- Alejandra Martins
- BBC News Mundo
Em novembro de 2021, um piloto da Força Aérea Real britânica decolou em pequeno avião no sul da Inglaterra para fazer história.
Seu curto trajeto estabeleceu um novo recorde para o livro Guinness: o de primeiro voo já realizado apenas com combustível sintético.
O combustível era da empresa britânica Zero Petroleum, uma das várias companhias que estão apostando no desenvolvimento dos combustíveis sintéticos, também chamados de eCombustíveis.
Essas empresas estão desenvolvendo iniciativas em diversos lugares do mundo — desde Bilbao, na Espanha, até o deserto de Nevada, nos Estados Unidos, e o sul do Chile.
O interesse pelos combustíveis sintéticos aumenta em momentos como este, em que a busca por alternativas para os combustíveis tradicionais é mais urgente do que nunca.
Para que o aquecimento do planeta não supere 1,5°C sobre as temperaturas da era pré-industrial, é preciso que as emissões de dióxido de carbono (CO2) liberadas pela queima de combustíveis fósseis sejam reduzidas em 45% até o ano 2030, segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas (IPCC, na sigla em inglês).
O secretário-geral da ONU, Antônio Guterres, advertiu este ano em diversas mensagens que “estamos caminhando rapidamente para um desastre climático”.
Mas Guterres também destacou que a transição para energias renováveis “oferecerá esperança para milhões de pessoas” prejudicadas pelas mudanças climáticas.
Os combustíveis sintéticos podem ser parte da solução? A BBC News Mundo — o serviço em espanhol da BBC — pesquisou o que são os combustíveis sintéticos, até que ponto eles são realmente verdes e se representam uma resposta viável para o aquecimento global.
O que são os combustíveis sintéticos?
Quimicamente, os combustíveis sintéticos e os de origem fóssil são iguais. Ambos são hidrocarbonetos.
“Os hidrocarbonetos são moléculas formadas por hidrogênio e carbono”, segundo Carlos Calvo Ambel, especialista em transporte e energia da ONG Transport and Environment, com sede em Bruxelas, na Bélgica.
“Normalmente, o que se faz é extrair o petróleo da terra, refiná-lo e gerar produtos diferentes, como a gasolina, o diesel e o querosene”, segundo Calvo Ambel. Mas, no caso do combustível sintético, o hidrogênio e o carbono necessários provêm de outras fontes.
O hidrogênio, por exemplo, é obtido separando-se os componentes da molécula de água — hidrogênio e oxigênio — em um processo que utiliza eletricidade, chamado eletrólise. “Você separa essa molécula de água em hidrogênio e oxigênio e fica com o hidrogênio”, explica Calvo Ambel.
Já o carbono necessário pode ser obtido de diversas fontes. “Você pode recolher da chaminé de uma fábrica que está descartando CO2 ou capturá-lo diretamente do ar”, acrescenta ele. “E você também divide esse CO2 em carbono e oxigênio e fica com o carbono.”
Posteriormente, em outro processo industrial, é possível unir o hidrogênio e o carbono, sintetizando-os uma cadeia de hidrocarboneto. “Desta forma, você gera artificialmente uma molécula que é exatamente igual à do diesel, da gasolina ou do querosene tradicional”, ensina o especialista.
Os combustíveis sintéticos são verdes?
Para que os combustíveis sintéticos sejam sustentáveis, “é fundamental que todo o processo seja feito com eletricidade renovável”, segundo Calvo Ambel. “Se não se utilizar eletricidade renovável, o processo não é limpo.”
Da mesma forma que no caso dos combustíveis tradicionais, quando os combustíveis sintéticos são queimados, eles liberam CO2 na atmosfera — um dos principais gases do efeito estufa, que causa as mudanças climáticas.
Por isso, para poder realmente falar em um processo sustentável, o carbono deve ser proveniente de CO2 capturado do ar, segundo Calvo Ambel.
“Se você capturar o CO2 da atmosfera e, ao queimar o combustível sintético, volta a descarregá-lo na atmosfera, o valor é neutro – não há contaminação adicional”, explica ele.
No caso do pequeno avião que estabeleceu um recorde para o livro Guinness, o combustível foi produzido usando apenas energia renovável, segundo Nilay Shah, professor de Engenharia do Imperial College de Londres e um dos fundadores da Zero Petroleum.
Qual a extensão da produção atual?
