- Edison Veiga
- De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
Há exatos 50 anos, em 11 de julho de 1972, morria uma pioneira: a professora potiguar que entrou para a história como a primeira eleitora mulher registrada a votar no país. Mas não foi só pela participação nas urnas que Celina Guimarães Viana (1890-1972) demonstrava ser uma cidadã à frente do seu tempo.
“Ela exerceu protagonismo ativista em seu trabalho, sendo uma professora que, naquele início de século, praticava uma educação progressista”, comenta a socióloga e cientista política Mayra Goulart, professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Além disso, ela atuou como juíza de futebol entre 1917 e 1919 — muito possivelmente, foi a primeira mulher brasileira a apitar jogos, embora não haja registro oficial.
A luta pelo voto
O protagonismo de Viana no que tange à participação feminina no processo político brasileiro não pode ser elencado como um fator isolado. “Não foi uma conquista individual, mas resultado de estratégia, articulação política e avanço do movimento feminista no país”, avalia a socióloga e cientista política Joyce Martins, professora na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), coordenadora do Observatório Abrapel (da Associação Brasileira de Pesquisadores Eleitorais) e autora do livro ‘O novo jogo eleitoral brasileiro’.
“O contato deste [movimento] com congressistas do Rio Grande do Norte foi fundamental para que Celina e outras mulheres potiguares pudessem se alistar”, acrescenta ela. “Isso porque, naquela época, os estados tinham autonomia em matéria de legislação eleitoral e não havia nada na Constituição do país que efetivamente proibisse as mulheres de votar.”
Em 25 de outubro de 1927, entrou em vigor uma nova legislação no Rio Grande do Norte para regular o serviço eleitoral. As novas normas estabeleciam o fim da “distinção de sexo”. No mês seguinte, Viana, que vivia na cidade de Mossoró, deu entrada em seu pedido de alistamento eleitoral.
Segundo pesquisas realizadas pelo escritor e advogado potiguar João Batista Cascudo Rodrigues (1934-2009), o despacho, assinado pelo juiz de direito Israel Ferreira Nunes, afirmou que “tendo a requerente satisfeito as exigências da lei para ser eleitora, mando que inclua-se na lista de eleitores”. O documento, escrito a mão, com caneta tinteiro em folha pautada, acabou incluído no acervo do Museu Histórico Lauro da Escóssia, em Mossoró.
O despacho foi assinado no dia seguinte ao pedido feito pela professora, conforme informações publicadas no Dicionário Mulheres do Brasil, de Schuma Schumaher e Erico Vital Brazil. “Antes, muitas, muitas, mulheres em várias partes do país haviam pedido alistamento e receberam negativas”, conta a historiadora Teresa Cristina de Novaes Marques, professora da Universidade de Brasília (UnB) e autora do livro ‘O voto feminino no Brasil’.
“O debate sobre o voto feminino vinha aumentando desde os trabalhos constituintes, que ocorreram em 1880 e 1881 e deram origem a uma reforma significativa no sistema eleitoral brasileiro, instituindo o título de eleitor, o voto direito para vários cargos, proibindo o voto dos analfabetos e garantindo que todo brasileiro com título científico pudesse votar, sem mencionar sexo”, contextualiza Martins.
Goulart ressalta que é preciso situar esse direito concedido a ela dentro do “bojo do movimento sufragista que ocorria no Rio Grande do Norte”. Era um ativismo que ecoava o trabalho realizado pela bióloga, educadora e feminista Bertha Lutz (1894-1976).
“Bertha Lutz capitaneava essa luta em um momento em que vinha sendo regulamentado anteprojeto da Constituição de 1932 [que tornaria o sufrágio feminino um direito em todo o país]”, pontua Goulart.
Tal movimento ganhou a adesão de alguns homens, entre eles o advogado, jornalista e político Juvenal Lamartine de Faria (1874-1956), que ocupou postos de deputador, senador e governador do Rio Grande do Norte.
“Ele fez parte dessa articulação. Foi um tipo de feminismo que se articulava com lideranças masculinas. E Lamartine já se encantava com a ideia do voto feminino”, comenta Goulart.
Quando o congresso estadual do Rio Grande do Norte preparava uma nova lei eleitoral, em 1927, Lamartine de Faria mandou um telegrama solicitando que ficasse claro que ambos os sexos teriam direito ao voto. E por isso ali o voto feminino se tornou possível antes do que no restante do país.
“Justino Lamartine era um político do Rio Grande do Norte que somava vários mandatos como deputado federal quando foi contatado pelas feministas da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino”, explica Novaes Marques. “Em 1927, ele deixou o mandato de senador e concorreu ao governo do seu estado, com sucesso. Negociou com o judiciário local promover o alistamento das mulheres potiguares que preenchessem os requisitos legais aplicáveis aos homens. Isso representava uma manobra para esticar os limites do federalismo em vigor”.
