- Megha Mohan
- Da BBC World Service
Em Bangladesh, Shagufta Tabassum Ahmed concordou em estudar Direito, seguindo o conselho dos seus pais, mesmo sem intenção de tornar-se advogada. Mas isso mudou quando seu pai foi assassinado. Ela contou à repórter da BBC Megha Mohan sobre a luta de 16 anos por justiça contra os assassinos do seu pai.
Minhas lembranças do dia em que soube do assassinato do meu pai, Taher Ahmed, são nítidas, mas incompletas.
Eu me lembro da sala, mas não lembro quem estava ali. Era uma sexta-feira, mas não me lembro do horário. Eu me lembro de ouvir o telefone fixo tocar, mas não lembro quem da minha família atendeu.
Era meu irmão ligando. “Eles encontraram. Ele foi morto.”
Não tenho certeza de quem repetiu as palavras do meu irmão, mas, naquele momento, a vida que eu conhecia havia terminado.
Minha mãe imediatamente irrompeu em lágrimas. Nós nos sentamos atônitos em silêncio enquanto ouvíamos que o corpo sem vida do meu pai havia sido encontrado em uma fossa séptica na Universidade de Rajshahi [Bangladesh], onde ele trabalhava como professor do departamento de geologia e mineração.
Toda a nossa família ampliada havia se reunido na casa do meu irmão na capital de Bangladesh, Daca. Ele não estava conosco. No dia anterior, ele havia viajado por seis horas de carro até Rajshahi, perto da fronteira com a Índia, em busca do nosso pai.
Minha família começou a falar toda de uma vez, uns interrompendo os outros.
Como? Por quê? Quem iria querer matá-lo?
Meu pai era o acadêmico modesto que preferia andar ou pegar transporte público em vez de comprar um carro extravagante, o professor universitário por quem seus alunos pareciam ter carinho, o marido que participava das compras de alimentos e da cozinha quando isso ainda era incomum em Bangladesh, o pai cuja mão eu sempre segurava para atravessar a rua com 18 anos de idade… Quem poderia querer esse homem morto?
Essa pergunta seria apenas o começo do pesadelo da nossa família.
Dois dias antes, na quarta-feira, 1° de fevereiro de 2006, meu pai havia tomado um ônibus de Daca até a Universidade de Rajshahi.
Ele adorava aquele campus agitado e vibrante, que havia sido nossa casa de família quando eu era jovem. Nós moramos em uma pequena casa no campus, oferecida pela universidade, e tudo o que precisávamos ficava por perto.
Meu irmão Sanzid e eu íamos a pé para a escola de manhã e passávamos a noite no parquinho com os filhos de outros professores da universidade. Nós conhecíamos a todos no campus. Era uma bolha feliz e segura para nós.
Mas, um dia, Sanzid e eu saímos da escola e nos mudamos para Daca. Sanzid começou a trabalhar em recursos humanos para uma grande empresa multinacional.
Por conselho do meu pai – que foi incrivelmente profético, considerando o que viria depois -, estudei direito na universidade. Eu não tinha intenção de me tornar advogada praticante. Pensei que, talvez, após a minha formatura, eu entraria em uma organização não governamental internacional ou me tornaria acadêmica.
Mas o meu pai parecia saber, já naquela época, o que seria melhor para a família. Entrei na universidade em 2006 e minha mãe veio morar comigo em Daca, onde me estabeleci.
Na semana em que ele morreu, meu pai havia vindo para Daca para visitar a nós todos por alguns dias e saiu para Rajshahi no início da tarde da quarta-feira, 1° de fevereiro de 2006. Ele ligou para minha mãe para avisar que havia chegado bem e telefonou de novo algumas horas depois, pouco antes das 21h.
Imagino que ele estivesse se preparando para dormir. A polícia encontraria depois as suas calças penduradas na maçaneta da porta do quarto.
Ele só ficaria vivo por pouco tempo depois disso. O médico legista disse mais tarde que ele foi morto antes de 22h.
