- Rodrigo Pedroso
- De Tabatinga (AM) para a BBC News Brasil
A escalada de ataques à base de Proteção Etnoambiental Ituí-Itacoaí da Fundação Nacional do Índio (Funai), na Terra Indígena Vale do Javari, no oeste do Amazonas, está colocando em xeque o trabalho de proteção da área com o maior número de etnias em isolamento voluntário do país.
Desde setembro, quatro ataques foram registrados ao posto de controle, segundo funcionários do órgão, que é responsável por monitorar e fiscalizar os territórios indígenas. Em um ano, entre novembro de 2018 e este mês, foram oito ataques contra a base — o maior número desde a demarcação, em 1998.
Apenas no primeiro fim de semana deste mês, a base foi atacada duas vezes. As agressões são atribuídas a pescadores e caçadores ilegais, no momento em que saíam da terra indígena após terem entrado sem autorização, segundo funcionários da Funai que acompanham as investigações.
Servidores e colaboradores das quatro bases da Funai instaladas na segunda maior terra indígena do país afirmam que vão paralisar as operações de controle e fiscalização da entrada e saída do território. Eles pedem que o governo federal envie forças de segurança, como disseram à BBC News Brasil pessoas ligadas às Frentes de Proteção Etnoambiental (FPE).
Sem essas operações, o acesso à terra indígena fica aberto para qualquer pessoa — caçadores, pescadores, garimpeiros e madeireiros terão menos dificuldades para entrar no território.
Os indígenas temem ainda que ataques ainda mais violentos possam ocorrer e, por isso, se articulam para assumirem eles mesmos a defesa dos postos.
O governo federal, por sua vez, depois de colocar em dúvida a veracidade dos ataques, não respondeu até o momento à solicitação dos funcionários da Funai por segurança.
Documentos da Funai e relatos de pessoas ligadas à FPE obtidos pela BBC News Brasil mostram que o clima entre os servidores é de revolta em relação à falta de proteção, e de receio de que em algum momento uma bala atinja um funcionário. Por meio de documentos internos enviados à presidência do órgão, os servidores vêm pedindo segurança desde o final do ano passado, quando começaram os ataques à base Ituí-Itacoaí.
Essa base é visada por ser a porta de entrada mais próxima para o Vale do Javari, área procurada pelos caçadores ilegais por causa da riqueza dessa região, pouco estudada e bem preservada.
Servidores e colaboradores relatam que não há condições para prosseguir com o trabalho de campo. Com o corte de verbas promovido neste ano na Funai, o apoio logístico vem sendo comprometido, com servidores excedendo o tempo de serviço em campo por falta de transporte. Nas circulares internas, eles pedem à direção do órgão que consiga agentes da polícia, Exército ou Força Nacional de maneira permanente.
Na noite da última quinta-feira (07/11), a juíza federal Jaíza Maria Pinto acatou ação do Ministério Público Federal contra a União e a Funai e ordenou que o governo “preste imediato apoio operacional às entradas em campo de suas próprias equipes da Frente de Proteção Etnoambiental do Vale do Javari”. Também determinou que o órgão deve “alocar recursos materiais e orçamentários para garantir o apoio das atividades por no mínimo seis meses”.
A decisão da juíza não estipula prazos e nem penalidades caso a ordem não seja cumprida. A PF e o Ministério da Justiça, que coordena a Força Nacional, não responderam às solicitações da reportagem para comentar a decisão.
A ordem judicial não alterou a postura de servidores e colaboradores das frentes de proteção. Apesar de a decisão judicial ser bem-vinda, os funcionários têm dúvidas se ela fará com que as forças de segurança atuem permanentemente no Vale do Javari.
A situação de insegurança ainda preocupa, uma vez que não houve sinalização às bases, por parte da direção da Funai, sobre o tema. Com isso, os planos de paralisação estão mantidos.
Para além dos ataques, a sensação de confronto se intensifica na região. No mês passado, um pescador foi baleado próximo de uma das aldeias do povo Korubo. O revide veio duas semanas depois, quando dois adolescentes dessa etnia foram atacados por pescadores.
