- Carlos Serrano (@carliserrano)
- BBC News Mundo
Os pacientes da dra. Gwen Adshead são o que a sociedade costuma considerar “monstros”.
Adshead é psiquiatra forense e trabalha há décadas como terapeuta de pessoas envolvidas em formas perversas de violência.
Grande parte da sua experiência vem do seu trabalho no hospital psiquiátrico de alta segurança Broadmoor, na Inglaterra.
Em conjunto com a escritora e dramaturga Eileen Horne, Adshead é coautora do livro The Devil You Know: Stories of Human Cruelty and Compassion (“O demônio conhecido: histórias de crueldade e compaixão humanas”, em tradução livre). Nele, Adshead conta as histórias de 11 dos seus pacientes.
Um deles é Tony, assassino em série que decapitou sua primeira vítima. Outra é Zahra, que gostava de colocar fogo em outras pessoas. E há Ian, que abusou sexualmente dos seus dois filhos.
Em entrevista à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, Adshead fala da complexidade dessas pessoas e como seu trabalho concentra-se em compreender o que os levou a cometer tamanha crueldade.
Ela acredita que entender melhor o comportamento dessas pessoas, além de simplesmente julgá-las, pode ajudar a evitar outros atos violentos, além de desafiar muitas das nossas ideias sobre a natureza humana.
BBC News Mundo: Qual a origem do título do seu livro?
Gwen Adshead: Ele vem de um provérbio que diz que talvez seja melhor conhecer seus próprios demônios do que não conhecê-los. Ele indica que, sem saber quais demônios você tem, é possível que você se surpreenda, ou que seja subjugado por eles.
Quando Eileen Horne, coautora do livro, sugeriu esse título, ele me chamou a atenção porque senti que tem muito a ver com meu trabalho como terapeuta. De certa forma, o que as pessoas fazem é explorar seus demônios internos.
Se considerarmos que talvez todos nós tenhamos a capacidade de produzir muita maldade, embora a maioria de nós felizmente nunca o fará, a maioria de nós temos demônios que precisam ser explorados.
Grande parte do meu trabalho como terapeuta é abrir um espaço no qual as pessoas possam falar sobre esses aspectos de si próprios, que são aterrorizantes e capazes de causar muita crueldade.
BBC: Conhecendo essas histórias, imagino que seja quase inevitável perguntar se nós mesmos seríamos capazes de cometer esse tipo de ação…
Adshead: Com certeza… e sempre me perguntei se essa seria uma das razões pelas quais sempre mostramos essas pessoas na imprensa. De fato, a palavra “monstro” possui relação etimológica com a palavra “mostrar”.
Existe alguma coisa na forma em que colocamos as pessoas nos meios de comunicação, nas redes sociais, nos jornais, na televisão… Nós expomos esses “monstros” e pensamos “oh, que bom que eles estão ali!” Acho que isso talvez nos ajude a sentir que não somos como eles.
Mas a verdadeira preocupação é: será que, sob certas circunstâncias, todos nós teríamos a capacidade de fazer algo monstruoso? Se muitos fatores de risco se reunirem, nós teríamos a capacidade de cometer crueldade extrema? Esta é uma pergunta muito importante.
BBC: E existe resposta para essa pergunta? Todos podemos virar “monstros”?
Adshead: Sim, acredito que todos nós temos esse potencial. Se os fatores de risco corretos se alinharem, sim, somos capazes de cometer grandes crueldades.
BBC: A sra. emprega o conceito de “entender a crueldade”. O que significa?
Adshead: Quando falamos na maldade humana, frequentemente a reduzimos ao fato de ser cruel com outras pessoas.
Acredito que aquilo que tendemos a considerar mais maléfico envolve infligir crueldade deliberadamente a pessoas que são extremamente vulneráveis. Por isso, no meu trabalho, costumo concentrar-me principalmente em ajudar as pessoas a examinar como conseguiram chegar a ser tão cruéis com outra pessoa.
O que tento é fazer com que eles explorem, expliquem e expressem os sentimentos, as emoções subjacentes a esses atos de grande crueldade.
BBC: E a sra. também diz que procura aplicar “empatia radical” em seus pacientes. Como assim?
Adshead: A ideia geral de empatia refere-se a sermos capazes de colocar-nos no lugar de outra pessoa.
Quando vemos alguém que está angustiado ou incomodado, tentamos imaginar o que sente essa pessoa e podemos até chegar a sentir reações emocionais com relação a ela.
Você com certeza perceberá que, se estivermos sentados ao lado de alguém que está angustiado, muitas vezes nos sentimos tristes. Isso faz parte da reação empática.