A quantidade de combustíveis sintéticos produzida atualmente “é reduzida”, segundo Calvo Ambel, mas esse processo pode ser acelerado.
Além da Zero Petroleum, a lista de empresas que trabalham no desenvolvimento de combustíveis sintéticos inclui, por exemplo, a Fulcrum BioEnergy, uma empresa americana que está construindo uma refinaria no Estado de Nevada.
Neste caso, o carbono não virá da captura de CO2 do ar, mas do metano produzido pela decomposição de resíduos municipais.
Já a empresa chilena HIF Global (abreviação de Highly Innovative Fuels, ou Combustíveis Altamente Inovadores) tem projetos no Chile, nos Estados Unidos e na Austrália. Em 2021, a HIF começou a construir uma fábrica de demonstração chamada Haru Oni a cerca de 15 km ao norte do Cabo Negro, na região do Estreito de Magalhães e da Antártida.
“Haru Oni é a fábrica de demonstração da HIF que produzirá combustíveis neutros em carbono (eCombustíveis), graças aos fortes ventos da Patagônia, com tecnologia de ponta. No momento, 70% da fábrica estão construídos, e espera-se iniciar a produção de eCombustíveis no final deste ano”, segundo informou a HIF Global.
O hidrogênio será obtido por meio de eletrólise da água e o CO2, por meio de captura do ar, segundo acrescentou a empresa. A meta é sintetizar metanol e, a partir dele, obter “uma gasolina que poderá ser empregada nos veículos atuais, sem nenhuma modificação”.
Por outro lado, a multinacional espanhola de energia e petroquímica Repsol “começou, em maio deste ano, a construir no porto de Bilbao [na Espanha] uma das maiores fábricas de combustíveis sintéticos do mundo”, informou a Repsol por escrito à BBC News Mundo.
Segundo a Repsol, a fábrica “contará com um eletrolisador de 10 MW para produzir 2,1 mil toneladas de combustível por ano, principalmente para aviões, navios e caminhões. O plano da Repsol é inaugurar essa fábrica de combustíveis sintéticos em 2024.”
Os combustíveis sintéticos são uma solução viável para os automóveis?
O especialista em mudanças climáticas da Universidade de Exeter, no Reino Unido, James Dyke acredita que não é justificável recorrer aos combustíveis sintéticos no caso dos automóveis.
“Estamos vendo atualmente um crescimento exponencial dos carros elétricos e um forte aumento de toda a infraestrutura de recarga associada. Existe também um possível papel para o hidrogênio como combustível no transporte por rodovia”, destaca ele.
Para Calvo Ambel, desenvolver combustíveis sintéticos para automóveis “não faz nenhum sentido”.
“Essa quantidade de eletricidade pode ser empregada para movimentar um carro elétrico diretamente, sem perdas de nenhuma parte”, segundo ele.
“Ou você pode usar essa eletricidade para capturar o CO2, produzir hidrogênio, fazer a síntese e depois queimá-lo em um motor totalmente ineficiente, já que, em um motor a diesel ou gasolina, quase toda a energia é perdida na forma de calor.”
O Parlamento europeu aprovou em junho a proibição da venda de novos carros com motor a combustão (ou seja, a gasolina e diesel tradicional) a partir de 2035.
Alguns críticos acusam as empresas petrolíferas de prometer e incentivar o uso de combustíveis sintéticos em automóveis para retardar a transição para os veículos elétricos e assim manter, pelo maior tempo possível, a venda de carros tradicionais e o consumo dos seus produtos.
A BBC News Mundo apresentou essa crítica à Repsol, que respondeu: “O objetivo é descarbonizar o setor de transporte e devemos manter todas as opções disponíveis para reduzir as emissões de forma mais rápida e eficaz. Devemos evitar o determinismo e deixar que todas as tecnologias concorram e se complementem entre si”.
A Repsol destacou ainda que uma das vantagens do desenvolvimento de combustíveis sintéticos para automóveis é o fato de que “esses combustíveis renováveis podem ser consumidos pelos veículos atuais, sem necessidade de modificação dos motores, nem das infraestruturas de distribuição e reabastecimento já existentes, o que permite acelerar a redução das emissões dos carros que já circulam nas estradas, sem precisar esperar a renovação da frota para empregar outras fontes de energia, como a eletricidade ou o hidrogênio”.
Com relação às críticas específicas sobre ineficiência, a Repsol salientou que, “quando se fala que o uso de eletricidade diretamente para movimentar os veículos é mais eficiente, algumas considerações de enorme relevância são deixadas de fora”.
