- Paula Adamo Idoeta
- Da BBC News Brasil em Londres
Quando o pequeno Damien morreu, poucos dias antes de completar dois anos de idade, nenhum médico foi capaz de dar uma explicação concreta para sua mãe, a australiana Carmel Harrington.
Ela própria saiu em busca de respostas e hoje, 30 anos depois, é co-responsável por uma das mais recentes descobertas nesse campo.
A jornada de Harrington começou três décadas atrás, quando o bebê Damien foi colocado para dormir, “feliz e saudável”, mas não acordou no dia seguinte. Era um caso de Síndrome da Morte Súbita do Lactente — SMSL (ou SIDS, na sigla em inglês).
É assim que são classificadas as mortes inexplicáveis — geralmente durante o sono — de bebês que não aparentam ter nenhum problema de saúde. O porquê disso ainda não é plenamente compreendido, mas acredita-se que os bebês possam ter dificuldade em regular seus batimentos cardíacos, respiração e temperatura corporal.
Esse tipo de morte, até hoje misterioso para a medicina, é considerado rara, sobretudo na idade de Damien (acomete bebês menores de um ano; por isso, o caso de Damien atualmente se enquadraria como morte súbita inexplicável na primeira infância, uma variação da SMSL).
No Brasil, o banco de dados DataSUS contabilizou 155 casos de SMSL em 2020.
Na ausência de uma causa compreensível para a morte do bebê, muitos pais enfrentam, além do luto, uma carga adicional de culpa, explica Carmel Harrington.
“Você culpa a si mesma, porque a criança estava sob seus cuidados. (…) Você fica se perguntando: o que eu deixei passar? Você espera a autópsia, e ela não te diz nada, e você segue se perguntando: o que eu deixei passar?”, diz a australiana em entrevista à BBC News Brasil.
“Eu fui de médico em médico, fazendo milhões de perguntas. E, 30 anos atrás, eles sabiam muito menos do que eu sei hoje. Eles praticamente me davam um tapinha na cabeça e diziam ‘volte para casa, tenha mais bebês, foi uma tragédia’.”
Harrington, que tem outros dois filhos, diz que tentou seguir adiante. Mas um segundo caso de SMSL mudou totalmente o curso da sua vida.
Harrington visitava uma professora de sua filha, que havia dado à luz poucas semanas antes, e notou que a bebê dormia de barriga para baixo — o que não é recomendado por médicos (veja ao final do texto mais recomendações de como evitar a morte súbita infantil).
“Eu queria ter dito que bebês não devem ficar de barriga para baixo, mas não consegui, porque todas as pessoas estavam curtindo aquele momento da bebê — e se eu falasse algo, cortaria a diversão do grupo. Pensei ‘não seja ridícula, nada vai acontecer com ela’. Mas ela morreu na noite seguinte.”
Harrington ainda se emociona, décadas depois, ao recordar. “E eu me senti responsável por não ter falado nada. Mas foi nesse dia que eu fui ao trabalho e pedi demissão.”
A partir daí, entender a morte súbita infantil virou parte da profissão de Harrington.
A pesquisa sobre a morte súbita infantil
Na época, a australiana trabalhava com advocacia, mas sua formação original era na área de bioquímica. E foi para essa área que ela decidiu retornar em busca de respostas científicas.
Acabou entrando em contato com um pesquisador da Universidade de Sydney e passou a pesquisar a morte súbita infantil sob o Hospital Pediátrico da faculdade. “O pesquisador me aceitou, mas disse: ‘não é algo que vai durar 12 meses, isto vai dominar a sua vida. Você vai ter que fazer um PhD’.”
Por conta de sua formação original, Harrington acabou focando suas pesquisas nas funções bioquímicas do sistema de despertar do corpo infantil, em busca de respostas a respeito de por que alguns bebês parecem ter mais dificuldade de acordar — o que pode estar ligado à morte súbita na infância.
“E o que encontrei em alguns dos bebês era um verdadeiro déficit de (capacidade de) despertar”, explica Harrington.
Medindo a BChE em gotas de sangue coletadas ao nascimento de 722 bebês, a equipe de pesquisadoras percebeu que as crianças que posteriormente tiveram a síndrome da morte súbita haviam apresentado níveis muito baixos dessa enzima, em comparação com os demais bebês pesquisados.
“A enzima tem um papel importante no caminho neural de despertar do cérebro, e os pesquisadores acreditam que essa deficiência provavelmente indica um déficit (da capacidade) de despertar, que reduz a habilidade do bebê em responder ao ambiente externo”, explica em comunicado a rede de Hospitais Pediátricos de Sydney.
