- Holly Honderich
- BBC News, Washington
Em setembro de 2021, a procuradora-geral do Estado norte-americano do Mississippi, Lynn Fitch, compareceu a uma entrevista para o programa católico de televisão Pro-Life Weekly, que apresenta ativistas contra o aborto.
Fitch manteve para a entrevista a mesma aparência que exibia em quase todas as suas aparições públicas: cabelos tingidos de loiro, alisados e bem cuidados, joias de bom gosto e terno de uma só cor, desta vez de tom azul-claro.
A procuradora-geral estava ali para celebrar. A Suprema Corte dos Estados Unidos havia acabado de anunciar a data da audiência sobre a contestação do seu Estado ao caso Roe vs. Wade — uma decisão histórica de 1973 que, já há quase 50 anos, garante o acesso ao aborto em todo o país.
A ação atual, Dobbs vs. Jackson Women’s Health Organization, baseia-se em uma lei do Mississippi que proibiria o aborto após 15 semanas de gravidez, mesmo em casos de estupro ou incesto. Sob a direção de Fitch, o Estado pediu à Suprema Corte que mantivesse a lei e revogasse a decisão do caso Roe vs. Wade.
A decisão deve ser anunciada ainda este mês, mas um vazamento indica que é provável que a lei de proibição do Mississippi seja mantida, estabelecendo o caminho para que outros Estados também proíbam o aborto.
Fitch, que não concedeu entrevista, havia argumentado que a reversão do caso Roe vs. Wade mudaria o jogo, “liberando” as mulheres do que ela descreveu como uma falsa escolha entre a família e a carreira.
“Cinquenta anos atrás, para as mulheres que trabalhavam, eles queriam que você fizesse uma escolha. Agora, você não precisa”, afirmou ela no programa Pro-Life Weekly. “Você tem na vida a opção de realmente atingir seus sonhos, seus objetivos, e pode também ter belos filhos.”
Segundo ativistas pró-escolha, se Fitch ganhar a causa e a decisão do caso Roe vs. Wade for revertida, cerca de 40 milhões de mulheres podem perder o acesso ao aborto. Isso poderá também fazer com que Fitch, que é mãe de três filhos, solteira e trabalha, torne-se uma superstar republicana e garota-propaganda do seu próprio argumento: de que as mulheres modernas não precisam do aborto para terem tudo.
O aborto não foi sempre um tema animador na carreira política de Lynn Fitch. Quando assumiu seu primeiro cargo público — o de tesoureira do Estado do Mississippi, em 2011, ela apoiou uma lei que garantiria a igualdade de salários entre homens e mulheres.
Suas convicções foram moldadas de muitas formas pela sua criação e, especialmente, pela sua experiência como mãe solteira, segundo Hayes Dent, amigo e colega de longa data, que organizou sua primeira campanha política.
Quando Dent encontrou Fitch pela primeira vez, ela havia acabado de ser nomeada diretora-executiva do Quadro de Pessoal do Estado do Mississippi, uma agência estadual, pelo então governador Haley Barbour. Dent ficou imediatamente impressionado.
“Conheci quase todas as principais figuras políticas do Mississipi nos últimos 40 anos e podia dizer: ela vai concorrer a um cargo”, afirma Dent. “E, quando ela concorrer, será bem sucedida.”
Ela só lançaria sua primeira campanha política dois anos depois. E, quando se candidatou a tesoureira estadual em 2011, “era um azarão”, segundo Austin Barbour, estrategista nacional do Partido Republicano (ele não é parente do ex-governador Barbour, do Mississippi, que nomeou Fitch para o Quadro de Pessoal do Estado).
Dent, que vinha acompanhando Lynn Fitch, entrou em contato com ela em meio à campanha de 2011 e pediu para colaborar. “Eu disse ‘veja, acho que você pode vencer esta campanha'”, relembra ele.
Fitch aceitou e os dois fizeram uma campanha ambiciosa, chegando a atravessar o Estado em um único dia, com diversas paradas e telefonando para arrecadar fundos entre uma parada e outra.
“Sua postura era ‘qual é a tarefa de hoje?”, segundo Dent. “Seria algo como ‘veja, precisamos ir ao festival de mascar fumo’. E ela se saía muito bem! Ela não mascava fumo, mas se saía muito bem.”
