• João Fellet – @joaofellet
  • Da BBC News Brasil em São Paulo

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Após produzir dezenas de reportagens sobre a destruição da Amazônia, Dom Phillips se dedicava a um livro no qual pretendia expor soluções para manter a floresta em pé

“Amazônia, sua linda” — essa foi a última frase que o jornalista britânico Dom Phillips escreveu em suas redes sociais, cinco dias antes de desaparecer no Vale do Javari (AM), quando viajava com o indigenista Bruno Pereira, no último domingo (05/06).

As palavras — acompanhadas por um vídeo no qual um barco viaja lentamente por um rio amazônico, com uma mata exuberante no fundo — expõem a paixão que o britânico desenvolveu pela floresta após se mudar para o Brasil, em 2007.

Num momento de crescente interesse internacional pela Amazônia, o jornalista produziu dezenas de reportagens sobre o bioma para o jornal britânico The Guardian e se tornou uma das principais vozes na imprensa estrangeira a documentar o avanço do desmatamento durante o governo Jair Bolsonaro.

O interesse dele pela Amazônia era tamanho que, em 2021, Dom começou a escrever um livro sobre soluções para manter a floresta em pé. Seu desaparecimento ocorreu durante uma das viagens de pesquisa para a obra.

Papel dos indígenas

Segundo o sociólogo Felipe Milanez, Dom “tinha uma dedicação muito profunda em entender o Brasil”. Os dois ficaram amigos após Dom se mudar no início do ano para Salvador, terra natal da esposa do britânico, Alessandra Sampaio. O casal antes morava no Rio de Janeiro.

Segundo Milanez, Dom “se apaixonou” pela capital baiana. O sociólogo afirma que ambos costumavam praticar stand-up paddle em Salvador. Nas horas vagas, Dom dava aulas de inglês numa favela como voluntário.

“Era uma pessoa que rapidinho construía confiança, transparente, muito ético e discreto”, diz o amigo.

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Dom Phillips pretendia contar em seu livro como povos indígenas fazem para preservar a floresta e se defender de invasores.

Milanez conta que Dom resolveu escrever o livro sobre a Amazônia porque queria se aprofundar no tema, algo que seu trabalho diário como repórter não lhe permitia.

Criado nos arredores de Liverpool, cidade industrial no noroeste da Inglaterra, o repórter “tinha uma formação de classe operária militante”, diz o amigo.

“Ele reportava uma situação familiar muito dura (na Inglaterra) e se identificava com as pessoas que sofrem aqui”, afirma Milanez.

“Era muito atento na escuta, muito verdadeiro, e queria ouvir o que as diferentes vozes do Brasil tinham a dizer sobre a Amazônia: cientistas, pesquisadores, gente que se importa.”

Amigos do britânico dizem que ele se interessou pelo Brasil inicialmente por causa da música, tema que ele enfocava no começo de sua carreira jornalística.

Em suas redes sociais, Dom exalta com frequência músicos brasileiros. Em 30 de abril, foi a um show de Gilberto Gil em Salvador e o definiu como “um gigante que representa muito do que é maravilhoso e poderoso na cultura brasileira”.

Em janeiro, após a morte da cantora Elza Soares, chamou-a de “grandiosa, única, brilhante”. Também costumava publicar fotos de frutas e pratos típicos brasileiros.

Crédito, Arquivo Pessoal

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Dom Phillips cresceu nos arredores de Liverpool e tinha ‘formação de classe operária militante’, diz amigo

‘Passou a ser família’

Ultimamente, no entanto, a Amazônia e os povos indígenas eram os principais focos do interesse de Dom pelo Brasil.

Poucas semanas antes de viajar para o Vale do Javari, o britânico visitou aldeias do povo indígena Ashaninka, no Acre. O grupo é considerado um exemplo de sucesso na preservação ambiental e na conciliação de tradições com práticas modernas.

O líder Ashaninka Francisco Piyãko, que foi entrevistado por Dom na visita, lamentou à BBC o desaparecimento do britânico.

“É como se tivessem mexido diretamente com a gente, porque ele estava representando a nossa causa, a nossa história. Ele passou a ser família”, diz Piyãko.

