- Nathalia Passarinho – @npassarinho
- Da BBC News Brasil em Londres
O guarda municipal Marcelo Aloizio de Arruda, morto por um bolsonarista, disse numa palestra dois meses antes de morrer que agentes de segurança de esquerda, não alinhados ao presidente Jair Bolsonaro (PL), como ele próprio, seriam “as primeiras vítimas” de uma escalada da violência política no país.
O relato é do advogado e professor de Direito Fábio Aristimunho Vargas, que sentou ao lado de Arruda num seminário para jovens sobre combate à violência, em Foz do Iguaçu (Paraná), no dia 14 de maio. Os dois palestraram no evento intitulado “Oficina da Juventude Contra a Violência” e, para Vargas, a fala de do guarda municipal parecia um prenúncio do que estava por vir.
Pouco menos de dois meses depois, Arruda seria assassinado a tiros pelo policial penal federal Jorge José da Rocha Guaranho, que invadiu a festa de aniversário de Arruda, no sábado (9) aos gritos de “Aqui é Bolsonaro” e começou a disparar. O tema da festa do guarda municipal era o PT e a candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Arruda, que também estava armado, revidou depois de ser atingido e, antes de morrer, baleou Guaranho, que foi encaminhado para o hospital em estado grave.
Fábio Vargas disse à BBC News Brasil que o guarda municipal, que era petista, dizia se sentir “visado” por ser um agente de segurança de esquerda.
“O que ele falou nesse próprio evento é que policiais de esquerda como ele é que seriam as primeiras vítimas numa eventual escalada autoritária no país. Eles seriam os primeiros a cair, segundo ele explicou no seminário, para evitar que repassassem conhecimento estratégico a uma resistência democrática”, contou.
“Ou seja, esses agentes de segurança de esquerda seriam os primeiros visados em qualquer tentativa de ruptura democrática que se instaurasse no país. E, lamentavelmente, foi ele o primeiro a tombar. Foi ele a primeira vítima desse vaticínio que ele mesmo fez, lamentavelmente.”
Tratados como ‘inimigos’
Vargas diz que Arruda era atuante em debates sobre segurança pública, moradia e assistência social em Foz do Iguaçu, além de ser conhecido por ter sido candidato a vice-prefeito pelo PT.
Segundo o advogado, o guarda municipal manifestava publicamente preocupação que a narrativa de Bolsonaro de classificar a esquerda e o PT “como inimigos” pudesse se reverter em violência, principalmente contra policiais que discordam da visão do governo.
“Ele sabia que, como policial de esquerda, estaria mais visado com esse comportamento de tratar o outro como inimigo, esse direito penal do inimigo que o Bolsonaro vem tentando implantar no país, criminalizando a postura de esquerda, invocando uso de armas e incentivando a sua militância a ser aguerrida”, disse Vargas à BBC News Brasil.
“O Marcelo se sentia visado. Nesse evento mesmo ele já tinha feito esse alerta dessa posição em que ele e outros companheiros se encontravam, de serem mais visados.”
‘Primeiros a matar e morrer’
Especialista no estudo da relação entre violência e política, o professor Gabriel Feltran, da Universidade Federal de São Carlos (UFScar), concorda com a avaliação feita por Arruda antes de morrer.
Para Feltran, que também estuda a politização das polícias, agentes de segurança são mais propensos a cometer violência política e, também, sofrer agressões se não estiveram “alinhados” com a ideologia dominante do resto da corporação.
“Onde a gente vê com mais clareza a consolidação de uma ideia de que vivemos numa sociedade em guerra é nas polícias militares. E essa ideia de guerra de uma parcela de uma população contra outra vai se expandindo como ideologia militarista pelas outras forças de segurança, como polícias civis, guardas municipais, polícias penais”, explica o sociólogo, que também é autor do livro “Irmãos: uma história do PCC”.
O crime que resultou na morte de Arruda envolveu dois agentes de segurança armados: um guarda municipal e um agente penal federal. Tempos atrás essas duas funções não previam porte de arma, mas houve, segundo Feltran, uma “militarização” das diferentes carreiras de segurança no país nos últimos anos, principalmente no governo Bolsonaro.
“Acho que os policiais são os mais propensos a cometer os crimes de ódio na medida em que eles são, pelas suas instituições e pela sociabilidade policial, instilados ao ódio. A ideia de uma polícia cidadã passa muito longe do que a gente tem hoje no Brasil”, disse à BBC News Brasil.
