- Mariana Alvim e Leandro Machado
- Da BBC News Brasil em São Paulo
Uma das primeiras vacinas a ser dada a uma criança que nasce no Brasil, a BCG passará a ter fornecimento diminuído nos próximos meses devido a problemas que o Ministério da Saúde tem tido para obter as doses do imunizante, que previne a tuberculose.
No final de abril, o Ministério da Saúde disparou para as secretarias estaduais uma circular afirmando que, “dada a disponibilidade limitada da vacina BCG no estoque nacional em razão de dificuldades na aquisição deste imunobiológico”, o envio pelo ministério diminuirá de 1,2 milhão de doses por mês (média de janeiro a março de 2022) para 500 mil doses mensais nos próximos sete meses.
No documento, o ministério pediu para os Estados “otimizarem e fazerem uso racional desta vacina por este período” até que “a situação do estoque nacional da vacina BCG seja regularizada”. Idealmente, o imunizante deve ser aplicado ainda na maternidade — no máximo, até o fim do primeiro mês de vida.
A BBC News Brasil enviou e-mail a todas as secretarias estaduais do país perguntando sobre a disponibilidade da vacina BCG. Das 17 que responderam, todas afirmaram que atualmente não há falta de doses, mas algumas mencionaram estarem se readequando para os próximos sete meses, em que o envio pelo ministério será reduzido.
As secretarias de Mato Grosso, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte e Santa Catarina afirmaram que enviaram aos municípios a orientação para que controlem o uso dos frascos, para que não haja desperdício; e para que passem a oferecer a vacinação somente em locais selecionados, em alguns casos com agendamento.
A cidade de Cachoeira do Sul, no Rio Grande do Sul, já anunciou para a população mudança no esquema de vacinação. Até o aviso do Ministério da Saúde, o município aplicava a vacina em 10 unidades de saúde espalhadas pela cidade. Agora, ela é dada em apenas três postos — e com agendamento.
“Na última remessa de vacinas não recebemos nenhuma dose de BCG”, diz Marcelo Figueiró, secretário de Saúde de Cachoeira do Sul.
Segundo ele, um lote de BCG chegava à cidade com 20 doses.
“Muitas vezes, você precisa abrir um lote inteiro para dar poucas vacinas. Aquelas que sobram precisam ser descartadas depois de seis horas da abertura. Então, estamos tentando racionalizar e ter um melhor controle sobre esse uso para que a gente perca o mínimo de doses possíveis, já que nos próximos meses pode faltar vacina”, diz.
Desde 2016, a única fábrica nacional que produz a BCG e a Onco BCG, pertencente à Fundação Atalpho de Paiva (FAP), no Rio de Janeiro (RJ), passou por sucessivas interdições da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) — e, a partir daí, o fornecimento da vacina no país passou a ficar intermitente.
A assessoria de imprensa da Anvisa informou à BBC News Brasil que a fábrica, no bairro de São Cristóvão, segue interditada. Enquanto isso, uma nova fábrica da fundação em Duque de Caxias (RJ), em construção desde 1989, ainda não foi inaugurada (leia mais abaixo).
O Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) abriu um inquérito em fevereiro para investigar possíveis irregularidades na gestão da fundação.
Um laudo da Anvisa que levou à interdição em 2016, obtido pela BBC News Brasil via Lei de Acesso à Informação, afirmou que “a fabricação dos produtos Vacina BCG e Imuno BCG [a marca da Onco BCG feita pela instituição] pela Fundação Ataulpho de Paiva na fábrica localizada em São Cristóvão (Rio de Janeiro – RJ) apresenta risco à saúde da população brasileira”. Foram constatadas “4 não conformidades críticas” — o que significa um “desacordo com os atributos críticos” do produto ou algo que “possa apresentar risco latente ou imediato à saúde”.
Segundo e-mail enviado pela Anvisa à reportagem no último dia 16, “a fábrica da Fundação Athaulpho de Paiva (FAP) localizada no bairro de São Cristóvão (RJ) se encontra paralisada pela empresa para a realização de ajustes e correções decorrentes da última inspeção sanitária”.
“A fabricação não pode ser retomada até que os ajustes necessários sejam concluídos e, novamente, a fábrica seja inspecionada para se verificar a efetividade das correções”, continua.