O estudo argumenta, então, que o nível da BChE talvez seja o primeiro marcador bioquímico ligado à SMSL — ou seja, uma característica bioquímica do corpo que talvez ajude a identificar bebês mais vulneráveis à morte súbita.
De modo geral, diz Carmel Harrington, bebês saudáveis têm habilidades para lidar com situações que coloquem sua vida em perigo, como dificuldades de respirar durante o sono: eles são capazes de se virar, acordar, chorar.
Mas as suas pesquisas sugerem que, na ausência de níveis adequados da enzima BChE, alguns bebês podem não desenvolver essa mesma “habilidade de acordar” diante de uma ameaça — o que pode levar à síndrome da morte súbita.
Harrington destaca que isso, por enquanto, é apenas uma hipótese, que terá de ser validada por mais pesquisas de maior alcance. Outros cientistas também observaram limitações no estudo australiano, desde a ampla idade dos bebês analisados até o quanto os níveis de BChE permitem, de fato, traçar um risco claro de SMSL.
Comentando a descoberta australiana à agência Reuters, o médico Richard Goldstein, professor-associado de Pediatria na Universidade de Harvard (EUA) e também pesquisador da morte súbita infantil, opinou que mesmo que se confirme o papel da enzima BChE, essa não deverá ser uma explicação definitiva: ele acredita que a síndrome provavelmente tem várias causas biológicas diferentes.
Ainda faltam, portanto, muitos passos — e muitos anos de pesquisa — até que se entenda plenamente o que causa a síndrome e como preveni-la.
“Não se trata de uma cura nem de uma causa para a SMSL, mas sim de um marcador biométrico em crianças vivas – é o começo de uma jornada”, argumenta Harrington à BBC News Brasil.
“Já sabíamos quais são os fatores que deixam as crianças mais vulneráveis, mas não tínhamos nenhuma forma de distinguir objetivamente (os bebês sob maior risco). Tendo um marcador bioquímico, podemos destrinchar mais e descobrir o que pode estar dando errado. E talvez desenvolver algum tipo de teste ou intervenção. (…) Pode ser que um baixo nível de BChE seja consequência de algum outro problema. Precisamos entender os motivos. No momento são apenas ideias.”
Como prevenir a morte súbita infantil
Apesar de tantas lacunas, a ciência já foi capaz de identificar muitos fatores de risco e formas de prevenção à síndrome.
Algumas das principais recomendações em vigor são:
– Sempre colocar o bebê para dormir de barriga para cima
– Manter a cabeça do bebê sempre descoberta; cobertores devem ficar abaixo da linha do ombro
– Deixar seu berço livre de qualquer objeto (como bicho de pelúcia ou almofada) que possa obstruir seus movimentos e sua respiração
– Deixar o bebê dormir (no berço ou em moisés) no mesmo quarto dos pais nos primeiros seis meses
– Evitar dormir com o bebê em sofás ou poltronas
– Em contrapartida, amamentar reduz os riscos de SMSL: bebês que mamam no peito parecem ter mais facilidade em acordar, além de receberem mais anticorpos no leite materno, segundo pesquisas.
O risco de SMSL é maior entre bebês que nasceram prematuros ou com baixo peso, e entre bebês cujos pais fumam (um dos motivos aparentes é que os resíduos da fumaça podem bloquear as vias respiratórias e aumentar sua vulnerabilidade a infecções). Pesquisas mostram também uma incidência maior de SMSL entre bebês que dormem na cama dos pais.
Harrington acha que as descobertas recentes reforçam o valor das medidas de prevenção.
“Quero enfatizar que, agora que achamos que existe um problema no despertar dos bebês (sob risco de SMSL), é importante seguir as orientações de sono seguro, amamentar os bebês e mantê-los em um ambiente livre de fumaça”, diz ela. “Já sabemos que isso reduz as chances da síndrome, a partir de estudos populacionais muito bons.”
Para pais que perderam bebês por causa da síndrome da morte súbita, as descobertas trazem alento, ela prossegue.
“Recebo muitos e-mails de pais e logo começo a chorar — eles sentem um grande alívio de que não foi culpa deles”, diz.
Ao mesmo tempo, sua pesquisa é uma forma de preservar a memória do filho.
“Damien está comigo nessa jornada. Ele não está aqui, como estão meus outros dois filhos, mas ele é uma parte tão grande da minha vida. E pelo meu trabalho conheci muitos outros pais que fizeram coisas incríveis nesse campo depois de perderem seus filhos, e pelo mesmo motivo: ‘precisávamos tê-los conosco, e isso os manteve vivos’. Isso dá significado a uma morte idiota e sem sentido.”
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