• Giulia Granchi
  • Da BBC News Brasil em São Paulo

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Glauciele Rodrigues tinha dois filhos e 35 anos quando descobriu que estava grávida de trigêmeos

Glauciele Rodrigues tinha dois filhos e tomava injeções anticoncepcionais quando descobriu que estava grávida de trigêmeos, aos 35 anos. “Quando o exame confirmou, também veio a notícia de que, por serem três bebês, o risco era maior.”

Glauciele, que hoje tem 38 anos, trabalhava como cozinheira em restaurante na época, mas acabou afastada do trabalho no sexto mês de gravidez. “Também engordei muito, 38kg até dar à luz, e essa mudança afetou bastante na minha função. Logo depois, veio a pandemia, e o restaurante ficou fechado até falir.”

Afastada, ela recebeu o “salário-maternidade”, e depois que o restaurante faliu, recebeu seguro-desemprego (R$ 1.212). Seu marido, com quem é casada há 17 anos, trabalha como faturista em um hospital da cidade e recebe um salário mínimo (R$ 1.212).

As contas domésticas eram bastante apertadas, mas a situação ficou ainda pior porque, após o parto prematuro, os bebês ficaram na UTI para ganhar peso e dois deles passaram a rejeitar o leite materno. “Profissionais de saúde disseram que precisaria dar fórmula infantil a eles. E eu só pensava em como é que eu pagaria isso.”

A família passou a gastar quase R$ 200 por semana com a fórmula. “É um dinheiro que poderia ser empregado outras coisas, para os próprios bebês ou para a família. Quando não conseguia pagar, vizinhos, amigos e familiares compravam para mim.”

Mas Glauciele, como muitas outras mulheres no Brasil, não sabia que tinha direito à fórmula infantil de graça. Cada cidade brasileira define seu próprio programa de distribuição e os critérios para quem pode receber esses alimentos.

Glauciele só descobriu que tinha direito a esse benefício por acaso, quando as crianças tinham quatro meses de vida.

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Trigêmeos com 15 dias de vida. Eles nasceram com 34 semanas, idade gestacional considerada prematura

Glauciele estava na fila de uma consulta com o pediatra quando, conversando com outra mãe, descobriu que o município disponibilizava a fórmula infantil gratuitamente para famílias que atendiam a critérios específicos. “Não recebi essa informação de nenhum profissional de saúde. Não fazia ideia.”

Em seguida, uma nutricionista da rede pública de saúde avaliou que a família atendia aos critérios estabelecidos pelo município, e por isso poderia receber o alimento em uma farmácia popular. Houve um acompanhamento mensal para avaliar o peso das crianças, por exemplo.

Hoje, as crianças têm um ano e três meses e não recebem mais a fórmula porque o município onde moram, Viçosa (MG), fornece o alimento até um ano de idade. Hoje, as três crianças comem alimentos sólidos, como é previsto e recomendado para a idade, e a família conta com uma pequena ajuda da prefeitura no recebimento de leite em pó, como um complemento da alimentação.

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Eloá, Miguel e Helena, os trigêmeos filhos de Glauciele, com cinco meses de idade

Quem tem direito a fórmula infantil?

Conforme explica Rossiclei Pinheiro, presidente do departamento científico de aleitamento materno da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria), não existe uma política pública bem estabelecida para todo o território nacional, e acaba sendo uma escolha dos municípios criar ou não seus programas.

“As prefeituras de locais com maior instabilidade social, baseadas nos índices nutricionais de cada cidade, decidem como criar a assistência. Manaus, onde eu resido, por exemplo, já tem um projeto, chamado de ‘Leite do meu filho’, que dá acesso a formula infantil a menores de cinco anos de idade.”

Pinheiro explica que, pelo leite materno ser muito superior em termos nutricionais, é esse o alimento que deve ser priorizado, e pelos casos de necessidade de fórmula infantil serem exceções, as políticas públicas nacionais focam no incentivo ao aleitamento materno.

Programas como o citado pela médica e o qual Glauciele recorreu já são comuns em muitas cidades brasileiras, mas ainda que tenham diferenças em alguns critérios ou no tempo de apoio, todos requerem indicação formal para o uso da fórmula.

O município de Viçosa, onde Glauciele mora, por exemplo, beneficia diversos tipos de pessoas, como pacientes oncológicos, desnutridos ou com alguma carência nutricional e crianças com alguma restrição ou impossibilidade de receber o leite materno. Alguns exemplos de pacientes que tem direito ao alimento:

  • Diagnosticados com alergia alimentar;
  • Com fissura lábio palatal ou outras patologias que comprometam a sucção com prejuízo nutricional e impedimento para a amamentação de crianças até 12 meses de idade;
  • Prematuros com sequelas e/ou comprometimento nutricional;
  • Diagnosticados com doenças congênitas graves com comprometimento nutricional;
  • Crianças com alimentação através de sonda;
  • Doença materna que contra indique a amamentação;
  • Infecção materna por HIV;
  • Óbito materno;
  • Crianças que não apresentam ganho de peso adequado para idade apenas com o consumo de leite materno;
  • Crianças com distúrbio neurológico que comprometa a deglutição e absorção de nutrientes;
  • Identificados por critérios clínicos e/ou laboratoriais.

Outros exemplos, comuns em cidades diferentes, cita a pediatra, são filhos de mães portadoras do vírus HTLV (vírus linfotrópico, que passa pelo leite materno e pode desenvolver doenças imunossupressoras e hematológicas, além de aumentar o risco de leucemia) e bebês com teste do pezinho alterado para erro inato do metabolismo (doença metabólica).

As famílias que atendem aos critérios devem fazer o cadastro na prefeitura ou na secretaria de saúde municipal e passar em consulta com pediatra para receber o encaminhamento para farmácia popular.

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Glauciele ao lado da família quando estava na reta final da gravidez

O que torna o leite materno superior à fórmula infantil?

Conforme explica Caroline Abud, nutricionista, professora e pesquisadora da PUCRS e conselheira científica da ONG Prematuridade, o leite materno é incomparável principalmente por ser personalizado fisiologicamente para o bebê.

“É um alimento vivo. Ele vai se modificando com o tempo e se adéqua às necessidades nutricionais do bebê em termos de macronutrientes, como gorduras e proteínas, e micronutrientes, como vitaminas, minerais. Já a fórmula é um alimento fixo, que apesar de não prejudica o crescimento e desenvolvimento da criança, não tem essa mesma abundância.”

O alimento consiste principalmente de água, gordura, proteínas, vitaminas, sais minerais, enzimas digestivas e hormônios. Ele é rico em anticorpos maternos e possui propriedades anti-infecciosas.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que os bebês devem mamar exclusivamente no peito nos primeiros seis meses de vida. Após esse período, inicia-se a introdução alimentar com outros tipos de comidas, como frutas e legumes.

Outra questão levantada pela especialista é que a fórmula, diferentemente do leite materno, não consegue passar para o bebê os componentes imunológicos que vêm da mãe.

“Imunoglobulinas (anticorpos) passadas do corpo da mãe, por meio do leite, ao bebê, funcionam como uma espécie de vacina, especialmente nos primeiros dias de vida do bebê. Não existe a possibilidade de replicar por meio da fórmula.”

A prescrição da fórmula infantil, reforça Abud, precisa ser bem justificada para casos em que os bebês de fato terão mais benefícios do que perdas.

“O leite de vaca puro ou misturado com farinha não é suficiente. Os nutrientes que estão ali são totalmente desregulados para a faixa etária e podem, inclusive, causar malefícios aos corpos dos bebês.”

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