A universidade que inspirou o projeto de emenda à Constituição (PEC) que cria a cobrança de mensalidades no ensino superior público enfrenta uma crise de inadimplência.
A Universidade de Taubaté (Unitau) é municipal e financia a si própria com mensalidades, sua principal fonte de receita. Os valores variam entre R$ 570 e R$ 7 mil.
Mas hoje, pelas suas próprias contas, a dívida de alunos e ex-alunos com pagamentos atrasados é de R$ 108 milhões. Esse valor representa 61% da sua receita prevista para 2022.
A universidade tenta há anos recuperar esse dinheiro — foi inclusive alvo de uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) por causa disso.
De acordo com a Unitau, que tem 8 mil alunos, a taxa de inadimplência está em 17%, quase o dobro da média do mercado, e a universidade movia na Justiça 15 mil processos de cobrança na Justiça em 2020, segundo os dados mais recentes.
Mas o problema virou uma bola de neve porque, apesar dos seus esforços, a dívida se mantém no mesmo patamar há mais de uma década.
O que diz a PEC 206?
A PEC 206 foi apresentada pelo deputado federal General Peternelli (União-SP).
Ele morou em Taubaté, no interior de São Paulo, antes de se mudar para Brasília, em 2019, para seu primeiro mandato na Câmara.
“Quando vim pra cá, a maioria dos deputados da esquerda comentavam que precisamos distribuir melhor os recursos. Lá em Taubaté, tem uma universidade, lá é pago e dá desconto para os alunos. Então, por uma iniciativa pessoal, por uma convicção na universidade pública, apresentei a PEC 206”, explicou o deputado na Câmara.
O projeto muda a Constituição para prever que “as instituições públicas de ensino superior devem cobrar mensalidades, cujos recursos devem ser geridos para o próprio custeio, garantindo-se a gratuidade àqueles que não tiverem recursos suficientes, mediante comissão de avaliação da própria instituição e respeitados os valores mínimo e máximo definidos pelo órgão ministerial do Poder Executivo”.
O texto seria votado na semana passada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. Mas o relator da PEC, Kim Kataguiri (União-SP), não foi por motivo de saúde, e deputados de esquerda protestaram até conseguir que, antes da votação, seja feita uma audiência pública, que ainda não tem data.
“Eu peço à oposição: cadê a distribuição de renda que vocês tanto falam? Quem paga a universidade são os mais humildes com seus impostos. Nós temos uma oportunidade de dividir recursos e repassar para quem precisa e não queremos nem ouvir a proposta?”, protestou Peternelli contra a saraivada de críticas ao seu projeto.
“Quem pode, paga, quem não pode, não paga”, justificou o deputado.
Inadimplência acima da média
A Unitau tem uma taxa de inadimplência bem acima da média entre as universidades privadas, que foi de 9,4% em 2021 segundo o Semesp, instituto que representa instituições particulares de ensino superior.
A Unitau não informou à BBC News Brasil quantos ex-alunos estão inadimplentes, mas sua prestação de contas anual mais recente no Tribunal de Contas do Estado (TCE) de São Paulo, que fiscaliza suas finanças, apontou que tinha 15 mil ações de cobrança na Justiça em 2020.
A universidade tem desde 2011 programas de renegociação de dívidas e diz que vem reduzindo a taxa de inadimplência.
A Unitau disse à comissão que, se não fizesse nada para reduzir essa dívida, poderia ser multada pelo TCE.
O Procon de Taubaté protestou na época porque a Unitau teria colocado mil alunos e ex-alunos no SPC. Para o órgão, isso seria ilegal e abusivo no caso de uma universidade.
A Unitau se defendeu dizendo ser legítimo negativar o nome dos inadimplentes e argumentou que só fazia isso depois de tentar negociar bastante.
Mas a CPI concordou com o Procon e, em seu relatório final, exigiu que a Unitau desse fim a essa prática, mas a Unitau diz que nunca recebeu uma ordem judicial para fazer isso.
A Unitau continua a recorrer aos cadastros de crédito para cobrar os alunos e disse à BBC News Brasil que isso não contraria os direitos do consumidor.
Especialistas da área concordam. O advogado Rômulo Brasil diz que a universidade pode fazer isso, porque um contrato de serviço foi assinado e não foi pago.
“Inclusive, é esse o entendimento que temos visto esmagadoramente nas decisões judiciais”, diz Brasil. “É exagero argumentar que a universidade não pode negativar porque presta um serviço público. Espera para ver o que acontece se a empresa de luz ou água não puder fazer isso. Inadimplência em larga escala.”
Luciano Godoy, professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV), diz que a universidade precisa respeitar alguns limites.
“Não pode colocar restrições pedagógicas durante o ano letivo. Não pode tirar o aluno da sala de aula, não pode não deixar fazer prova. Mas, quando o ano letivo acabar, pode cobrar os atrasados na Justiça e negativar, sem problema.”