Em vídeo gravado durante a visita, publicado no perfil no Twitter da Associação Ashaninka do Rio Amônia, Dom diz que as “terras indígenas são os lugares mais protegidos da Amazônia”, e que uma parte importante de seu livro seria sobre a “participação e protagonismo dos povos indígenas” na preservação da floresta.

Afirmou ainda que estava ali para “aprender um pouco com vocês: como é sua cultura, como vocês veem a floresta, como vivem dentro dela, como lidam com ameaças que vêm de invasores, garimpeiros e tudo mais”.

Crédito, Sérgio Vale/Secom-AC

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Cerimônia do povo indígena Yawanawá, um dos grupos que Dom Phillips pretendia visitar para a produção de seu livro.

Biraci Nixiwaka, um dos líderes do povo Yawanawá, também do Acre, diz à BBC que Dom planejava visitar o território do grupo.

“Senti uma coisa muito boa dele, de querer fazer o bem, de querer abordar a questão da proteção da natureza, da floresta, da história dos povos indígenas”, afirma Nixiwaka, que diz ter conversado várias vezes com o britânico pelo telefone.

A preocupação com a floresta rendeu a Dom um dos momentos mais conturbados de sua estadia no Brasil.

Em 2019, numa coletiva de imprensa com o presidente Jair Bolsonaro (PL), Dom disse ao mandatário que “os números de desmatamento estão mostrando um crescimento assustador, o Ibama está dando menos multas, (fazendo) menos operações, os sinais que o governo está dando para a Europa não são positivos no sentido de proteção do ambiente”.

O britânico perguntou então como Bolsonaro pretendia “mostrar para o mundo que realmente o governo tem preocupação séria com a preservação da Amazônia”.

O presidente respondeu: “Primeiro, você tem que entender que a Amazônia é do Brasil, não é de vocês”.

O diálogo, compartilhado por Bolsonaro no Twitter, fez com que Dom fosse duramente criticado por apoiadores do mandatário. Mesmo assim, o britânico não deixou o assunto de lado.

Crédito, Divulgação/Funai

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O indigenista Bruno Araújo Pereira (ao centro), servidor da Funai que acompanhava Dom Phillips na viagem ao Vale do Javari

Expedição

O interesse de Dom pelo Vale do Javari, uma das áreas mais preservadas da Amazônia, o aproximou do indigenista Bruno Pereira, com quem ele viajava quando ambos desapareceram.

Em 2018, Dom acompanhou Bruno numa expedição de 17 dias à Terra Indígena Vale do Javari, que abriga uma das maiores concentrações de povos indígenas isolados do mundo.

Bruno — que na época coordenava o departamento da Funai (Fundação Nacional do Índio) responsável por indígenas isolados e recém-contatados — buscava monitorar os deslocamentos de um desses grupos para evitar conflitos com comunidades vizinhas.

Na reportagem em que narra a expedição, Dom descreve uma cena na qual Bruno “abre o crânio de um macaco cozido com uma colher e come seu cérebro de café da manhã”.

O animal fora caçado por indígenas que também participavam da viagem.

A naturalidade com que Bruno se portava na floresta e sua relação próxima com os indígenas chamaram a atenção do britânico, que passou a consultá-lo em várias reportagens.

Defesa contra invasores

Quando Dom regressou ao Vale do Javari no início deste mês, Bruno já não estava mais na Funai: ele havia se licenciado do órgão e agora assessorava diretamente a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Unijava), principal organização indígena local.

Segundo Leonardo Lennin, indigenista do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato, o britânico queria ver na viagem como a Unijava estava usando tecnologia, como drones e imagens de satélite, para documentar invasões e denunciá-las às autoridades.

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Dom Phillips tem visão ‘sofisticada’ sobre a Amazônia e queria apresentar soluções práticas para preservá-la, diz diretora de fundação que deu uma bolsa ao jornalista

Lennin afirma que o trabalho dos indígenas “deveria ser complementar à fiscalização do Estado”. No entanto, segundo o indigenista, os órgãos públicos não têm feito a sua parte, o que forçou os indígenas a ampliar suas ações.