Meu pai havia voltado para a universidade, para uma reunião sobre o futuro de um colega, Mia Mohammad Mohiuddin. Ele havia sido um amigo próximo da família, mas o relacionamento entre ele e o meu pai havia terminado abruptamente pouco tempo antes.
Meu pai havia descoberto vários casos de plágio no trabalho de Mohiuddin e levou a questão para os funcionários da faculdade. Uma reunião foi marcada para discutir como o departamento lidaria com a controvérsia.
Mas meu pai não compareceu àquela reunião, nem atendeu nossas ligações. O zelador, Jahangir Alam, disse que ele não estava em casa – curiosamente, acrescentando que não o havia visto chegar.
Alarmada, minha mãe pediu ao meu irmão que viajasse para Rajshahi naquela noite em busca do meu pai. No dia seguinte, 3 de fevereiro de 2006, meu irmão encontrou o corpo sem vida do meu pai na fossa séptica localizada no jardim das acomodações da universidade. A investigação agora era por assassinato.
Por um momento, os olhos do mundo pareciam estar sobre a minha família. A morte do meu pai foi manchete na imprensa, um assassinato misterioso, um romance policial da vida real. Seu rosto brilhava na TV e foi impresso nos jornais. A imprensa local e internacional buscava detalhes hediondos que pudessem tornar a história apelativa. Afinal, homens bons, populares e saudáveis não morrem dessa forma.
Havia muitas perguntas sem resposta. Quem mataria um respeitado professor universitário? Seria por ressentimento pessoal? Radicais islâmicos? O que a história dizia sobre a sociedade de Bangladesh?
Em meio ao pandemônio, eu admirava meu irmão e minha mãe. Eles rapidamente entraram em ação.
Minha mãe foi encontrar meu irmão em Rajshahi para ajudar a polícia, definir uma linha do tempo e verificar todos os suspeitos. Em questão de semanas, Mia Mohammad Mohiuddin (o colega que meu pai havia acusado de plágio), o zelador do alojamento da universidade, Jahangir Alam, e mais quatro pessoas, incluindo o irmão e o cunhado de Alam, foram presos e acusados do assassinato do meu pai.
Durante o julgamento, Jahangir Alam e seus parentes testemunharam que Mohiuddin os havia convencido a matar meu pai, prometendo dinheiro, computadores e empregos na universidade. Mohiuddin negou as alegações.
Em 2008, quatro dos homens foram considerados culpados pelo tribunal de primeira instância de Rajshahi e condenados à pena de morte. Dois foram absolvidos. Eu deveria ter estado lá, mas não fui. Os quatro homens recorreram e o caso foi levado para a Suprema Corte de Bangladesh.
Minha mãe e meu irmão trabalhavam incansavelmente para conseguir justiça para o meu pai. Mas eu me sentia inútil.
Na época do julgamento no tribunal de primeira instância, eu era pouco mais que uma adolescente. Minha família havia me protegido por toda a vida e, mesmo depois da morte do meu pai, eles insistiam que meu único foco deveria ser terminar a universidade. Eles me apoiavam, emocional e financeiramente.
Eu continuei com meus estudos, tentando concentrar-me nos meus livros de direito, mas ainda não tinha certeza do que fazer com a minha vida. Até que, em 2011, o processo do assassinato do meu pai chegou à Suprema Corte.
A Corte concedeu fiança a Mia Mohammad Mohiuddin e ele foi libertado pelo período do julgamento. Ele havia contratado mais de 10 advogados e sua defesa claramente seria elaborada.
Subitamente, meu futuro fez sentido. Eu sabia o que poderia fazer com a minha vida. Eu poderia usar meu diploma para ajudar no caso da procuradoria contra os assassinos do meu pai.
Minha posição era única, eu fazia parte de vários mundos diferentes. Eu poderia colaborar com a minha família e traduzir os documentos em jargão legal para eles. Eu conhecia a polícia, conhecia meu pai e conhecia até dois dos acusados. Eu poderia ser fundamental para que esse processo trouxesse justiça para o meu pai.