“Em primeiro lugar, para fornecer eletricidade renovável a um veículo, a produção e o fornecimento da eletricidade devem ser realizados no mesmo instante temporal, e nem sempre é possível garantir que o veículo esteja conectado à rede no momento adequado”, segundo a empresa.
A Repsol prossegue: “Em segundo lugar, se for necessário que os veículos a bateria tenham grande autonomia para realizar viagens longas, é preciso fabricar baterias de grande capacidade, que aumentam muito a massa do veículo. Essa massa maior repercute em maior consumo de eletricidade para os deslocamentos, prejudicando a eficiência”.
“No caso dos combustíveis sintéticos, a maior massa de combustível para percorrer mais quilômetros é insignificante e não prejudica a eficiência do veículo”, conclui a empresa.
Os combustíveis sintéticos são uma solução para a aviação?
“O único caso em que vemos potencial nos combustíveis sintéticos é o dos aviões. Se quisermos realmente descarbonizar, não existe nenhuma alternativa viável à queima de querosene”, diz Calvo Ambel.
Em vez de combustíveis sintéticos, seria possível aumentar a produção de biocombustíveis para descarbonizar a aviação?
Os biocombustíveis, produzidos com a biomassa das plantas, não oferecem solução viável e apresentam grandes riscos, segundo o especialista da ONG Transport and Environment.
“Na Europa, os automóveis queimam todos os dias o equivalente a 15 milhões de pães, ao mesmo tempo em que temos uma crise alimentar mundial.”
“Se você produzir biocombustíveis de soja, óleo de palma ou óleo de girassol, tudo isso exige uma quantidade de terra bastante considerável”, acrescenta Calvo Ambel. “E, como sabemos, isso causa o desmatamento da Amazônia ou do sudeste asiático para produzir óleo de palma. Ou seja, o remédio é pior que a doença.”
Com relação ao óleo de cozinha utilizado como combustível para aviões, Calvo Ambel acredita que também não seja uma opção viável: “todo o óleo de cozinha consumido nos Estados Unidos não atenderia a 1% da demanda de querosene daquele país”.
A Transport and Environment defende que, em 2030, as empresas aéreas “sejam obrigadas a utilizar um percentual — mesmo que pequeno, de cerca de 1% — de combustível sintético, para começar a evoluir pouco a pouco até onde precisamos chegar. Porque o que não podemos é continuar usando querosene por toda a vida”, afirma Calvo Ambel.
A produção de combustíveis sintéticos poderia ser escalonada?
Os especialistas ouvidos pela BBC News Mundo concordam ao destacar que tecnicamente é possível aumentar a produção de combustíveis sintéticos. Mas a principal dificuldade é que o aumento dessa produção exigirá grandes quantidades de eletricidade de origens renováveis.
“A Europa sabe que, se quiséssemos, por exemplo, movimentar todos os aviões com esse combustível — só os que saem da Europa — seria preciso importar o combustível porque são necessários muitos painéis solares e muitas turbinas eólicas”, afirma Calvo Ambel.
“O governo alemão, por exemplo, fez recentemente um acordo de cooperação com o Chile neste setor, mas tudo está em fase preliminar.”
Nilay Shah destaca que aumentar a produção de combustíveis sintéticos para satisfazer às exigências da aviação mundial apresenta diversos desafios. Entre eles, o professor menciona os seguintes:
- otimizar a química para que a maior parte da matéria-prima (CO2 e hidrogênio) seja convertida em combustível de acordo com as especificações necessárias (sem produzir ao mesmo tempo gases ou outros produtos secundários);
- instalar capacidade suficiente de energia renovável;
- instalar capacidade suficiente de eletrólise para a produção de hidrogênio; e
- ter acesso a uma fonte sustentável de CO2 (por exemplo, a captura direta do ar).
Shah também relembra que o custo atual do combustível sintético é mais alto que o dos combustíveis fósseis, mas espera-se que ele seja reduzido com o tempo.
O especialista do Imperial College de Londres destaca que “precisamos reduzir as emissões em todos os setores”.
“Alguns setores seguem com mais dificuldade, como a aviação e a propulsão marítima, devido à necessidade de combustíveis com maior quantidade de energia”, afirma Shah. “Por isso, é provável que os combustíveis sintéticos sejam fundamentais para satisfazer à demanda de energia desse setor no futuro próximo.”
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