Mas, quando se trabalha com pessoas que foram cruéis e têm estado mental desorganizado, é preciso criar uma distância. Você precisa manter-se próximo, mas também a uma certa distância, se quiser chegar à origem das coisas.
Assim me surgiu a ideia da “empatia radical”, que é um tipo de empatia que tenta chegar à origem das coisas, mas também mantém certa distância que permite manter a perspectiva, não apenas dessa pessoa e do que ela fez, mas das pessoas que ela prejudicou, de forma a não perder as vítimas de vista.
BBC: A sra. acredita que essa “empatia radical” poderia ser aplicada além do seu âmbito profissional, na vida diária das pessoas?
Adshead: A empatia radical tornou-se uma necessidade no meu trabalho, como uma forma de manter a mente aberta e criar espaços para ajudar esses homens e mulheres a reconhecer sua crueldade. Mas acredito que, se eu posso fazê-lo, qualquer pessoa também pode. Não acho que seja uma habilidade muito especial.
E acredito que seja muito importante não rotular pessoas diferentes de mim, especialmente nesses tempos em que parece que temos estados mentais muito polarizados. Talvez tenhamos mais coisas em comum com essas pessoas do que pensamos, mesmo se elas tiverem posições políticas diferentes ou opiniões sobre vacinas que você não compartilha.
BBC: Qual seria o limite entre ter empatia radical e justificar a crueldade?
Adshead: No livro, procurei deixar claro que nós que trabalhamos como terapeutas de agressores nunca, nunca oferecemos uma desculpa para o que ocorreu. Não se trata de procurar desculpas, mas sim de entender e explicar como alguém chegou a cometer esses atos.
A violência que presenciei no âmbito do meu trabalho é altamente incomum. A maioria das pessoas não expressa suas emoções com crueldade. Quanto mais informações pudermos coletar sobre como alguém chegou a esse ponto, melhor poderemos entendê-los para administrar o risco no futuro.
Por isso, é conveniente para todos entender essa violência, mas ninguém está sugerindo que essa explicação seja uma desculpa.
Por outro lado, os tribunais existem para expressar nossa condenação social a pessoas que agem com crueldade e isso me parece totalmente razoável. Certamente condenamos essas ações porque queremos deixar claro que isso não está certo e que a pessoa deve ser responsabilizada pelo que fez.
Minha experiência é principalmente com pessoas que cometeram assassinatos em momentos em que não estavam bem mentalmente. Acredito que, para essas pessoas, parece ser útil compreender como elas foram capazes de fazer isso. Assim, elas podem assumir maior responsabilidade moral e criminal, da forma em que a sociedade quer que seja feito.
Por isso, é uma situação na qual todos ganhamos.
BBC: Quais são os principais mitos ou premissas que temos com relação às pessoas que cometem essas ações?
Adshead: Em primeiro lugar, é preciso considerar que não trato de criminosos de guerra. Não tenho nenhuma autoridade ou experiência para falar sobre o que acontece na mente de pessoas que instigaram eventos como o Holocausto, por exemplo.
Embora me pareça interessante que não se tenha pensado que essas pessoas tivessem alguma doença mental, eu trato apenas de pessoas cuja violência parece estar relacionada com algum tipo de transtorno da mente. E, nesse grupo específico, observei algumas situações.
A primeira é que muitos deles vêm de ambientes muito perturbados e foram expostos a vários tipos de traumas durante a infância. Particularmente, eles foram expostos a violência física e descuidos crônicos.
São pessoas que viveram com pais que eram violentos entre si e abusavam de substâncias tóxicas. Esses fatores aumentam significativamente o risco de cometer violência na idade adulta.
Outro fato que observei é que são pessoas que perderam ou nunca tiveram a capacidade de relacionar-se com outras pessoas.
Essa capacidade de ter prazer nas relações sociais é algo que presumimos como natural. Pessoas como você e eu somos capazes de sair e tomar um café ou caminhar com alguém. Essa capacidade é algo que muitas vezes está ausente nas pessoas com quem trabalho.
BBC: A sra. também diz que, ainda que os números demonstrem que as mulheres são menos violentas, a realidade é muito mais complexa…
Adshead: Sim, é verdade… é um fato inegável que, em números absolutos, muito menos mulheres agem de forma violenta que os homens.
Esses números são incontestáveis, mas a razão é uma pergunta digna de um prêmio Nobel. A resposta é que existem muitos fatores diferentes, mas há dois aspectos específicos que me interessam.