Eu me formei na faculdade de direito em 2012 e comecei imediatamente a ajudar os advogados da procuradoria. Em Bangladesh, não há muitas mulheres advogadas trabalhando em processos criminais, mas todos podiam ver o meu valor e fui bem recebida na equipe. Era onde eu passava todo o tempo em que estava acordada. Recusei outros casos para concentrar-me apenas no meu pai.
Em 2013, a Suprema Corte chegou a uma decisão, mantendo a pena de morte para Mia Mohammad Mohiuddin (o colega que meu pai havia acusado de plágio), e para o zelador, Jahangir Alam. Mas os outros dois homens, parentes de Alam, tiveram sua pena de morte reduzida para prisão perpétua. O juiz decidiu que eles haviam auxiliado, mas Mohiuddin e Alam eram os arquitetos da morte do meu pai.
Mas o processo ainda não havia acabado.
O zelador e seus parentes haviam confessado o assassinato do meu pai e todos afirmaram que haviam sido abordados e pagos por Mohiuddin. Mas os advogados de Mohiuddin apresentaram um novo recurso, desta vez para a Divisão de Apelações da Suprema Corte de Bangladesh – o mais alto tribunal de recursos do país.
Eu me debrucei sobre os documentos, preparando papéis, formando linhas do tempo, elaborando perfis criminais, falando com advogados e acalentando o espírito do meu irmão e da minha mãe. Noites a fio, fins de semana, vários Ramadãs, todos foram gastos orando e mantendo em mente nosso objetivo – justiça e paz para o nosso pai.
Eu agora era uma advogada determinada com uma missão, na casa dos 30 anos de idade, e não mais a menina adolescente nervosa que teve seu mundo destruído em 2006. Mas estávamos presos ao cronograma dos tribunais. Esperamos oito longos anos para que o recurso pudesse ser ouvido.
Mia Mohiuddin é um homem rico e com boas conexões. Seu cunhado é um influente político de Bangladesh.
Ele tinha recursos e uma grande equipe de advogados à sua disposição. Esses advogados argumentavam que ele não tinha relação com a morte do meu pai, que ele e meu pai sempre foram amigos próximos e que não havia nenhuma prova física contra ele – apenas provas circunstanciais.
Não importava que os outros três homens tivessem fornecido confissões detalhadas, nem que seu comportamento após o crime não fosse o esperado de alguém próximo da nossa família. Mohiuddin, o homem que havia nos visitado com tanta frequência anos antes, permaneceu distante do funeral do meu pai – ele foi o único membro da faculdade a não comparecer. Nem visitou nossa família para oferecer apoio.
A Suprema Corte, com muitos casos em atraso para julgamento, só incluiu na pauta o processo do meu pai no final de 2021. E foi apenas em 5 de abril de 2022 que os juízes, liderados pelo juiz Hasan Foez Siddique, concluíram que Mia Mohammad Mohiuddin era culpado do assassinato do meu pai e mantiveram sua pena de morte.
Depois do julgamento, publiquei uma declaração em nome da família, afirmando que estávamos felizes com o veredicto, mas não tenho certeza se “feliz” era a palavra certa. Ainda não tenho as palavras para descrever o que nossa família passou nesses últimos 16 anos. A dor é inimaginável. Às vezes me pergunto se algum dia terei paz, sabendo que meu pai morreu daquela forma.
A luta para trazer justiça para o meu pai dominou minha vida adulta, ao ponto de que minha própria vida foi colocada de lado. As pessoas me perguntam se eu vou me estabelecer e ter minha própria família.
Talvez, depois que os assassinos do meu pai estiverem mortos. Talvez aí eu possa sentir que acabou. Meu pai era o meu mundo. Ele era um homem muito bom, decente, simples e sábio.
O que os assassinos fizeram para o meu pai, simplesmente porque Mohiuddin corria o risco de perder o emprego, é impensável. Mas, por ele, vou continuar, lutar por justiça e viver uma boa vida.
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