O único motivo que fazia Fitch faltar a um evento de campanha eram seus filhos. Ela saía mais cedo para assistir a um jogo de basquete na escola ou participar de uma reunião de pais e professores.
Ela sabia fazer campanha naturalmente, mas os fundos não acompanhavam, o que levou Dent a pedir ao pai dela uma doação pessoal.
O pai da procuradora
Bill Fitch ainda morava em Holly Springs — uma pequena cidade rural perto da fronteira norte do Mississippi, onde Lynn Fitch passou a maior parte da infância.
Ele havia herdado terras na região histórica de Galena Plantation e usou a extensa área de cerca de 3,2 mil hectares para restaurar a fazenda da família, transformando-a em um importante local de caça de perdizes. O ex-juiz da Suprema Corte Antonin Scalia e os ex-governadores do Mississippi Haley Barbour e Phil Bryant eram presenças frequentes no local.
Para hospedar os visitantes das Fazendas Fitch, Bill Fitch comprou e transportou para sua propriedade a antiga casa de Nathan Bedford Forrest — general do exército confederado na Guerra Civil americana (1861-1865) e primeiro líder da Ku Klux Klan.
Lynn Fitch contou à imprensa local sobre suas lembranças “especiais” de infância na fazenda do pai, andando a cavalo e caçando perdizes. E, quando era adolescente, foi o “protótipo da garota popular”, segundo Dent. “Líder, esportiva, líder de torcida… o pacote completo.”
Mais tarde, ela estudou na Universidade do Mississipi, entrou em uma irmandade e formou-se em administração de empresas — e, depois, em direito.
Quando Hayes Dent visitou a fazenda do pai de Fitch para pedir uma doação para a campanha, ele disse (ao pai) “que se saísse dali com um cheque de alto valor, ela ganharia”. Ela ganhou — e ganhou de novo quatro anos depois, garantindo o segundo mandato como tesoureira do Estado.
Durante seu mandato, Fitch cuidou das dívidas do Estado, ampliou o acesso à educação financeira e defendeu leis de pagamento igualitário. Mas o Mississippi ainda é o único Estado que não garante salários iguais para o mesmo trabalho entre homens e mulheres.
Fitch também desenvolveu seu dom de se conectar com eleitores, baseado na sua criação em Holly Springs e em uma aparente facilidade de lidar com o público.
Durante entrevistas e em vídeos para a campanha, Fitch parece inabalável. Ela mantém facilmente o contato visual, sua fala é lenta e tranquila e ela agradece com frequência a Deus e à sua família pela oportunidade de servir ao seu Estado.
“As raízes rurais são importantes para os eleitores deste Estado”, segundo Austin Barbour, o estrategista. “E ela é simplesmente muito agradável.”
Fitch também reforçou suas credenciais conservadoras com seu apoio ao então candidato à presidência Donald Trump, como líder da coalizão Mulheres por Trump do Mississippi, em 2016. Quando Trump esteve na cidade de Jackson para um comício de campanha, ela se sentou na primeira fila.
Dois anos depois, Fitch anunciou que se candidataria a procuradora-geral do Mississippi — um cargo que nunca havia sido ocupado por uma mulher. Mas ela já não era um azarão e venceu a eleição em novembro de 2019, com cerca de 60% dos votos. Sua promessa era de manter “os valores e princípios conservadores”.
O aborto e o caso Roe vs. Wade
Como republicana dedicada em um Estado solidamente republicano, a posição de Fitch sobre o aborto era tida como certa, mesmo se ela não a defendesse abertamente.
Nos Estados Unidos, cerca de 60% das pessoas defendem que o aborto deveria ser legal em todos ou na maior parte dos casos, segundo dados do think tank (centro de pesquisa e debates) norte-americano Pew Research Center. Mas, entre os republicanos do Mississippi, cerca de 70% acreditam que o aborto deveria ser proibido em todos ou na maioria dos casos.
“Você não concorre no Mississippi, você não concorre nos Estados rurais conservadores se não quiser ver [o caso] Roe vs. Wade revertido”, afirma Austin Barbour. “Isso está simplesmente arraigado.”
