A pouco mais de cinco meses das eleições no Brasil – e sem ter um embaixador americano no país -, membros do alto escalão do governo Joe Biden e do Congresso dos Estados Unidos receberam nesta semana um dossiê em que diversos acadêmicos e instituições da sociedade civil no Brasil e nos EUA pedem aos americanos que se mantenham vigilantes sobre o pleito de 2022 e priorizem as liberdades individuais e a democracia em sua relação diplomática com o país, acima de interesses geopolíticos e comerciais.
“Bolsonaro está criando condições para um ambiente eleitoral muito instável e, se perder, o mundo deve lembrar o ataque de 6 de janeiro de 2021 ao Capitólio dos EUA e estar preparado para testemunhar uma versão provavelmente mais extrema disso no Brasil”, afirma o documento de 25 páginas, ao qual a BBC News Brasil teve acesso.
O dossiê aponta semelhanças entre o comportamento de Bolsonaro e o do ex-presidente americano Donald Trump para chamar a atenção do governo dos EUA. “Reminiscente da retórica de Trump em 2020, Bolsonaro já disse que pode não aceitar os resultados da eleição de 2022, criando um terreno fértil para desinformação e atos extremistas”, diz o documento.
Trump, por sua vez, acusou o sistema eleitoral americano de ser fraudulento antes mesmo que as eleições acontecessem e, depois de fechadas as urnas, moveu diversas ações judiciais contra sua derrota, tentou convencer os atores políticos a não chancelarem os resultados e conclamou seguidores a uma manifestação que terminou com a invasão ao Congresso americano, episódio em que cinco pessoas morreram.
O presidente brasileiro ecoou as acusações sem provas de Trump sobre fraude eleitoral nos EUA e retardou os cumprimentos oficiais ao sucessor do republicano, o democrata Biden.
No Brasil, Bolsonaro fez campanha pelo voto impresso e chegou a promover um desfile de tanques em Brasília enquanto o Congresso decidia sobre como aconteceria a votação no país em 2022. Esta semana, o presidente brasileiro mais uma vez repetiu que as urnas eletrônicas não são auditáveis e que pode haver “suspeição” no processo eleitoral.
Concorrendo à eleição, Bolsonaro aparece em segundo lugar nas sondagens eleitorais até o momento, atrás do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
“Bolsonaro não está preocupado com a integridade das eleições, e está tentando encontrar qualquer motivo para contestar os resultados – mesmo antes que a eleição ocorra”, afirma o relatório entregue aos americanos.
O documento foi elaborado por professores da Universidade de Miami, Universidade Brown, Universidade da Virginia, Universidade da Cidade de Nova York (CUNY), entre outros, e compilado pelo Washington Brazil Office, com o apoio de organizações como o Greenpeace, a Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI), a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), a Artigo 19, o Instituto Sou da Paz, entre outros.
O texto qualifica os discursos do presidente brasileiro no último dia 7 de setembro como “comícios pró-golpe”. Na ocasião, Bolsonaro chegou a dizer que não mais cumpriria decisões judiciais de um dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes. O relatório diz ainda que “Bolsonaro mostrou ser uma ameaça à democracia brasileira” e que “as instituições jamais estiveram tão ameaçadas desde a redemocratização”.
Ao mencionar como perfis bolsonaristas na web fizeram circular, em 2018, um vídeo falso que sugeria que a urna eletrônica convertia o voto em Bolsonaro para Fernando Haddad (PT), o dossiê menciona que a mensagem, originalmente postada por Flávio Bolsonaro, foi replicada por um velho conhecido dos democratas, o Youtuber Paul Joseph Watson, do site Infowars, um dos maiores disseminadores de notícias falsas nas eleições presidenciais americanas de 2016 e 2020 e um apoiador de Donald Trump.
“Seus constantes ataques (de Bolsonaro) às eleições devem levar governos internacionais a apoiar a democracia brasileira”, afirma o documento, que menciona ainda o aumento nos índices de desmatamento na atual gestão e a conturbada relação do Executivo com minorias, como os povos indígenas.
‘Tentam dar ar de legalidade às eleições com observadores internacionais‘
O dossiê é distribuído à Casa Branca e a todos os congressistas dos EUA no mesmo momento em que o presidente Jair Bolsonaro volta a colocar em dúvida o processo eleitoral no Brasil. Em um evento no Palácio do Planalto nesta quarta (27/4), Bolsonaro sugeriu que o Exército deveria fazer uma dupla checagem do pleito, em outubro.
“Quando encerra eleições e os dados chegam pela internet, tem um cabo que alimenta a sala secreta do TSE. Dá para acreditar nisso? Sala secreta, onde meia dúzia de técnicos diz ‘quem ganhou foi esse’. Uma sugestão é que neste mesmo duto seja feita uma ramificação, um pouco à direita, porque temos um computador também das Forças Armadas para contar os votos”, afirmou o presidente. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) nega que exista uma sala secreta como a mencionada pelo presidente.