O primeiro é se existe algo no tipo de masculinidade que é oferecido aos meninos e aos homens jovens que cause aumento do risco de violência. E, no lado oposto, se há algo na feminilidade que possa resultar como protetor para as mulheres.
O que observei no meu trabalho com mulheres é que o seu estado de crueldade é muito similar ao dos homens. Ou seja, não há diferença nos níveis de crueldade. A diferença está na quantidade de pessoas que acabam por agir dessa forma.
Por isso, é interessante compreender como se passa do estado mental para a ação.
BBC: É correto afirmar que existem pessoas geneticamente violentas?
Adshead: Não, não é verdade. Existem muitas pesquisas nesse campo e não há absolutamente nenhuma evidência de que haja genes para a violência.
O que existe são genes para neurotransmissores que, até certo ponto, poderiam colaborar para que uma pessoa se alterasse. Pode haver alguma disposição genética para os transtornos do estado emocional que podem contribuir um pouco com esse risco, mas isso representa apenas uma parte do risco de violência.
Outra coisa também já esclarecida é que os nossos genes são modificados pelas nossas experiências.
Voltando a falar um pouco sobre os traumas da infância, uma pergunta interessante é se existe alguma coisa na exposição crônica a traumas durante a infância que tenha consequências sobre o desenvolvimento dos genes de certos neurotransmissores. Esta é uma pergunta empírica, mas, mesmo se puder ser demonstrado, está tão longe de um ato violento que realmente não é significativo.
Se quisermos reduzir o nível de violência no mundo, não será olhando para os genes das pessoas. Conseguiremos observando como as pessoas se enfurecem, como elas entram em conflitos e como as pessoas começam a compreender a mente dos demais.
BBC: A sra. acredita que o seu trabalho serve de alguma forma para os familiares das vítimas?
Adshead: Trabalhei com muitas pessoas que assassinaram seus familiares. Muitas vezes, eles têm parentes que vão visitá-los no hospital e mantêm relacionamentos.
Um familiar matar outro é uma catástrofe para toda a família. Minha experiência é que, nessas circunstâncias, muitas vítimas sentem alguma satisfação por seu familiar estar recebendo ajuda.
Trabalhei em clínicas de traumatologia e conheci vítimas de violência muito grave que mantêm a esperança de que a pessoa que as atacou receba ajuda.
As pessoas podem chegar a ser incrivelmente generosas nesse sentido, mas também conheci vítimas que estavam cheias de raiva e com desejo de vingança, o que é compreensível. Entendo e seria loucura da minha parte não entender essa reação.
BBC: O que a sra. sente quando trata dos seus pacientes?
Adshead: Tristeza, uma tristeza esmagadora. Minha experiência como terapeuta me deu um novo nível para o significado da palavra “tragédia”.
Tragédia vem dos antigos gregos, quando a pessoa comete uma ação com consequências irreversíveis. Por isso, você nunca consegue voltar ao lugar onde estava antes.
Na vida, há muitas coisas que podemos mudar e avançar para algo melhor, mas, quando você mata alguém, é como se destruísse um planeta. É como diz o Talmud, “quem mata uma pessoa age como se matasse um mundo inteiro”.
Acho trágico quando isso acontece. É trágico para quem morre e para aqueles que o rodeiam, mas também para o perpetrador, porque ele não pode retornar para a vida que tinha antes.
Por isso, a sensação mais esmagadora para mim é sempre a tristeza e um sentimento de profunda tragédia.
BBC: Quais lições a sra. destaca da sua experiência trabalhando com os pacientes?
Adshead: Existe uma boa notícia: a violência muito grave, particularmente por parte de pessoas com doenças mentais, é muito incomum. Mas, por outro lado, o fato de que seja incomum faz com que precisemos levá-la muito a sério.
Precisamos investir tempo, dinheiro e esforços para nos aproximarmos dos problemas que fazem com que as pessoas ajam de forma violenta porque, quanto melhor os compreendermos, mais probabilidade teremos de organizar-nos para evitar que eles ocorram no futuro.
Em nível pessoal, meus pacientes me ensinaram as imensas possibilidades para que as pessoas mudem para o bem. Que mesmo as pessoas que cometeram atos terríveis podem mudar para o bem, não sem pagar um preço e não sem angústia.
Aprendi que, na verdade, poucas pessoas não conseguem mudar se não se propuserem a fazê-lo. Já fiquei impressionada e comovida pela coragem demonstrada por algumas pessoas dispostas a examinar seus estados mais obscuros e transtornados, dispostas a assumir esse risco. Acredito que isso traz esperanças para todos nós.
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