A proibição do aborto ante a Suprema Corte foi aprovada pelo legislativo estadual do Mississippi em 2018, dois anos antes da posse de Lynn Fitch com procuradora-geral. A lei, que proíbe totalmente o aborto após 15 semanas de gestação, foi imediatamente contestada judicialmente em nome da Jackson Women’s Health Organization, a última clínica de aborto remanescente no Mississippi.
Um tribunal federal do distrito derrubou a lei alegando inconstitucionalidade e um tribunal superior ratificou a decisão em 2019.
Mas, em junho de 2020, com cinco meses no cargo, a procuradora-geral Fitch ingressou com uma petição junto à Suprema Corte dos Estados Unidos para rever a proibição após 15 semanas.
A corte, que tem maioria conservadora (6 a 3), aceitou e ouviu o caso em dezembro de 2021. Com isso, Fitch é agora conhecida nacionalmente como a advogada que espera derrubar o caso Roe vs. Wade.
Lynn Fitch às vezes afirma que seu Estado está apenas defendendo o estado de direito, ao pedir à Suprema Corte que delegue aos Estados o poder de legislar sobre o aborto. Mas ela afirma com mais frequência que é uma questão de empoderamento das mulheres.
Ela afirmou que a decisão do caso Roe vs. Wade fez com que as mulheres acreditassem que precisavam escolher entre a família e a carreira, e não ter ambos. “A justiça colocou as mulheres contra as nossas crianças e as mulheres contra outras mulheres”, escreveu ela em um artigo de opinião no jornal The Washington Post.
Fitch argumenta que essa escolha é enganosa e paternalista. É uma posição aparentemente retirada da sua própria vida: mãe solteira que ascendeu aos mais altos níveis públicos do seu Estado, permanecendo dedicada aos seus filhos e netos.
“Ser mãe solteira tem meio que dominado seu processo de pensamento e sua experiência de vida”, afirma Dent. “Acho que é uma das razões das suas opiniões tão fortes sobre isso.”
Durante uma entrevista para a televisão em 2021, Fitch afirmou que, em um mundo sem o caso Roe vs. Wade, “bebês seriam salvos” e as mães “teriam uma chance de realmente redirecionar as suas vidas. Elas têm todas essas oportunidades novas e diferentes que não tinham 50 anos atrás.”
Os ativistas contra a proibição do aborto acusaram Fitch de usar linguagem feminista para ocultar uma política inerentemente antifeminista.
Seus argumentos baseiam-se “em grande parte, em afirmações falsas de que estão ‘empoderando as mulheres'”, segundo Dina Montemarano, diretora de pesquisa da organização NARAL Pro-Choice America. Ela afirma que esta tática é usada com frequência por ativistas antiaborto para impor o controle sobre o corpo das mulheres e violar suas liberdades fundamentais.
Em sua apresentação de abertura perante a Suprema Corte, Fitch mencionou “avanços políticos abrangentes [que] agora promovem a busca completa das mulheres pela carreira e pela família”. Mas, em um argumento contrário apresentado à Suprema Corte, 154 economistas advertiram que esse otimismo era “falso e prematuro”.
Para eles, “a celebração das políticas de licença-paternidade pelo Mississippi é particularmente bizarra, já que os Estados Unidos são um dos dois únicos países que não possuem uma política nacional de licença-maternidade remunerada”.
O Mississippi, especificamente, não tem leis estaduais que obriguem a licença-maternidade remunerada. Trata-se do Estado mais pobre do país e que possui as mais altas taxas de pobreza e mortalidade infantil.
Mas, se o caso Roe vs. Wade for realmente derrubado, Fitch voltará ao Mississippi como heroína conservadora.
“Tenho 99% de certeza de que ela concorrerá novamente à procuradoria-geral”, afirma Dent. “E, considerando os acontecimentos dos últimos três anos, é difícil para mim imaginar que ela enfrente qualquer oposição dos republicanos desta vez.”
Existem também rumores iniciais de que ela possa, um dia, concorrer para governadora. Fitch ainda não comentou sobre essas especulações. Mas, se vencer, ela será a primeira mulher governadora na história do Mississippi.
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