E a primeira votação a contar com essa participação feminina foi justamente a “eleição complementar para a vaga de senador deixada por Juvenal Lamartine”, conta a historiadora, sobre a lacuna havida quando o político se tornou governador.
“Mas o pessoal não desistia, né?”, comenta ela. “[Logo em seguida] a comissão de verificação do Senado que tinha a competência para averiguar o resultado eleitoral decidiu anular os votos das mulheres do Rio Grande do Norte.”
“Sempre que as mulheres avançam, minimamente, em direção ao alcance da cidade, ainda hoje conquistada de modo incompleto, há reação”, argumenta Martins. “O voto de Celina, e das suas conterrâneas que votaram pela primeira vez na mesma eleição, foi considerado ‘inapurável’. Qual a diferença mais notável entre aquele tempo e o atual? Os direitos políticos das mulheres se tornaram incontornáveis. No Brasil, questionam-se as cotas ou a reserva de financiamento do fundo partidário, mas já não há condições políticas ou sociais para a defesa do impedimento ao voto ou à candidatura de mulheres.”
Para o sociólogo e cientista político Paulo Ramirez, professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), o ato de Celina Guimarães Viana precisa ser compreendido como algo que “abriu brechas” em uma “sociedade de cunho patriarcal, com valores machistas”, como a brasileira.
“[A partir de então], outras mulheres se inscreveram para passar a votar. Muitas, apoiadas por advogados, começaram a reivindicar o direito de votar. Antes de 1932 [quando houve a nova Constituição], chegou-se a um ponto em que vários juízes de vários estados decretaram a impossibilidade de as mulheres votaram. Essa situação seria revertida com a Constituição e a universalidade do voto, independentemente do gênero”.
Goulart ressalta que se o título de eleitor de Viana abriu um precedente, é preciso entendê-lo dentro de “um processo de luta de movimentos sociais que estavam buscando o voto feminino”. “O voto dela não é um voto isolado, que instaura o processo. É resultado de um processo”, afirma a professora.
Pioneirismos não eram novidade na vida de Celina Guimarães Viana. Nascida em Natal, mudou-se para Acari, em 1912 e, dois anos mais tarde, para Mossoró, na companhia do marido, o também professor Elyseu de Oliveira Viana — ambos se conheceram na Escola Normal de Natal.
Em Mossoró, assumiu a educação infantil no grupo escolar. Segundo a socióloga Mayra Goulart, em suas aulas Viana aboliu uma prática comum na época: os castigos físicos para punir alunos. “E incorporou o teatro como forma de exercer a docência”, afirma. “É interessante que ela tenha sido protagonista não só na dimensão eleitoral e política, mas tenha trazido isso na dimensão da sociedade, na escola, ou seja, na instituição fulcral para o avanço de um ideário progressista.”
Por sua profissão, ela “tinha um grande status na época”, ressalta Martins. Ramirez lembra que tanto ela quanto seu marido eram “ativos no processo educacional”.
“Ela viveu em uma cidade de muita luta política e caráter emancipatório”, contextualiza o sociólogo. “Como professora e leitora de jornais, ela era consciente. Não necessariamente liderou um movimento feminista, mas, claro, acabou servindo de inspiração para os movimentos feministas na busca de ampliação de direitos políticos.”
“Seu nome inspira o feminismo até hoje em termos de ampliação da participação da mulher na luta política. Como pioneira, ela se tornou um modelo de tudo aquilo que as mulheres ainda têm para adquirir politicamente no país”, conclui Ramirez.
O futebol também se tornou um elemento trazido por ela para a sala de aula. Com seus estudantes, ela encarregou-se de traduzir as regras do esporte importado da Inglaterra, inclusive procurando sinônimos em português para nomes das posições de de lances do esporte.
Em um tempo em que era comum que personalidades de respeito na sociedade fossem chamadas para atuar como árbitros em partidas, foi nessa época que ela se tornou, muito provavelmente, a primeira mulher a apitar jogos de futebol no Brasil, entre 1917 e 1919.
“Ela foi pioneira por trabalhar no espaço público, por dedicar-se ao conhecimento, por defender o voto das mulheres, por ter sido também juíza de futebol”, acrescenta Martins. “Ela foi influenciada pelo movimento feminista daquela época, por Bertha Lutz, pela Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. Mas é complicado dizer que se tornou ‘uma ativista feminista’ quando olhamos o termo com os olhos de hoje. O feminismo naquela época tinha outras preocupações. Lutava pelo mínimo: para que as mulheres fossem consideradas gente, para que fossem percebidas como sujeitos de direito.”
Já assistiu aos nossos novos vídeos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!
Você precisa fazer login para comentar.