- Leandro Machado
- Da BBC Brasil em São Paulo
O assassinato da atriz Daniella Perez, em dezembro de 1992, causou tanta comoção na sociedade brasileira que até hoje impacta a legislação penal e o sistema carcerário do país. Na época, a repercussão do caso gerou uma enorme mobilização popular liderada pela mãe da artista, a escritora e dramaturga Gloria Perez, que pedia a inclusão do homicídio qualificado no rol de crimes hediondos.
O caso voltou à tona nesta semana por causa da estreia, nesta quinta-feira (21/7), do documentário Pacto Brutal, o assassinato de Daniella Perez, da HBOMax. Na obra, a novelista relembra os impactos da morte da filha, abrindo seus arquivos e autos do processo que levaram às condenações do ator Guilherme de Pádua e de sua então esposa, Paula Thomaz.
As investigações apontaram que a jovem atriz foi morta com 28 punhaladas e sem direito e tempo para se defender — características apontadas como “qualificadoras”. O corpo dela foi encontrado num local descampado no Rio de Janeiro.
Daniella estava no auge da carreira e contracenava com Pádua na novela De Corpo e Alma, da TV Globo, folhetim escrito por Gloria.
Após o crime, a dramaturga recolheu 1,3 milhões de assinaturas em um documento que solicitava a mudança na lei. Dois anos depois, o Congresso aceitou a sugestão e aprovou a inclusão do delito nos crimes considerados hediondos.
A partir dali, condenados por homicídio qualificado podem ter a pena aumentada, além de não estarem mais sujeitos a progressão penal — teriam de cumprir a punição integralmente em regime fechado, por exemplo, embora esse dispositivo também tenha sido alterado anos depois pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
No Direito, essencialmente todos os crimes são considerados graves. E o hediondo seria “gravíssimo” – ou seja, em tese ele requer punições mais severas e a supressão de alguns direitos, como indulto e fiança.
Até hoje, o caso de Daniella Perez é considerado emblemático quando se fala sobre a influência que casos de grande repercussão midiática podem ter no Congresso e no endurecimento das punições.
Em entrevista à BBC News Brasil, Gloria Perez considera a alteração uma conquista da população. “Essa emenda tem a importância também de ter indicado um caminho, de ter alertado a sociedade de que ela pode propor e fazer passar uma lei. Outras vieram depois”, disse.
O advogado Alamiro Velludo Salvador Netto, professor de Direito Penal da USP, explica que a iniciativa abriu espaço para outras alterações.
“Daniella participava de uma novela que, na época, tinha grande repercussão na vida dos brasileiros. O assassinato teve um impacto gigantesco e aumentou uma tendência de uso de ‘crimes famosos’ para alterações na lei penal”, diz.
Mas o caso de Daniella não foi o primeiro a chegar nesse ponto.
A própria criação da Lei de Crimes Hediondos, em 1990, foi influenciada por outro crime famoso: o sequestro do empresário Roberto Medina, criador do Rock in Rio. Em junho daquele ano, ele ficou 16 dias em poder de sequestradores.
A nova lei de 1990 classificou como inafiançáveis os crimes de sequestro, estupro e latrocínio, “negando aos seus autores o direito à liberdade provisória e progressão de regime”.
“Havia uma onda de sequestros no Brasil. Então, os legisladores aprovaram a lei, colocando esse delito como hediondo. Mas curiosamente o homicídio não foi incluído, o que só aconteceria depois do assassinato de Daniella”, lembra Salvador.
Depois, vieram outras tentativas ou mudanças motivadas por alguns episódios de grande apelo midiático.
Em 1998, por exemplo, o caso das “pílulas de farinha” gerou a inclusão da “adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais” no rol de crimes hediondos — a pena mínima são 10 anos de cadeia.
O caso foi resultado da fabricação do anticoncepcional Microvlar pelo Laboratório Schering do Brasil como teste em uma máquina embaladora. Cerca de 600 mil comprimidos de farinha chegaram indevidamente ao mercado. Dezenas de mulheres engravidaram de maneira indesejada.
Hoje, a lei classifica delitos alguns delitos como hediondos, entre eles genocídio, estupro, extorsão qualificada pela morte, e epidemia com resultado morte.
Também é crime hediondo causar “lesão corporal grave seguida de morte contra autoridade ou agente integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública”. Mas não só contra esses servidores, mas também “contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição.”
‘Legislação de emergência’
O professor Alamiro Velludo Salvador Netto, da USP, explica que a transformação de um crime em hediondo é conhecida como “legislação penal de emergência”.
“Essas mudanças surgem como uma resposta do legislador a anseios e demandas da sociedade quando um determinado caso gera muita comoção”, diz.
Para especialistas em Direito Penal, há vários problemas nesse movimento.
Um deles é de que não há evidências científicas de que o endurecimento da punição realmente diminua a prática do delito.
