- Alejandro Millán Valencia
- BBC News Mundo
Como o corpo de um desaparecido se transforma dentro de um rio da Colômbia?
Há alguns anos, a microbiologista colombiana Luz Adriana Pérez e a antropóloga forense Ana Carolina Guatame fizeram essa pergunta durante um projeto de pesquisa envolvendo vítimas do conflito armado em território colombiano.
E o questionamento surgiu a partir dos depoimentos que coletavam: dezenas deles apontavam os grupos paramilitares como os principais responsáveis pela violência — os corpos sem vida eram jogados nos rios para evitar que fossem encontrados.
De fato, um comandante paramilitar, Ever Veloza, mais conhecido como HH, disse certa vez: “Se eles tirassem a água do rio Magdalena, encontrariam o maior cemitério do país”.
Até agora, as autoridades colombianas informaram que mais de mil corpos de pessoas consideradas vítimas do conflito que afetou o país por mais de 50 anos foram resgatados dos rios colombianos.
“Mas pelas histórias que ouvimos e segundo os dados oficiais, esse número é muito maior”, diz a microbiologista Pérez, que trabalha para a fundação Equitas, à BBC News Mundo (serviço de notícias em espanhol da BBC).
Então, ela e Guatame começaram a se fazer perguntas: como você procura um corpo em um rio? Como você pode fazer essa busca com uma grande quantidade de água em movimento?
“Nosso primeiro esforço ao trabalhar nessas questões é tentar dar respostas a quem procura informações sobre seus entes queridos”, diz Pérez.
“E descobrimos que, devido à complexidade da busca nos rios e lagoas, não havia um modelo semelhante ao que havia sido feito na busca de pessoas desaparecidas embaixo da terra.”
E assim nasceu o projeto de criar o primeiro modelo matemático capaz de encontrar os corpos dos desaparecidos nos cursos d’água da Colômbia.
O modelo
No entanto, assim que as duas cientistas começaram a planejar o projeto, perceberam que precisavam formar uma equipe multidisciplinar, incluindo de matemáticos e mecânicos de fluidos a antropólogos forenses e até arqueólogos subaquáticos.
“Só com nossas especialidades científicas sabíamos que não conseguiríamos cobrir tudo o que tínhamos como objetivo. Precisávamos de mais pesquisadores de outras ciências.”
Um dos principais desafios foi medir a água: seu movimento na natureza, mas também aquelas dinâmicas que a afetam e estão relacionadas a eventos sociais e humanos, como um conflito armado.
Ou seja, um campo de pesquisa totalmente novo.
Assim, decidiram se juntar ao o Instituto de Águas da Universidade Javeriana, na Colômbia, liderado pelo engenheiro e especialista em hidrodinâmica ambiental Jorge Escobar.
“Nunca tínhamos trabalhado com isso, mas fomos movidos pela responsabilidade social de fazer algo com nossa capacidade de ajudar a responder a essas perguntas”, diz Escobar à BBC News Mundo.
“A primeira coisa que tivemos que encontrar foi um rio onde, além de ter relatos de corpos que foram jogados ali, também tinha as condições mínimas de segurança para poder realizar nossas investigações”, explica.
Depois de vários meses, o rio escolhido foi La Miel. Esse afluente do Magdalena, localizado no departamento (Estado) de Caldas, cerca de 500 quilômetros a oeste de Bogotá, tinha a particularidade de estar em uma área de conflito entre os municípios de Norcasia e Samaná.
“Mas também, por fazer parte do afluente de uma represa, nos permitia de alguma forma ter uma corrente controlada por vários meses do ano”, explica Escobar.
Tanto a equipe liderada por Pérez e Guatame quanto a de Escobar passaram vários meses nas margens do rio, dentro de suas águas e até embaixo delas.
“O principal foi fazer uma caracterização do rio”, explica.
