágio na comunidade.
Embora o perfil de infectados até agora tenha se concentrado em gays, bissexuais e homens que fazem sexo com outros homens, a tendência é que a doença afete cada vez mais pessoas de outros grupos — isso aliás, é a evolução natural e esperada para esse surto, de acordo com especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.
Ainda falando em prevenção, alguns países como Reino Unido, Espanha e Estados Unidos já iniciaram campanhas de vacinação contra o monkeypox, mas ainda não há previsão de quando as primeiras doses devem chegar ao Brasil.
Por ora, não está claro se a camisinha ajuda a proteger contra esse vírus — embora o uso de preservativos continue a ser primordial para impedir a transmissão de várias infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), como HIV, sífilis, gonorreia e algumas hepatites.
Na maioria dos casos de monkeypox, o quadro evolui bem e o paciente está completamente recuperado em duas a quatro semanas.
Segundo o portal Our World In Data, o mundo já registrou 23,2 mil casos de monkeypox. Desses, 1,3 mil foram diagnosticados no Brasil.
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