Desde que os problemas com a produtora nacional começaram, o Brasil tem obtido doses de BCG com o Fundo Rotatório da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), braço regional da Organização Mundial da Saúde (OMS). O fundo fornece vacinas e insumos, como seringas, a governos locais e nacionais que não têm produção nacional disponível.
O Ministério da Saúde não respondeu exatamente por que haverá redução no quantitativo nos próximos sete meses e se houve algum problema com o fornecimento através do Fundo Rotatório.
Em nota, a pasta escreveu: “Essa readequação se refere a toda tramitação do processo de aquisição, que envolve a compra propriamente, o desembaraço alfandegário e autorização pela Anvisa para a entrada do produto no país, o qual, posteriormente, é enviado para análise do controle de qualidade do INCQS antes de ser distribuído para as salas de vacina.”
Fundação nacional é investigada
Nos anos 1980, a Fundação Ataulpho de Paiva (FAP) foi uma das instituições que receberam investimentos por meio do Programa de Autossuficiência Nacional em Imunobiológicos (Pasni) — que visava justamente garantir uma produção nacional, sem que o país precisasse passar por todos os trâmites aos quais está sendo submetido agora na importação. Nascida em 1900, a FAP é uma entidade privada, sem fins lucrativos e filantrópica.
Quando o funcionamento da fábrica da FAP em São Cristóvão estava regular, as vacinas BCG eram compradas pelo governo federal através da modalidade “inexigibilidade de licitação”, uma vez que esta era a única produtora no país do imunizante. Em uma proposta de convênio com o Ministério da Saúde, de 2016, a instituição defendeu que “tornou o Brasil sempre autossuficiente na produção da Vacina BCG, nunca tendo havido a necessidade de importação deste produto”.
Em 1989, a FAP iniciou a construção de uma nova fábrica em Xerém, Duque de Caxias (RJ). Segundo o site da fundação, a nova unidade tem com objetivo produzir a BCG de forma a “suprir a demanda nacional e parte da internacional, uma vez que a instituição recebe consulta de vários países.” Mas, 33 anos depois, a fábrica ainda não está cumprindo seu objetivo. A Anvisa afirmou à reportagem que a unidade em Xerém ainda não tem autorização para fabricar vacinas porque não recebeu pedido da fundação para realizar a inspeção, o que pode ocorrer apenas após a conclusão das obras.
Procurada, a FAP afirmou, por meio do seu presidente, Germano Gerhartdt Filho, que a fábrica “já iniciou sua operação, nas áreas e atividades de armazenamento, embalagem e venda de produtos” e que está em “processo de regularização perante a Anvisa” para “dar continuidade à comercialização e fornecimento de BCG e Onco BCG”. Ou seja, a fábrica está produzindo outros itens mas ainda não fabrica as vacinas.
Por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) e consultas ao Portal da Transparência, a BBC News Brasil identificou convênios do Ministério da Saúde com a entidade destinados especificamente à nova fábrica em Xerém que somaram R$ 41,9 milhões em verbas, dos quais mais ou menos metade (46,5%) haviam sido liberados.
Na realidade, esse montante é possivelmente maior, já que não foi possível localizar informações sobre gastos com o projeto desde os anos 1980 — só a partir de 2012. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) emprestou ainda R$ 5,9 milhões à fundação por meio de um programa do Ministério da Saúde que visava desenvolver e modernizar o parque industrial brasileiro na área da saúde.
Em fevereiro deste ano, o MP-RJ abriu um inquérito civil para “investigar possíveis irregularidades na gestão da Fundação Ataulpho de Paiva e supostas condutas ilegais praticadas pelos membros de sua diretoria” a partir de uma denúncia encaminhada à ouvidoria do órgão, segundo seu diário oficial.
Em nota enviada à reportagem, o presidente da FAP afirmou que “houve falsa acusação de irregularidade na gestão da entidade, promovida por um ex-funcionário, com nítido interesse de chantagear a fundação, na vã esperança de que faremos um acordo em ação trabalhista por ele movida”.
“Prestamos todas as informações e continuaremos à disposição do Ministério Público, para evitar qualquer suspeita sobre esta centenária e importante instituição para o país”, escreveu Gerhartdt Filho, acrescentando que “não condizem com a verdade as acusações de irregularidade administrativas”.
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