• Marcia Carmo
  • De Buenos Aires para a BBC News Brasil

Crédito, HBOMax/ Divulgação

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Gloria Perez diz que leis brasileiras são benevolentes com criminosos mais violentos

Há quase trinta anos, em dezembro de 1992, o assassinato da atriz Daniella Perez, de 22 anos, causou uma comoção nacional. Daniella estava no auge da carreira e contracenava com o ator Guilherme de Pádua na novela ‘De Corpo e Alma’, da TV Globo, quando foi morta por ele e por sua então esposa, Paula Thomaz. As investigações apontaram que a jovem atriz foi morta com 28 punhaladas e sem direito e tempo para se defender. O corpo dela foi encontrado num local descampado no Rio de Janeiro.

A escritora Glória Perez, mãe de Daniella e autora da novela, abriu seus arquivos e autos do processo para o documentário ‘Pacto Brutal, o assassinato de Daniella Perez’, da HBOMax, que estreia nesta quinta-feira (21/7).

Em entrevista à BBC News Brasil, a novelista diz: “Quanto mais violentos são os crimes, mais benevolentes são as nossas leis penais”.

Em sua opinião, a revolta contra crimes violentos, incluindo casos como o do anestesista que estuprou uma mulher durante o parto, é da sociedade e não do Legislativo, responsável por fazer leis que a Justiça aplica.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista concedida por e-mail à BBC News Brasil:

BBC News Brasil – No documentário ‘Pacto Brutal, o assassinato de Daniella Perez’, a Sra. diz que sempre quis contar esta história. Como foi revisitar detalhadamente o crime da sua filha e tanto tempo depois? Qual é seu sentimento?

Glória Perez – É uma dor, um vazio que sempre estará ali, não importa quanto tempo passe.

BBC News Brasil – A Sra. reuniu documentos que só serão revelados no documentário? O que eles dizem além do que ficou conhecido? No documentário, a Sra. diz que só existe uma verdade e várias versões. Qual seria a maior verdade?

Glória Perez – O documentário tem como foco os autos do processo. É isso que ele traz de novo. O que ficou conhecido são as muitas versões sensacionalistas com que os assassinos alimentaram a imprensa durante os anos de espera para o julgamento. É através dos autos que você pode entender porque nenhuma dessas versões restou de pé e por que os dois — Guilherme de Pádua e Paula Peixoto — foram condenados por homicídio duplamente qualificado, com motivo torpe e recurso que impossibilitou a defesa da vítima.

BBC News Brasil – No documentário, a Sra. diz que ‘tudo parecia lindo’, ‘uma estrada linda, aberta’, ‘com coisas boas no horizonte’, naquele momento da vida de vocês (a sua e da ‘Dany’, como a Sra. a chama), mas que, ‘de repente tudo explodiu, foi sugado’. Como é lidar com o fato de os assassinos estarem livres?

Glória Perez – Dói muito para quem perdeu filhos em assassinatos brutais se confrontar com a realidade do quanto a vida humana é barata entre nós. Os dois assassinos, mesmo condenados por homicídio duplamente qualificado, ficaram presos pouquíssimo tempo, cercados de todas as mordomias que o dinheiro compra. E estão aí, nas redes sociais, exibindo sua impunidade.

BBC News Brasil – A lei Maria da Penha, as leis atuais no Brasil que envolvem os direitos e defesa das mulheres são suficientes? No portal da Daniella Perez, a Sra. escreveu que a então liberdade de Guilherme de Pádua, 48 horas depois do crime, revelou, na sua visão, que ‘matar não dava cadeia’. A situação mudou desde então ou a legislação segue insuficiente diante da brutalidade?

Glória Perez – Não era a minha visão: estava na lei. O homicídio qualificado não tinha sido incluído na lista dos crimes considerados hediondos, aqueles em que a pena era mais dura e se exigia mais tempo de cumprimento antes de qualquer benefício. O que a emenda popular que nós conquistamos fez foi introduzir o homicídio qualificado nessa lei dos crimes hediondos, que já não tem o rigor daquela época e a cada dia se torna mais branda.

BBC News Brasil – A Sra. diz que a lei mudou, mas continua branda para a atualidade? Nova emenda popular seria necessária? A que a Sra. fez na época teve 1 milhão de assinaturas e apoio de líderes religiosos.

Glória Perez – 1.300.000. Essa emenda tem a importância também de ter indicado um caminho, de ter alertado a sociedade de que ela pode propor e fazer passar uma lei. Outras vieram depois.

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“O documentário tem como foco os autos do processo”, diz Glória Perez

BBC News Brasil – Quando Daniella morreu, não se usava a palavra feminicídio. Como foi a luta dela por Justiça na época?