Por exemplo, em 2006, o Brasil aumentou as penas para o tráfico de drogas, um ato equiparado a hediondo pela legislação. Porém, não existem dados que apontem que menos pessoas cometem esse crime hoje no país.
A avaliação de especialistas ouvidos pela BBC News Brasil é que ocorreu outro efeito: a mudança acelerou o tamanho da população carcerária (hoje mais de 900 mil pessoas), aumentando substancialmente a participação de condenações por tráfico no sistema carcerário brasileiro.
“Penas mais duras geram mais repressão e mais presos, e não menos crimes”, diz Salvador Netto.
“Ninguém desiste de cometer um crime porque aumentou a repressão estatal, a pessoa não faz essa conta. Essas mudanças, baseadas em sensacionalismo e repercussão midiática, prometem mas não são capazes de entregar esse resultado”, diz o advogado Hugo Leonardo, presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD).
Para ele, legisladores e políticos “se aproveitam da dor de familiares” para fomentar a repressão e a criminalização, além de retirar direitos consolidados, como a fiança e a progressão de pena.
“Não se trata de deslegitimar a mobilização de um familiar que foi vitimado pela violência, porque isso deve ser respeitado. O problema é que essa demanda das famílias é sequestrada para promover mudanças ilegítimas e irracionais que aumentam a repressão”, diz.
Já Maíra Zapater, professora de Direito Penal da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), diz acreditar que o acréscimo de itens na lista de hediondos, além de outras mudanças na lei motivadas por casos famosos, geram uma “falsa sensação de que o poder público está fazendo alguma coisa para combater a criminalidade”.
“Não é feito um diagnóstico sobre quais problemas e conflitos sociais estamos tratando. Funciona mais como uma medida simbólica, sem a verificação de quais serão os efeitos da alteração na lei”, diz.
‘Legislação do pânico’
Para além dos hediondos, outros crimes de grande repercussão fomentaram propostas de mudanças na lei.
A própria Câmara dos Deputados chamou projetos como esses de “legislação do pânico” no relatório da CPI que investigou problemas no sistema carcerário brasileiro, em 2009.
“Esse festival de proposições legislativas decorre, quase sempre, de momentos de crise de segurança pública, e, via de regra, por pressão social face a violências, principalmente diante de fatos pontuais de grande repercussão na mídia nacional.”
Segundo o documento, “a legislação do pânico sobrecarrega a justiça criminal brasileira, carente de estrutura humana, material e de tecnologia, e abarrota os estabelecimentos penais, na sua esmagadora maioria de presos pobres”.
Por causa de problemas como esse, a própria Lei dos Crimes Hediondos sofreu modificações no STF.
A corte considerou alguns pontos da lei como inconstitucionais, como a obrigação do cumprimento de toda a pena em regime fechado.
“Enquanto perdurou seus efeitos, as consequências no sistema carcerário foi enorme, aumentando a superlotação e os custos com a manutenção de presos que poderiam estar em liberdade”, escreveu a CPI da Câmara.
No ano passado, o caso Lázaro — homem acusado de matar quatro pessoas de uma mesma família em Ceilândia (DF) — quase mobilizou uma mudança na lei que iria afetar a vida de milhares de detentos.
Poucos dias depois dos assassinatos, a Câmara aprovou a urgência de um projeto de lei (PL) que tornaria obrigatório o exame criminológico para autorizar saídas temporárias de presos e a progressão de pena aos regimes aberto e semiaberto.
Isso porque, antes dos homicídios, Lázaro progrediu para o semiaberto depois de ter cumprido dois quintos de uma pena anterior. Na época, partidos de esquerda e de direita votaram a favor da urgência do PL, mas ele nunca foi aprovado em Plenário.
Para especialistas e entidades de direitos humanos, a proposta criaria uma série de entraves burocráticos que iriam dificultar o acesso de milhares de presos a um direito deles, a progressão de pena.
“A legislação de pânico usa uma história isolada como parâmetro para todas as outras pessoas. É chamado populismo penal. O problema é que esse caso é individual, tem características próprias e não pode ser usado como um modelo para todos os outros”, diz Hugo Leonardo, do IDDD.
Outro crime gerou uma série de propostas de mudanças na lei — dessa vez, em relação à maioridade penal.
A discussão renasceu depois de 9 em abril de 2013, quando o estudante universitário Victor Hugo Deppman, de 19 anos, foi assassinado na frente de casa por um adolescente que roubou seu celular. O homicídio foi gravado por câmeras de segurança e exibido pela imprensa. Faltavam três dias para o infrator completar 18 anos, idade a partir da qual ele seria julgado como adulto.
Nos meses seguintes, várias propostas legislativas para reduzir a maioridade penal foram apresentadas por parlamentares e governadores, embora nenhuma tenha sido aprovada até agora.
Apesar disso, esse tema ainda faz parte de discursos de inúmeros políticos que usam a segurança pública como plataforma eleitoral.
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