• Vitor Tavares
  • Da BBC News Brasil em São Paulo

Crédito, Getty Images

Pense rápido: qual o termo que você usa em português para se referir a quem nasce nos Estados Unidos da América?

Americano? Norte-americano? Estadunidense?

Independentemente de sua resposta, ela está correta, segundo manuais e dicionários de língua portuguesa. Mas a sua escolha pode revelar, de certa forma, como você pensa…

O Dicionário Houaiss, um dos mais conceituados do português, coloca os termos como equivalentes: “americano = relativo aos Estados Unidos da América (United States of America) ou o que é seu natural ou habitante; estadunidense, norte-americano, ianque.”

Já a Fundação Alexandre de Gusmão, ligada ao Ministério das Relações Exteriores do Brasil, diz: “A rigor, ‘americano’ é o gentílico de ‘América’ ou ‘Américas’; ‘norte-americano’, o gentílico de ‘América do Norte’; e ‘estadunidense’, o gentílico de ‘Estados Unidos’. Quando o contexto não permite interpretações dúbias, podem-se usar as formas ‘americano’ ou ‘norte-americano’ com referência aos EUA”.

A professora e consultora de língua portuguesa Thaís Nicoleti também esclarece que o uso de cada um é facultativo — apesar de a disputa sobre ele não ser nova.

“Vale notar que o nome do país é ‘Estados Unidos da América’, assim como o nome completo do Brasil, que já foi ‘Estados Unidos do Brasil’, é ‘República Federativa do Brasil’. ‘Estados Unidos’ ou ‘República Federativa’ dizem respeito ao tipo de país. O nome, de fato, é o que vem depois: América e Brasil.”

Regras e padrões à parte, o uso de “americano” vem sendo frequentemente questionado por leitores de notícias e comentaristas das redes sociais.

Afinal: se existe um continente “América”, como “americano” pode identificar apenas um país? Essa discussão vem desde o surgimento dos EUA como nação.

A origem de “América”, país e continente

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O mapa de Waldseemüller representou o ‘Novo Mundo’ pela primeira vez

O primeiro documento que se tem registro do aparecimento da palavra “América” é um mapa de 1507, do cartógrafo alemão Martin Waldseemüller. A teoria mais aceita é a de que o “batismo” foi uma homenagem ao explorador italiano Amerigo Vespucci (Américo Vespúcio), que primeiro identificou a massa de terra do dito “Novo Mundo” como um continente separado dos outros pelos oceanos.

Já o primeiro registro de “América” como parte do nome do país Estados Unidos é creditado ao rascunho da Declaração de Independência, em 1776. Antes, a região era conhecida como Treze Colônias e, depois, Colônias Unidas — na época, foram esses territórios que se juntaram para formar o novo país, o primeiro independente do continente americano.

O canadense Sean Purdy, professor de História dos Estados Unidos na Universidade de São Paulo (USP), aponta outros nomes propostos na época: Imperial America, Greater Republic e Greater United States.

Segundo o professor, o adjetivo “americano” (como em “música americana”) e o substantivo “americano” (“ele é americano”) já começaram ser usados logo depois da fundação da república, coexistindo com nomes regionais ou estaduais, como Southerner (sulista), New Yorker (nova iorquino) ou de ascendência, como Scottish (escocês) e Irish (irlandês).

“Mas o uso consistente demorou, porque os fundadores sabiam que a nova república não incluiu toda a América. Por décadas, muitos governantes usaram ‘United States’, ‘the Republic’, ‘the Union’ e ‘Columbia’ para o país”, diz Purdy.

Foi somente quando os EUA se tornaram potência, no fim do século 19, com intervenções externas na América Latina, que o termo “América” se tornou de uso comum.

“Presidentes e outros governantes da república raramente se referiam ao país como América até o fim do século 19. Após a Guerra Hispano-Americana, em 1898, contra a Espanha, quando os EUA conquistaram Cuba, Porto Rico e as Filipinas, presidentes como Theodore Roosevelt e todos desde então começaram a usar ‘América’ como seu país. Reflete, portanto, como a linguagem é construída em contextos de poder e relações sociais”, reflete Purdy.

Por que no Brasil adotamos “americano”?

Apesar de os brasileiros utilizarem muito pouco o nome “América” para se referir aos Estados Unidos, “americano” segue sendo o gentílico mais comum no país.

Em outros idiomas, como o espanhol falado na América Latina ou o francês falado no Canadá, o mais utilizado seria o equivalente a “estadunidense”.

“Acredito que isso tem muita a ver com o fato de que falantes da língua espanhola nas Américas têm mais identificação com o termo América e com outros países latino-americanos (especialmente onde falam espanhol) do que os brasileiros. A população brasileira em geral não se identifica tanto com o resto das Américas”, opina Sean Purdy.

A consultora Thaís Nicoleti ressalta que “americano” é escrito assim no Brasil desde as obras dos escritores Machado de Assis e Lima Barreto, “o que atesta ter sido essa uma forma comum no final do século 19 e no início do século 20”. Nas Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, livro escrito na década de 1930, aparecem tanto “americano” como “norte-americano” com o mesmo sentido.

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Defensores do uso de “estadunidense” dizem que América e americanos devem ser empregados para falar apenas de todo o continente

Disputa ideológica?

Uma aversão ao “imperialismo” dos EUA (uma política de expansão e o domínio territorial e cultural) seria o principal motivo do esforço para usar o termo “estadunidense”, segundo os dois especialistas consultados.

“Muitos pesquisadores querem distinguir os EUA do resto das Américas. Isso tem a ver com uma política anti-imperialista em relação aos EUA e também para reforçar as ligações e identidades entre Brasil e outros países latinos das Américas”, diz Sean Purdy, sobre o meio acadêmico.

Já Thaís Nicoletti associa o uso de “estadunidense” ou ainda de “norte-americano” a publicações de esquerda, como uma tentativa de “evitar que um só país, não por acaso a potência imperialista da América, tomasse para si o gentílico de todo o continente”.

Para ela, esse argumento “não parece ter fundamento”, já que o contexto não nos deixaria confundir o “americano” referente ao país com o seu homônimo relativo ao continente”.

“A meu ver, embora possam traduzir um posicionamento político, esses usos, por si sós, têm um efeito quase insignificante enquanto forma de resistência. Teriam de estar atrelados a uma valorização da nossa cultura e da língua portuguesa, que diuturnamente sofrem influência das modas vindas do ‘gigante do Norte'”, opina.

Mas isso pode mudar?

A professora de português explica que “regra”, em língua, é “regularidade”, ou seja, aquilo que se repete com frequência.

No caso dos gentílicos, embora haja alguns sufixos que apareçam com mais frequência (como o -ês de inglês, francês ou senegalês), há grande diversidade de formas.

Nicoleti explica o o caso de “fluminense”, que designava tanto o nascido no Estado do Rio de Janeiro como o nascido na cidade do Rio de Janeiro até o início do século 20. O carioca, que no início tinha um sentido pejorativo, acabou sendo adotado pela população da capital nos anos seguintes.

“Toda essa discussão sobre o uso de qual termo é legítima. Mas a eventual adoção majoritária do termo estadunidense, por exemplo, vai depender se houver mudanças significativas nas relações sociais, relações de poder entre países, identificação mais próxima com outros países latino-americanos. Não vejo isso acontecendo no futuro próximo”, opina o professor Sean Purdy.

“Em língua, nem tudo se reduz ao ‘certo/errado’ — aliás, tudo sempre pode ser aprofundado”, completa Nicoleti.

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