Os rios são geralmente compostos por três acidentes hidráulicos: redemoinhos, jatos (as quedas d’água que podem ser pequenas ou grandes) e remansos (onde a corrente do rio é mais calma).
Caracterizar o rio, explica, é ver onde se localiza cada uma desses acidentes.
Depois, com esses pontos bem identificados e com a ajuda de fotos de satélite, passaram a medir o que acontecia com um corpo ao percorrer o curso d’água e se deparar com esses acidentes.
“Usamos um ‘dummy’ (manequim ou boneco) que batizamos de Emilio. E medimos tanto o movimento da água nesses pontos como o movimento do ‘dummy’ para poder estabelecer várias conclusões”, destaca Pérez.
Todas essas medições e a posterior análise desses dados duraram cerca de dois anos, incluindo o período da pandemia de covid-19, e deixaram um modelo feito a partir da matemática pelo qual o rio e seu “comportamento” podem ser recriados.
O estudo mostrou pontos de interesse onde poderiam estar os corpos ou restos mortais dos desaparecidos. Esses locais receberam o nome de unidades geomorfológicas de interesse forense, ou UGIF.
“Mas, acima de tudo, isso nos dá certos padrões que podem ser aplicados a qualquer corpo d’água na Colômbia onde for realizado esse tipo de busca”, assinala Escobar.
Arqueologia subaquática
No entanto, foi fundamental considerar um detalhe: o corpo humano, ao contrário do manequim, nem sempre flutua.
“Ao ter o UGIF com as medições feitas no rio, tivemos que incorporar os dados subaquáticos nesse modelo: o que acontece com o corpo quando ele afunda e, mais importante, quando se decompõe”, observa Pérez.
Para isso, os membros da equipe fizeram duas coisas: primeiro chamaram o arqueólogo Carlos del Cairo, especialista em exploração submarina, e depois colocaram o corpo de um porco em vários pontos do rio para ver o efeito da água no processo de decomposição de tecidos orgânicos.
Para Del Cairo, que havia trabalhado na descoberta de vários naufrágios coloniais na costa caribenha colombiana, o trabalho no rio trouxe várias exigências diferentes.
“Você passa de um trabalho em uma superfície de pesquisa de centenas de metros quadrados com boa visibilidade para um rio com visibilidade mínima em algumas partes”, explica Del Cairo.
No entanto, o que representou um desafio maior foi encontrar padrões para rastrear elementos como ossos ou restos de roupas como cintos ou tiras, pedaços de calças ou camisas.
“Tivemos que adaptar nossos equipamentos de medição em superfícies subaquáticas para encontrar objetos um pouco mais incomuns. Não é o mesmo que procurar jarros ou restos de barcos”, explica.
Todos os dados obtidos — entre a exploração realizada por Del Cairo e os resultados da decomposição do animal — conseguiram completar a fase inicial do projeto, que já havia avançado com a caracterização do rio.
“Esses dados primeiro nos permitiram ter maior certeza sobre os possíveis locais de interesse para a nossa pesquisa, mas também ajudaram a consolidar os padrões para ter um modelo de previsão para a busca por restos humanos na água”, disse Puerta.
Assim, a equipe selecionou vários pontos no leito do rio La Miel.
“Com esses pontos, esperamos realizar uma busca real pelos corpos dos desaparecidos no La Miel nos próximos meses, para concluir o desenho do modelo matemático”, explica Pérez.
Essa pesquisa, apontam os cientistas, destaca a relevância que a água tem no país.
“Cerca da metade da área territorial da Colômbia é água: mar, rios, lagos. Portanto, se vamos nos esforçar para buscar a verdade sobre o que aconteceu no país, é fundamental apoiarmos esses processos científicos para dar respostas que possivelmente estão no curso dos rios da Colômbia”, explica Escobar.
“A Colômbia foi construída a partir de seus rios”, conclui Del Cairo. “Por isso não podemos fugir da responsabilidade de procurar maneiras que ajudem a reconstruir o que aconteceu no país.”
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