Por causa desses trabalhos de vigilância, Pereira e indígenas envolvidos vinham sofrendo ameaças, segundo a Unijava.

Olhar sofisticado

Quando desapareceu, Dom já havia completado cerca de dois terços da apuração para o livro, diz à BBC Margaret Engel, diretora-executiva da Alicia Patterson Foundation.

A fundação americana deu a Dom uma bolsa para que ele se dedicasse integralmente à obra, que seria entregue até o fim deste ano, segundo Engel.

O projeto teve início em 2021, quando a pandemia de covid-19 se espalhava pelo Brasil e ainda não havia vacinas no país. Na época, havia grande temor quanto à possibilidade de que pessoas infectadas em cidades levassem a covid-19 a aldeias indígenas.

Engel diz que Dom então viajou ao Reino Unido, que já aplicava vacinas em sua população, para se imunizar e poder viajar até as comunidades.

Crédito, Arquivo Pessoal

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Dom Phillips pretendia entrevistar fazendeiros e garimpeiros em seu livro sobre a Amazônia, diz a esposa do britânico

Ela afirma que a fundação resolveu apoiar o britânico por considerar seu projeto relevante e original sobre a Amazônia. “Muitos jornalistas soam alarmes quanto à degradação, mas Dom tem um olhar mais sofisticado, ele busca as soluções possíveis”, diz Engel.

Ela diz que Dom estava entusiasmado com o livro e queria mostrar que, apesar do pessimismo com a destruição da floresta, há “caminhos para impedir o desastre”. O britânico pretendia expor maneiras de preservar a floresta e, ao mesmo tempo, garantir o bem-estar de suas populações, afirma Engel.

“O projeto dele traz esperança em vez de desespero”, ela diz.

Amor pelos humanos e pela natureza

Em entrevista à escritora Ruth de Aquino, do jornal O Globo, a mulher de Dom, Alessandra Sampaio, disse que o marido “amava o ser humano”.

“Amava tanto que queria escutar a todos, dar voz a todos. Fazendeiros, garimpeiros. Não falava em vilões. Não queria demonizar ninguém. Sua missão era esclarecer as complexidades da Amazônia”, disse Sampaio, em texto publicado na última quinta-feira (09/06).

Em outra entrevista, para a TV Globo, na quarta-feira, Sampaio falou de outro amor de Dom, o amor pela natureza.

Segundo ela, para o marido, “Deus é natureza, ele encontrava Deus na natureza”.

“O que eu acho que o Dom gostaria é que as pessoas conhecessem a Amazônia que ele conheceu, que ele amava tanto. Afinal, a gente só cuida do que conhece, do que ama — então a proteção viria como consequência”, disse Sampaio para a BBC News Brasil.

Enquanto muitos estrangeiros e até mesmo brasileiros tratam a Amazônia como um espaço hostil e impenetrável, ele se admirava com a relação de indígenas com o bioma e o via como um lugar de beleza e fartura.

O deslumbramento do britânico com a floresta transborda na longa reportagem de 2018, quando Dom participou da expedição com Bruno Pereira para monitorar um grupo de indígenas isolados no Vale do Javari.

A missão, escreve o jornalista, ocorreu num momento em que os indígenas enfrentavam as maiores ameaças em décadas, “com dragas de garimpo de ouro altamente poluentes entrando nos rios a leste, pecuaristas se aproximando dos limites ao sul, e gangues de pescadores comerciais se aventurando no centro” de seu território.

Apesar das tensões, o texto tem momentos de puro deleite e encantamento, como quando Dom menciona a visão de “uma enorme, rara árvore de mogno, se espalhando majestosamente por um trecho de floresta espaçoso, manchado de sol”.

Ou quando descreve meninos indígenas que haviam batido “em uma colmeia para afugentar as abelhas” e depois compartilhavam “seu favo de mel vermelho-ferrugem, pingando mel doce e selvagem”.

“Para eles, esta não é uma selva proibida, mas um vasto supermercado orgânico cujas mercadorias estão escondidas para os não iniciados”, escreveu o britânico.

Onde muitos veem mato, Dom aprendeu a ver mata.

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