Dívida se mantém alta
Hoje em dia, nem mesmo o Procon de Taubaté parece sustentar a mesma posição defendida na CPI.
A coordenadora Zuleika Monteiro Ribeiro informou à BBC News Brasil que recebeu no ano passado duas queixas de alunos da Unitau por terem ido parar no SPC, mas que nenhuma foi considerada abusiva pelo Procon. “Cada caso é um caso”, diz Ribeiro.
O problema atualmente parece ser outro. “As pessoas nos procuram para ajudar a fazer um acordo. A universidade faz a proposta, mas, às vezes, a dívida é muito antiga, e os valores são tão altos que o aluno nem responde”, afirma Ribeiro.
No Reclame Aqui, site onde consumidores cobram explicações de empresas sobre seus produtos e serviços, há muitas postagens sobre como a cobrança de juros — supostamente abusivos, na visão dos alunos — fizeram suas dívidas aumentar rápido.
Na prática, o aluno paga bem mais do que isso, porque a Unitau cobra 1% de juros ao mês mais a correção pela inflação — que disparou nos últimos dois anos.
A Unitau diz que, nos últimos três anos, conseguiu recuperar R$ 63,5 milhões. Apesar disso, a dívida continua alta como antes.
Em 2010, eram R$ 104,5 milhões (em valores corrigidos pelo IPCA; R$ 52 milhões à época), pouco menos do que os R$ 108 milhões atuais.
Mas a Unitau ressalta que espera abater desse valor R$ 8 milhões em acordos fechados com os alunos neste ano.
Preço das mensalidades
A maioria delas pode cobrar mensalidades para se financiar parcial ou totalmente, porque foram criadas antes da Constituição Federal de 1988, que estabelece a gratuidade do ensino superior público.
É o caso da Unitau, que é de 1974. A reitoria diz que 95% da receita vem das mensalidades. O restante vem de alugueis de imóveis e programas de incentivo à pesquisa.
Na maioria dos cursos, as mensalidades da Unitau ficam acima da média do ensino superior privado do país.
São 44 cursos ao todo. Em 33 deles, os preços são mais caros que a média, calculada pelo Semesp. Outros 11 estão abaixo.
O curso mais barato da Unitau é o de Design Gráfico: R$ 570 por mês. O de Medicina é o mais caro — e um dos que está abaixo da média (cerca de 20%) calculada pelo Semesp. Ainda assim, é preciso pagar R$ 7 mil por mês para estudar ali.
“O curso de Medicina é conhecido na cidade como curso apenas para os ricos. Deviam ajudar quem quer estudar Medicina e não querer apenas lucrar”, diz uma postagem no Reclame Aqui de 2020.
A Unitau responde que não tem fins lucrativos e que há dois anos não reajusta as mensalidades “em respeito aos seus alunos, que integram a parcela da população brasileira que sofreu os efeitos econômicos da pandemia” — quando a inadimplência aumentou e a receita das universidades caiu, segundo o Semesp
Também diz que oferece descontos e bolsas. “Em torno de 82% dos alunos matriculados na Unitau contam com algum tipo de bolsa estudantil ou incentivo financeiro”, afirmou em nota à BBC News Brasil.
Cortes de custos
Mesmo com a crise de inadimplência, as contas da Unitau não estão no vermelho. Mas isso graças a um grande corte de custos para compensar uma queda da receita na mesma proporção.
Sua receita prevista para 2011, quando houve a polêmica do SPC, foi de R$ 242,3 milhões (em valores corrigidos; R$ 118,7 milhões à época). Agora, a receita prevista para 2022 é R$ 175 milhões, 28% a menos.
As despesas foram reduzidas em 25%, de R$ 220,8 milhões (R$ 107,6 milhões à época) para os R$ 166,9 milhões atuais.
Para construir um novo campus, a universidade vai vender três imóveis avaliados em R$ 28 milhões de reais.
Para Claudia Costin, diretora do Centro de Políticas Educacionais da Fundação Getúlio Vargas, a Unitau tem um problema de subfinanciamento. “Não é uma universidade que tem sustentabilidade no longo prazo”, afirma.
Costin diz que, com base em sua experiência no setor público, não é difícil imaginar que, se universidades públicas tiverem outras fontes de renda, governos recorram a esse argumento para reduzir as verbas que repassam a elas, o que poderia criar problemas semelhantes aos enfrentados pela Unitau.
A economista diz ainda que agora não é o melhor momento para discutir essa mudança por causa da crise provocada na educação pela pandemia.
Mas avalia que a cobrança pode voltar a ser discutida no futuro. Só não acha, ao contrário do General Peternelli, criador da PEC das mensalidades, que a Unitau é um bom exemplo para quando chegar a hora esse debate.
“O Brasil vai ter que discutir isso, mas não temos um modelo acabado em que podemos nos inspirar”, diz Costin.
Procurado pela BBC News Brasil, Peternelli não respondeu até a publicação desta reportagem.
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