No último fim de semana, o ministro do STF e ex-presidente do TSE Luís Roberto Barroso disse em um evento de uma universidade alemã que “desde 1996 não tem um episódio de fraude no Brasil. Eleições totalmente limpas, seguras e auditáveis. E agora se vai pretender usar as Forças Armadas para atacar? Gentilmente convidadas a participar do processo (eleitoral), estão sendo orientadas para atacar o processo e tentar desacreditá-lo?”
A afirmação de Barroso foi alvo de uma nota do Ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, que a qualificou como uma “ofensa grave”.
Em meio às tensões entre os poderes, em meados de abril, o TSE disparou pedidos a diversos órgãos internacionais para que sirvam de observadores do processo eleitoral no Brasil este ano. Entre os convidados, estão a União Europeia, a Organização dos Estados Americanos (OEA), o Carter Center, organização fundada pelo ex-presidente dos Estados Unidos Jimmy Carter, o Parlamento do Mercosul (Parlasul), a União Interamericana de Organismo Eleitorais (Uniore), a Fundação Internacional para Sistemas Eleitorais (IFES) e a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).
A presença de observadores eleitorais internacionais não é novidade. Ainda assim, o presidente Bolsonaro reagiu com irritação à iniciativa.
“O pessoal quer dar ar de legalidade (às eleições) convidando observadores internacionais. Imagine chegando aqui um americano, um japonês, um angolano, um sueco, vai fazer o quê? Vai ficar olhando, de longe, o cara apertar o botão e de repente à noite sai o resultado. Que observação é essa? Que legalidade é essa? Com que segurança ele pode dizer que aconteceram essas eleições?”, questionou Bolsonaro, nesta quarta, em evento no Palácio do Planalto.
Os responsáveis pelo dossiê, no entanto, advogam que essa é a hora para que a audiência internacional e, especialmente, a americana, volte seus olhos para o Brasil. Segundo Paulo Abrão, ex-secretário Executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e um dos diretores do Washington Brazil Office, responsável pela elaboração do dossiê, alguns parlamentares americanos discutem a possibilidade de criar um grupo formal de “amigos do Brasil” para acompanhar o processo eleitoral.
“Estamos chamando a comunidade internacional para olhar para o Brasil ainda antes da eleição em si e acompanhar o processo. A voz dos EUA respaldando o resultado de uma eleição sempre é muito importante para definir os cenários na comunidade internacional”, afirmou Abrão à BBC News Brasil.
O dossiê foi remetido a Biden por meio de alguns de seus principais assessores, como o Enviado Climático John Kerry, o assessor presidencial para América Latina Juan Gonzalez, o conselheiro de segurança nacional Jake Sullivan e a diretora da agência USAID Samantha Power. Sullivan e González estiveram em visita ao Brasil em agosto do ano passado. Na ocasião, diante de críticas públicas de Bolsonaro ao sistema eleitoral brasileiro, Gonzalez fez comentários públicos sobre a democracia brasileira.
“Fomos muito diretos em expressar nossa confiança na capacidade de as instituições brasileiras conduzirem uma eleição livre e limpa e enfatizamos a importância de não ser minada a confiança no processo de eleições, especialmente porque não há indício de fraude nas eleições passadas”, disse à época, Gonzalez, sobre o teor da conversa com Bolsonaro.
A BBC News Brasil apurou que circula entre os parlamentares democratas na Câmara dos Representantes dos EUA a possibilidade de uma “visita informativa” a Brasília de alguns congressistas na segunda quinzena de agosto, para acompanhar o processo eleitoral brasileiro. O engajamento do Congresso americano também será importante para aprovar o nome da indicada de Biden para a Embaixada dos EUA no Brasil, Elizabeth Bagley, antes de outubro, o que é visto como provável. Assim, os EUA teriam um observador do mais alto nível em território brasileiro permanentemente.
Esta semana, o Departamento de Estado dos EUA mandou uma delegação de alto nível para reuniões com o Itamaraty e outras autoridades brasileiras no país. Questionados em coletiva de imprensa sobre as eleições, as autoridades americanas reafirmaram que confiam na capacidade das instituições brasileiras de conduzir uma eleição condizente com as escolhas do povo brasileiro.
“A gestão Biden muito provavelmente não vai expressar apoio a nenhum dos candidatos. Mas no caso de uma crise envolvendo as eleições, espero que o atual governo americano apoie a democracia e os resultados democráticos. E até por isso é importante informar os congressistas americanos sobre o estado de coisas no Brasil, especialmente sobre o pleito, para que o legislativo consiga colocar pressão sobre o governo Biden para agir da maneira correta se houver mesmo uma crise nas eleições brasileiras”, disse à BBC News Brasil Alexander Main, diretor de política internacional do think tank Center for Economic and Policy Research, em Washington D.C., e um dos diretores do Washington Brazil Office.
O governo de Joe Biden tem a defesa da democracia como uma de suas principais bandeiras globais e, em dezembro do ano passado, organizou um encontro com mais de cem países para discutir os desafios aos regimes democráticos ao redor do mundo. O Brasil foi um dos convidados.
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