Na madrugada de primeiro de novembro, oito homens em um canoão (canoa de 12 metros usada pelos pescadores e caçadores) dispararam na base quando um colaborador indígena apontou o holofote para a embarcação, procedimento usado para iniciar a averiguação.
Dois dias depois, outros três homens usaram o mesmo modus operandi: atirar contra a base ao menor sinal de reação. Ninguém ficou ferido.
Em outubro, o presidente substituto da Funai Alcir Teixeira esteve na região e tratou os relatos de ataques feitos pelos funcionários — que se acumulam desde o final do ano passado — como suposições. Os casos estão sendo apurados pela Polícia Federal de Tabatinga, na tríplice fronteira com Colômbia e Peru.
Questionada sobre o andamento dos trabalhos, a PF não respondeu às perguntas. A presidência da Funai, que em agosto soltou memorando interno vetando os funcionários de falarem com a imprensa, também não respondeu aos questionamentos enviados pela reportagem ao longo da semana passada.
O Ministério Público afirma que entrou com o pedido na Justiça por se tratar de uma questão que “vem se alongando e crescendo”. No pedido acatado pela Justiça, o MP diz que a segurança dos povos indígenas de recente contato e isolados do Vale do Javari está em risco e “com alto potencial de ocorrência de genocídio”.
As suspeitas
As investigações apontam que os ataques partem de pescadores e caçadores ilegais de Atalaia do Norte (AM) financiados sobretudo por grupos de contrabandistas de animais de Tabatinga (AM) e Benjamin Constant (AM), as duas maiores cidades da região, a 1.100 quilômetros de Manaus. Os animais são vendidos para compradores brasileiros, peruanos e colombianos.
Atalaia do Norte, com 15 mil habitantes e terceiro menor IDH do Brasil, é o município mais próximo da confluência entre rios Ituí e Itacoaí, na entrada do Vale do Javari. A junção dos dois rios foi a primeira a receber uma base de proteção por sua localização estratégica, ainda em 1996, no processo de estabelecimento de contato com o povo Korubo.
Não é de hoje que se trata de uma região conflagrada. Em 2000, um grupo de cerca de 300 pescadores autodenominados de Movimento dos Sem Rio, de Atalaia do Norte e Benjamin Constant, atacou a base do Ituí-Itacoaí e a sede da Funai em Atalaia do Norte com coquetéis molotov.
Houve confronto e troca tiros com servidores do órgão indigenista e fiscais do Ibama, conforme noticiou na época o jornal amazonense A Crítica . A homologação da Terra Indígena em 2001 culminou em um processo que retirou, mediante indenização, a população não indígena do Vale do Javari — pessoas que chegaram à região no começo do século 20, na esteira do primeiro ciclo da borracha.
Uma parte delas se estabeleceu em Atalaia do Norte depois da homologação e, a partir daí, o confronto entre indígenas e não indígenas, antes frequentes, tornaram-se esporádicos. No fim do ano passado, as disputas voltaram a ocorrer.
Liderança tradicional do Vale do Javari e que participou do processo de demarcação, Clóvis Marubo afirma que as atividades ilegais no território aumentaram, após o início do governo de Jair Bolsonaro. Segundo ele, cortes de servidores e o contingenciamento de recursos têm “empoderado os invasores”, o que preocupa os indígenas da região.
Divulgada na última quarta-feira, uma carta aberta dos servidores das onze FPEs vai no mesmo sentido.
Há poucos servidores nas quatro bases do Javari (nos rios Ituí-Itacoaí, Jandiatuba, Quixito e Curuçá) e, segundo colaboradores, falta insumos para a manutenção do controle do acesso ao território onde vivem os povos Marubo, Matís, Mayoruna, Kanamari, Kulina e os de recente contato Tyohom Djapá e Korubo.
