Crédito, Masahiro Ichikawa

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Masahiro Ichikawa, representante da Sociedade de Preservação do Monumento do Memorial do Incidente da Vila Fukuda

  • Author, Fatima Kamata
  • Role, De Tóquio para a BBC News Brasil

O terremoto de magnitude 7.9 na escala Richter e os abalos secundários que provocaram incêndios e tempestades de fogo em Tóquio e arredores, cem anos atrás, deixaram mais de 105 mil pessoas mortas ou desaparecidas, além de destruir 40% da capital japonesa.

Entre as vítimas desse grande desastre natural ocorrido às 11h58 do dia 1º de setembro de 1923, havia também pessoas que foram massacradas por grupos de vigilantes.

Formados por civis armados com lanças de bambu, espadas e armas, a princípio para controlar o caos que se seguiu ao Grande Terremoto de Kanto, eles acabaram fazendo milhares de vítimas com base em rumores como o de que coreanos estavam se revoltando e cometendo atos de sabotagem.

A Coreia foi anexada ao Japão entre 1910 e 1945, e naquela época os coreanos eram repetidamente interrogados nas ruas e alguns agredidos, levando a muitos casos de assassinato.

Na ausência de informações confiáveis e de medidas de socorro eficazes, reinaram o pânico e a confusão nos dias que se seguiram ao Grande Terremoto.

Também a partir de boatos, a polícia emitiu alertas para a população tomar cuidado com coreanos “que estariam planejando crimes violentos e motins, tirando partido da situação caótica”.

De acordo com relatório divulgado em 2008 pelo Comitê Especial formado para estudar as lições aprendidas com o Grande Terremoto de 1923, o número de vítimas varia conforme as fontes, podendo chegar a 6.644 pessoas mortas.

Quase todos eram coreanos, havendo ainda chineses e japoneses confundidos com eles.

Muitas das vítimas nipônicas vinham de províncias distantes da capital Tóquio e falavam o dialeto natal, incompreensível para os moradores locais, ou então pertenciam ao grupo discriminado buraku (áreas onde viviam pessoas consideradas impuras durante o período Edo).

Para ocultar suas origens, essas pessoas procuravam vestir roupas japonesas e pronunciar corretamente termos como juugo en (15 ienes) e gojuu sen (50 centavos).

Um livro escrito a partir da curiosidade de Yayoi Tsujino, uma dona de casa amante de história, relata um dos incidentes ocorrido como resultado do caos, discriminação e boatos. O Incidente na Vila Fukuda: A Tragédia Desconhecida conta o ocorrido na vila Fukuda (atual cidade de Noda, em Chiba), cinco dias depois do Grande Terremoto de Kanto.

Um grupo de 15 vendedores ambulantes vindos da província de Kagawa (sul do Japão) descansava em um santuário, quando foi cercado por vigilantes e aldeões.

Ao ouvirem o dialeto sanuki (típico da região de Kagawa), eles presumiram que fossem coreanos. Nove pessoas foram mortas, sendo três crianças de 2 a 6 anos e uma mulher grávida, e os corpos foram lançados no rio.

Oito membros do grupo de vigilantes foram presos e condenados a dois a dez anos de prisão, mas posteriormente libertados com perdão após a ascensão do Imperador Showa ao trono (em 1926).

Embora o incidente tenha sido noticiado nos jornais da época, ele ficou esquecido por muito tempo, aparecendo depois em um artigo publicado por um jornal em 1986.

Masahiro Ichikawa trabalhava na prefeitura de Noda quando soube do incidente, e desde então trabalha para que essa história não seja esquecida.

“Só podemos pensar no futuro se não nos esquecermos do passado, seja ele positivo ou negativo”, diz Ichikawa em entrevista à BBC News Brasil.

Funcionário público aposentado, Ichikawa lidera o grupo que trabalhou em conjunto com o lado das vítimas da província de Kagawa, e juntos levantaram em 2003, um monumento fúnebre em memória às vítimas do incidente na vila Fukuda. Lamenta que apenas cem anos depois do caso tenha havido o pronunciamento oficial de uma autoridade local.

Em junho deste ano, pela primeira vez, o prefeito da cidade de Noda, Yu Suzuki, discursou sobre o tema e manifestou as condolências às famílias das vítimas.

Crédito, Masahiro Ichikawa

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O santuário onde ocorreu o massacre

Para Ichikawa, o incidente foi fruto de dois tipos de discriminação, a étnica e a ocupacional.

“Na época, o Japão prosseguia com a colonização, então tentava justificar os massacres como atos nascidos do patriotismo. Também o ambiente incentivava o preconceito a certas ocupações, com cartazes de prevenção ao crime dizendo, por exemplo: ‘se você vir um vendedor ambulante suspeito, chame a polícia’. Tudo isso estava profundamente enraizado na sociedade”.

Segundo Ichikawa, a discriminação que havia 100 anos atrás continua presente sob a forma de discurso de ódio. O incidente na vila Fukuda não é sobre ter matado japoneses por engano, mas terem assassinado aquelas nove vítimas e outras milhares de pessoas, independentemente de suas origens.

“O monumento tem um grande significado na defesa de uma sociedade livre de discriminação e que respeita os direitos humanos.”