Glória Perez – O assassinato de Daniella não se enquadra no que chamamos hoje de feminicídio, foi um crime por ganância pelo sucesso, praticado por um casal de psicopatas de modo absolutamente ritualístico.

BBC News Brasil – Ainda hoje o feminicídio tem estatísticas epidêmicas e o noticiário está cheio de casos de violência contra a mulher, como o caso do anestesista estuprador durante o parto. A Sra. acha que o Brasil tem aprendido alguma coisa com crimes trágicos como o da Daniela?

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Daniella Perez foi morta com 28 punhaladas e não teve chance de defesa, segundo investigações

Glória Perez – Quanto mais violentos são os crimes, mais benevolentes são as nossas leis penais. Na matemática da justiça brasileira, a pena aplicada aos réus, por mais alta que seja, é só para impressionar. Na prática, ela se dissolve em quase nada. A revolta é da sociedade, como você está vendo no caso do médico. Não do Legislativo, responsável por fazer as leis que a justiça aplica.

BBC News Brasil – A Sra. chegou a ter contato com os assassinos da Daniella nestes anos quase 30 anos?

Glória Perez – Nunca, Deus me poupou de encontrá-los e só espero que continue poupando.

BBC News Brasil – Guilherme de Pádua hoje é pastor de uma igreja evangélica em Minas Gerais. E a Paula Thomaz, que era esposa dele na época, mudou de nome. Qual é sua visão sobre estes fatos?

Glória Perez – Sim, estão vivendo e exibindo a boa vida nas redes sociais. Nenhum indício de culpa ou de remorso. Não impressiona: psicopatas não têm mesmo culpa nem remorso. O que me impressiona é que ainda exista, nesse momento em que se busca uma revisão crítica de comportamentos, que ainda exista quem dê palco a esses egos e lastime, que a exposição do processo que os condenou tire a história desse crime do terreno ficcional das versões.

Essa foi a razão que me levou a abrir meu arquivo para Tatiana Issa/Guto Barra e a HBOMax: a proposta de contar essa história fugindo de todo e qualquer apelo sensacionalista. A maneira sensacionalista com que o caso foi explorado durante o processo está lá, registrada. O que cabe agora é mostrar a verdade dos fatos, o porquê de todas essas versões não terem se sustentado. Os dois assassinos foram condenados a pena que, naquela época, equivalia à pena máxima: 19 anos e meses.

Havia, então, um recurso que já não temos mais: o protesto por novo júri. Apesar de o Código Penal estabelecer 30 anos como a pena máxima, se a pena chegasse a 20 anos o réu tinha direito a ser julgado de novo. Por isso, mesmo quando os crimes mereciam os 30, os juízes se detinham em 19 anos e alguns meses. Foi o que aconteceu no caso dos dois psicopatas que mataram Dany.

BBC News Brasil – A Sra tem alguma esperança de que este caso seja reaberto?

Glória Perez – O caso está encerrado, já foi julgado e transitado em julgado. Não há mais nada a acrescentar nem a polemizar.

BBC News Brasil – Como a Sra. imagina que a Daniella veria o Brasil hoje? Quando ela foi assassinada, em 1992, tinha 22 anos e o Brasil engatinhava como democracia, após 21 anos de ditadura.

Glória Perez – Durante esses 30 anos, eu me pergunto como ela veria, como viveria cada coisa que acontece no mundo, como seriam seus filhos, que viagens ela teria feito, que livros teria lido… que músicas estaria dançando…

BBC News Brasil – O Brasil realiza eleições presidenciais neste ano. A campanha já tem registrado fatos violentos, como o que ocorreu em Foz de Iguaçu, na semana passada, quando um seguidor de Bolsonaro matou um petista numa festa familiar. A situação atual do Brasil a preocupa?

Glória Perez – A agressividade explícita nas redes sociais preocupa e entristece todos nós.

BBC News Brasil – Como a Sra. fez para continuar sendo produtiva, escrevendo novelas, e defendendo mudanças na legislação brasileira, apesar da dor?

Glória Perez – Foi uma questão de sobrevivência. Janete Clair e Manoel Carlos perderam filhos também durante uma novela e conseguiram sobreviver da mesma maneira: se agarrando ao trabalho.

BBC News Brasil – Pelo que li, a sua nova novela ‘Travessia’, que estreia depois de ‘Pantanal’, abordará a questão da tecnologia na atualidade. As redes sociais como protagonistas?

Glória Perez – Não só as redes. Mais uma vez falo do impacto dos avanços tecnológicos sobre a vida cotidiana.

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