Há ainda outros dez subgrupos isolados confirmados e mais quatro em estudo, neste território do tamanho de Portugal. “O enfraquecimento dessas bases e a falta de respostas do governo está muito preocupante. Sempre houve invasões, mas agora estão crescendo e rapidamente por causa da falta de fiscalização. O território nunca esteve tão descoberto e isso pode levar a um conflito maior. Uma vez que os indígenas se certifiquem que o Estado não está protegendo o território, eles vão cuidar da própria segurança”, diz Marubo.
Confrontos
Entre servidores e colaboradores da frente de proteção fala-se em uma “tragédia anunciada”. Sinais de confrontos se acumulam, como quando, em meados de outubro, o pescador foi baleado e deu entrada no hospital de Atalaia do Norte. A versão corrente no povoado é que ele foi ferido quando pescava perto de uma das aldeias do povo Korubo. Duas semanas depois, houve o ataque aos dois adolescentes Korubos, atacados por pescadores enquanto pescavam em uma lagoa.
A primeira das quatro aldeias Korubo está a 30 minutos de barco da base do Ituí-Itacoaí. Na avaliação de Conrado Otávio, coordenador do Centro de Trabalho Indigenista (CTI) que trabalha no Vale do Javari desde 2004, há risco iminente para essas populações. “Você vai somando os pontos e percebe que esses povos estão desprotegidos. Nunca houve esse despudor de agressão e intimidação a servidores e indígenas, isso de atirar diretamente contra eles. Dada a vulnerabilidade dos povos indígenas, sobretudo dos isolados, os riscos são muitos grandes”, diz Otávio.
Pirarucu, tracajá, queixada e anta são os animais mais procurados pelos pescadores e caçadores. Enquanto um tracajá é vendido por pelo menos R$ 100, um pirarucu ainda jovem não é vendido por menos de R$ 1 mil na região. Pela extensão e dificuldade de navegação nos rios do Vale do Javari, cada expedição, que costuma contar com entre 6 e 8 homens, precisa toda a capacidade de carga da canoa para ser lucrativa.
Já a Associação dos Pescadores de Atalaia do Norte afirma tentar organizar os pescadores que praticam o manejo legal – algumas famílias ribeirinhas – nos lagos em volta da Terra Indígena. No entanto, esses lugares já foram muito explorados e não são suficientes para a demanda externa, sobretudo peruana e colombiana. Por isso, segundo colaboradores das FPE, parte dos ribeirinhos que saíram do território indígena na época da demarcação, ficaram sem o sustento e passaram a recorrer a atividades ilegais. A associação tenta conter a entrada de pescadores e caçadores de outras regiões, mas sem sucesso.
Investigações apontam que o assassinato do colaborador da Funai Maxciel dos Santos Pereira, no início de setembro, tem relação com essa economia ilegal. Maxciel passeava com a família na principal avenida de Tabatinga quando foi baleado. Meses antes, ele havia organizado uma operação que apreendeu grande quantidade de pesca e caça ilegal. O caso está sendo investigado pela Polícia Federal.
Outro fator que aumenta a pressão no Vale do Javari é o fato de que muitos dos pescadores e caçadores viviam na terra indígena antes da demarcação. “Eles sabem onde está a fartura e é justamente próximo das nossas aldeias, porque não fazemos uso comercial da selva. Mas tem sido tanta a caça e a pesca que já está afetando a nossa comida”, afirma Varney Thoda Kanamari, vice-coordenador da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja).
Kanamari espera que o governo reforce as bases de proteção no Javari para coibir os invasores. Caso os servidores e colaboradores da Funai mantenham o plano de paralisar as atividades na semana que vem, ele afirma que Kanamari, Matsés, Matís e Mayoruna estão se organizando para criar um grupo que ocupe esses lugares.
“Espero que não chegue a esse ponto, mas, se acontecer, nós vamos lá, como voluntários mesmo e sem receber nada para fazer uma barreira de proteção. Vamos gerir nós mesmos essa situação, porque, se não, vão entrar muito mais invasores”, diz.
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