Yayoi Tsujino, a autora do livro Incidente na Vila Fukuda, compartilha esse pensamento ao escrever no prefácio: “Nem o incidente na Vila de Fukuda, nem o massacre de coreanos podem ser descartados como acontecimentos infelizes do passado.”

Livro virou filme

No dia que marca o centenário do Grande Terremoto de Kanto, estreou no país o filme Incidente na Vila Fukuda, baseado no livro publicado por Tsujino.

O diretor Tatsuya Mori é conhecido pela produção de documentários com temas sociais, e decidiu filmar seu primeiro longa para mostrar que a história está ligada ao presente.

“O incidente mostra quão fácil e perigosamente uma multidão pode acabar matando outras pessoas se forem influenciadas por rumores infundados durante situações de emergência”, disse Mori em uma das entrevistas para divulgação do filme.

O desafio, segundo ele, foi tentar retratar cuidadosamente por que e como os assassinatos ocorreram “para não repetirmos o mesmo erro, precisamente porque vivemos numa época como esta”.

Na opinião do professor Angelo Ishi, do Departamento de Mídia e Sociologia da Universidade de Musashi, em Tóquio, é improvável a repetição de uma chacina nos mesmos moldes.

“Nos tempos atuais, temos a nosso favor um fator que inexistia naquela época: os esforços individuais e coletivos de checagem de fatos. Hoje é possível encontrar sempre vozes questionando e alertando para as fake news e boatos”.

No entanto, afirma que, se formos pensar em “atos hostis no geral”, com certeza o risco é grande.

Ele afirma que o maior problema nesta era de influenciadores digitais e de redes sociais não é necessariamente o fácil acesso às informações e desinformações.

“Mais do que isso, preocupa-me a facilidade com que o difusor de fakes e boatos consegue encontrar alguém (mesmo distante geograficamente) que concorda com suas ideias. Ficou mais rápido para avançar nas etapas que desembocam na incitação de atos violentos e discriminatórios, e mais fácil arregimentar parceiros.”

Em 2016, foi promulgada a Lei de Eliminação do Discurso de Ódio no Japão, incluindo propaganda de rua, distribuição online de vídeos e publicações.

“Fala-se muito em multiculturalismo nos dias atuais, mas isso tem que ser verdadeiro”, diz Ichikawa.

Treinamentos

Crédito, Fotos Cedidas/ TS Recreação

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Alunos durante simulação de terremoto em escola brasileira no Japão

De acordo com cientistas, a probabilidade do próximo grande terremoto acontecer no Japão até o ano de 2050 é de 70%.

Apesar dos preparativos para tentar reduzir o número de vítimas desse tipo de desastre, a presença cada vez maior de estrangeiros tem preocupado autoridades nesse contexto. Além da barreira da língua em alguns casos, há a questão do controle de informações falsas e rumores para evitar o caos.

Segundo a Agência de Serviços de Imigração, no ano passado o número de estrangeiros residentes no Japão chegou a 3,07 milhões de pessoas (pouco mais de 2% da população do país), e deverá alcançar 9,39 milhões em 2070 (10,8%).

Desde 1960, 1º de setembro foi fixado como o Dia da Prevenção contra Desastres e se tornou o ponto de partida para divulgar medidas de combate a desastres naturais no Japão.

Na primeira semana do mês, conhecida como bosai shuukan, são realizados treinamentos e visitas guiadas voltadas para crianças e adultos em todo o país.

Na escola brasileira TS Recreação, em Kamisato (Saitama), a diretora Carmem Yasue costuma realizar treinamentos periódicos com todos os cem alunos do ensino fundamental e médio, e outros com periodicidade mensal para as 54 crianças da creche, além de receber a visita de bombeiros uma vez por ano.

Essas atividades estão incluídas na programação escolar, mas para reforçar as medidas, a diretora faz treinamentos surpresas, com conhecimento apenas da coordenadora da creche. “Ninguém sabe quando virá um terremoto, então temos que saber como proceder diante do imprevisto”, diz.

As crianças aprendem que, no primeiro momento, é preciso se esconder debaixo da carteira ou uma mesa qualquer, e proteger a cabeça com capacete ou capuz próprio para isso.

“Não importa sua nacionalidade ou o idioma que fale, as medidas são para todos. Cada um precisa saber se proteger por si.”

Entre as lições aprendidas com a resposta de emergência ao Grande Terremoto de Kanto, o relatório do governo diz que aquele foi um desastre que excedeu as expectativas das pessoas na época, e os danos foram generalizados porque a preparação para desastres foi negligenciada devido ao excesso de confiança no progresso tecnológico.

Durante os primeiros três dias, ninguém conseguiu compreender a extensão total do desastre devido à escala dos danos e à interrupção das comunicações, e surgiu confusão devido aos fracos esforços de socorro e aos rumores.

Crédito, Fotos Cedidas/ TS Recreação

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Estudantes se abrigam em pátio de escola brasileira durante simulação de terremoto

Nos treinamentos atuais, além das medidas, o governo tem reforçado a importância de saber reconhecer o que é verdade e o que é rumor.

E, como reforça Ichikawa, conhecer Direitos Humanos também ajuda a minimizar perdas.