“Qual é a diferença entre uma polícia cidadã e uma polícia guerreira? A polícia cidadã considera que a gente vive numa democracia em que há 220 milhões de cidadãos. E esses cidadãos têm que ser protegidos pelos policiais. Nós passamos muito longe disso. O que a gente tem no Brasil é uma lógica de que existem trabalhadores e bandidos. Existem cidadãos e bandidos.”
Expansão da noção de ‘bandido’
Para Feltran, a mesma lógica difundida entre camadas conservadoras do Brasil de que “bandido bom é bandido morto” está se expandindo, por meio de discursos de ódio, para a política, com a defesa de que um grupo considerado corrupto ou “bandido” seja extirpado.
“O perfil de 75% a 85% dos nossos homicídios no Brasil é homem, jovem, negro, favelado. Para esses, constrói-se a lógica antidemocrática de que se pode matar à vontade, porque seriam bandidos. Eles não teriam direito algum, não fariam parte da cidadania. Agora, essa fronteira (de exclusão) está se alargando para grupos que não apoiam o projeto de nação de Bolsonaro”, diz.
Feltran cita como exemplos de episódios violentos recentes o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL), na cidade do Rio de Janeiro, e a execução do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Philips por pescadores ilegais na Amazônia. Também aponta para a crescente violência em operações policiais, como no Jacarezinho, em 2021, e na Vila Cruzeiro, neste ano, consideradas as duas mais letais da história do Estado do Rio de Janeiro.
“Não precisa de muita sofisticação para a gente ver as conexões entre esses eventos. Eu não trataria esse evento (do assassinato de Marcelo Arruda) como um algo isolado. Como um episódio de um maluco que decidiu ir lá e dar um tiro numa outra pessoa que ele não conhecia. Não se trata disso, ao contrário. Para mim, a gente tem que encadear os eventos de violência que vêm acontecendo no Brasil, no quadro social, no quadro político, no quadro econômico.”
Para o sociólogo, o assassinato do guarda municipal petista não é mais um reflexo da retórica de violência na política que, segundo ele, começou a ganhar força a partir de 2013 e se intensificou no governo Bolsonaro.
“Esse é um crime de violência política muito clássico, marcado por ódio, porque os dois homens não se conheciam. Uma grande maioria dos homicídios no Brasil acontecem entre pessoas que se conhecem e que vão acumulando conflitos ao longo do tempo, até que estoura. Nesse caso não, trata-se de um crime de ódio”, diz.
“O policial penal soube que havia uma festa de um petista. Ele vai lá e ele fala: ‘eu vou matar todo mundo’. Porque ele imagina na cabeça dele que o petismo é um câncer da sociedade, que tem que ser extirpado, uma ideia alimentada no governo Bolsonaro.”
Já Bolsonaro rebateu afirmações de que suas declarações produzem atos concretos de violência dizendo: “Falar que não são esses e muitos outros atos violentos, mas frases descontextualizadas que incentivam a violência é atentar contra a inteligência das pessoas. Nem a pior, nem a mais mal utilizada força de expressão será mais grave do que fatos concretos e recorrentes”.
Ele ainda acusou a esquerda de ser violenta e resgatou o episódio em que foi alvo de uma facada na campanha de 2018. Segundo as investigações policiais, o autor da facada, Adélio Bispo, que havia sido filiado no passado ao PSOL, uma legenda de esquerda, tem transtornos mentais e agiu sozinho. Também na eleição passada, a caravana da pré-campanha de Lula foi recebida com tiros no Paraná, mas ninguém se feriu. E, na última sexta-feira (8/7), um homem jogou um artefato explosivo com fezes e urina no meio de um comício do ex-presidente, no Rio de Janeiro.
Pelo Twitter, Lula prestou solidariedade às famílias de Arruda e de Guaranho, além de argumentar que o bolsonarista agiu “estimulado por um presidente irresponsável”. “Também peço compreensão e solidariedade com os familiares de José da Rocha Guaranho, que perderam um pai e um marido para um discurso de ódio estimulado por um presidente irresponsável”, disse.
Bolsonaro também se manifestou sobre o caso nas redes sociais, mas não lamentou a morte do guarda municipal nem apresentou condolências à família de Arruda. “Dispensamos qualquer tipo de apoio de quem pratica violência contra opositores. A esse tipo de gente, peço que por coerência mude de lado e apoie a esquerda”, escreveu ao republicar uma mensagem de 2018 no Twitter.
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